Estádio de Sarrià, 1982*
Algumas das memórias mais antigas que tenho de coisas relacionadas com o futebol começam em Espanha, em 1982. A inesquecível mascote «Naranjito», uma laranja redondinha e simpática equipada à espanhola, os primeiros jogos vistos de fio a pavio, a gente que parecia sempre alegre, sorridente e com coisas para contar (foi o Mundial com mais transmissões televisivas até então, talvez mesmo o primeiro Mundial global). Ouvi falar de alguns países pela primeira vez nessa altura, como as Honduras ou a Irlanda do Norte, por cujo equipamento branco e verde me apaixonei brevemente. A verdade, porém, é que, apesar de a minha atenção de criança se ter dispersado por várias coisas nesse Verão (uma delas foi nunca mais me ter esquecido do nome do estádio do Hércules de Alicante), ninguém parecia ter olhos para mais nada do que para a estratosférica equipa do Brasil. A partir de uma dada altura do torneio, as vitórias futuras do «escrete» pareciam estar cosmicamente garantidas: a única coisa que faltava saber era por quantos. Comandados pelo diplomático mineiro Telê Santana, um veterano de muitas batalhas (ex-extremo do Fluminense, pelo qual jogou mais de 500 jogos; e ex-treinador de vários «grandes» do Brasil nos anos 70 — Atlético Mineiro, São Paulo, Botafogo, Grêmio e Palmeiras), os ultra-confiantes brasileiros apresentaram nos relvados espanhóis uma autêntica parada de estrelas. Na tarde de 5 de julho de 1982, a minha mãe foi buscar-me à pressa à piscina para irmos a correr para casa ver o jogo decisivo do grupo C de qualificação para as meias-finais. De um lado, o Brasil mais enleante e inesquecível de sempre; do outro, a antipática Itália.
No dia seguinte, no café por baixo do prédio onde morávamos, o meu pai e os amigos discutiam, ainda meio incrédulos, o que se tinha passado na véspera. A capa do extinto jornal Gazeta dos Desportos titulava, em letras garrafais, «Bye-Bye, Brasil» (em referência ao filme homónimo de Cacá Diegues estreado em 1979, com o José Wilker e a Bety Faria, e cuja música-tema cantava Chico Buarque). Qual majestoso e indestrutível Titanic, a melhor equipa de todos os tempos viu-se afundada por uns tipos muito cínicos que não jogavam nada, tinham ganho apenas 1-0 ao Sporting de Braga (imagine-se) num jogo de preparação, apenas um mês antes, e que se viram à rasquinha para passar o primeiro grupo de apuramento (que nem era difícil: Polónia, Camarões e Peru eram os adversários), com 3 empates em 3 jogos e apenas dois golos marcados. Aquilo foi uma tragédia grega à brasileira, apesar do paradoxo, mas também uma espécie de tragédia em segunda mão para nós em Portugal que, além de termos sempre um fraquinho pelos nossos irmãos brasileiros, nos tínhamos apaixonado sem remédio por aquela orquestra vibrante. Eu nem percebia grande coisa de futebol na altura (o que é perfeitamente normal para um miúdo de 7 anos), mas exultava de entusiasmo com aquele «11» garboso, genial e fotogénico. Como nunca subscrevi a espécie de afeição irracional que os portugueses têm pelo Brasil, devo ter-me apaixonado exclusivamente pelo futebol extraordinário que dessa equipa emanava — o que é um bom sinal: no futebol, como é sabido, as emoções atrapalham imenso.
Os tipos nunca se descompunham, nem quando estiveram a perder os dois primeiros jogos da fase de grupos, contra a URSS e a Escócia, e muito menos quando os argentinos lançaram sobre eles uma bateria de artilharia que foi desde cotoveladas «à má fila» a patadas à vista de todos (árbitro incluído). Nunca humilhavam nem jogavam com soberba ou desprezo: eram, simplesmente, muito melhores, e atropelavam higienicamente todos os adversários. Seriam, era opinião de todos, os dignos herdeiros do pós-Pelé, e venceriam o Mundial com toda a naturalidade, como era natural fazer sol naquele Verão de 82. Fariam manchetes e assinariam contratos milionários com os maiores clubes da Europa. Conquistariam, a cada golo, a imortalidade. Algo na arquitetura do universo tornava óbvio que eles ganhariam.
Muita gente desconfiava bastante do guarda-redes brasileiro Valdir Peres (um keeper calvo e discreto, que costumava alinhar vestido de cinzento), ídolo do São Paulo e famoso por defender muitos penáltis. Esta desconfiança foi dando azo a muitos comentários derrotistas, a um ceticismo moderado e a observações como «com aquele guarda-redes não se safam» ou «o Brasil não tem guarda-redes». No entanto, esses receios mostraram-se infundados com o decorrer da competição. Não que o esfíngico Valdir tivesse sido muito posto à prova, ou sido obrigado a mostrar as suas extraordinárias competências na defesa do «gol». Bem pelo contrário. Simplesmente, o Brasil passava 70% dos jogos em ataque continuado, a trocar a bola de pé para pé como se estivesse a jogar ao meínho a campo todo, ora escondendo a bola do adversário ora mostrando-a para logo a fazer chegar aos cantos mais remotos do gramado. Nos 30% que restavam, e se os adversários fossem suficientemente corajosos para tirarem a cabeça da toca, bastavam os 4 excecionais defesas brasileiros: Leandro e Júnior, ambos do Flamengo, nas faixas laterais (Leandro era um back clássico e conservador, ao contrário do Júnior, um tipo que fazia piscinas no corredor esquerdo, para a frente e para trás, do primeiro ao último minuto: o campo, para ele, devia ter 300 metros); no centro da zaga, Oscar Bernardi, o elegante stopper do São Paulo; e Luizinho, o líbero do Atlético Mineiro (haveria mais tarde de jogar pelo Sporting, já no ocaso da carreira). Era tema de conversa a propensão do Júnior para atacar demais e desguarnecer as costas mas, para evitar essa preocupação, seu Telê escalou o dedicado funcionário Toninho Cerezo (do Atlético Mineiro e, mais tarde, da Roma de Itália), um altarrão de bigode e meias em baixo que parecia ter a capacidade de tapar todas as fugas daquela canalização vencedora. Para além disso, descomplicava todo o jogo ofensivo: na «primeira transição» (como agora se diz), era ele que, de modo ao mesmo tempo eficaz e económico, punha a banda a girar. Raramente falhava um passe, e não precisava de muito para fazer chegar a bola aos solistas mais à frente. Estes cinco homens nem pareciam jogadores: eram cinco marechais napoleónicos, capazes de proteger, comandar e atacar, subjugando continentes verdes inteiros.
De Cerezo para diante, o Brasil apresentou a orquestra de câmara mais perfeita que se tinha visto até então. Paulo Roberto Falcão, um anjo loiro de 1 metro e 83, que trotava como um cavalo de dressage e parecia estar em todo o campo, comandando, fazendo rodar o jogo, gesticulando (na altura já jogava na Roma, e tinha incorporado a famosa linguagem gestual dos italianos), orientando a sinfonia sem nunca desafinar. Era um jogador inteiro, da cabeça aos pés, e um dos «meias» mais completos de sempre. Ao lado dele, o gigante doutor Sócrates, de barba e longa cabeleira, fazendo jus ao nome helénico (derramava compêndios de filosofia pelo relvado, como se estivesse a dar uma aula sobre as Odes de Píndaro). Era tão bom jogador que tocava de calcanhar como se tivesse olhos na nuca ou nas costas. Um aristocrata a tratar a bola, e um latifundiário a ocupar o meio-campo, ele foi, paradoxalmente, um ativista comprometido (fundou, entre outras coisas, a chamada «democracia corinthiana», que, em plena ditadura militar, transformou a equipa paulista numa cooperativa onde até as contratações e os prémios eram decididos por voto; o lema desse Corinthians era «ganhar ou perder, mas sempre com democracia»).
À frente do duo Falcão-Sócrates, bem perto da área e de onde a alegria acontece, jogava um miúdo de ascendência portuguesa, Zico, o «galo de Quintino», um dos maiores fabricadores de golos de todos os tempos. Com uma técnica apuradíssima (batia livres a 30 metros como quem faz um passe a 5), vagabundeava a toda a largura do terreno à procura do sítio certo para entrar na zona de perigo. Quase sempre, acabava mesmo por entrar e, sem pedir licença a ninguém, torcia os rins aos dois ou três que lhe saíssem ao caminho e disparava para golo como se estivesse no pátio da escola e um vidro a menos não fosse fazer diferença.
Entre este trio de deuses da bola e o retângulo de postes brancos vestido de rede havia, ainda, um perito em explosivos e uma polémica bem brasileira. O perito era Éder, o «patada atómica», talvez o menos glamoroso dos jogadores da vanguarda verde e amarela, mas nem por isso menos notável. Com ele sobre o gramado, qualquer falta para lá do meio campo era motivo para animação: assim que o víamos colocar a bola com jeitinho, tomar balanço e escoicear a esfera de couro com toda a potência daquelas coxas gregas (naquela altura, usavam-se os calções curtinhos, o que ainda as realçava mais, no caso dele), já sabíamos que algo mágico ia acontecer. Ex-astro do Grêmio de Porto Alegre, tinha-se notabilizado posteriormente no Atlético Mineiro, sobretudo por esse remate tão fácil que mais parecia ter dinamite no peito do pé. Batia toda a frente de ataque, embora se sentisse mais confortável sobre a meia-esquerda, uma vez que tinha também, além do pontapé hercúleo, uma finta bruta e nada artística, em jeito de locomotiva, que o colocava perto da baliza rival com muita facilidade. Éder foi o jogador que, nesse Verão de 82, todos desejávamos secretamente viesse jogar para a Europa, para o podermos ver mais de perto e mais vezes (tirando duas célebres colunas de jornal, a «Meu Brasil Brasileiro» de Duda Guennes em A Bola, e a «Gandula» de Wilson Brasil na Gazeta dos Desportos, pouco se sabia do futebol dos sabiás no Portugal de então).
O que restava, depois desses 10 astros incontestáveis, era a polémica, porque «escrete» sem polémica não é «escrete» e brasileiro não é brasileiro sem uma boa discussão. O dilema era o seguinte: jogar com ou sem ponta-de-lança? Antes da Copa, o artilheiro titular tinha sido o Careca, que na época brilhava a grande altura numa das melhores equipas da história do Guarani de Campinas (campeão brasileiro em 1978 e da «serie B» em 1981), e que mais tarde veio a ser a cereja no topo do bolo azul-celeste que Maradona cozinhou em Nápoles. Acontece que uma lesão impeditiva, sofrida poucas semanas antes do Mundial, o atirou para fora da convocatória (que era mais do que certa). Telê Santana chamou então à titularidade um gigante negro de 1 metro e 90, Serginho Chulapa, que havia contratado uns anos antes quando treinava o São Paulo (e que se diz ter tido problemas disciplinares muito sérios aquando da sua meteórica passagem pelo Marítimo, treinado então pelo histórico Manuel de Oliveira, em 86-87). Uma larga franja da opinião pública e dos comentaristas esportivos, que não engolia o Serginho, queria que jogasse o Paulo Isidoro, um meia atacante do Grêmio que eletrizava as plateias com o seu jogo dinâmico e eficácia letal. Pouco convencido com os argumentos dos críticos, Telê escalou Serginho de início em todos os 5 jogos disputados pela «canarinha», e o trôpego gigante faturou por duas vezes, contra a Escócia e a Argentina. Mas o facto é que, filosoficamente falando, aquela escalação era muito debatida: o povo queria o Isidoro (ou o Dirceu, que ainda jogou de início no primeiro jogo e logo se eclipsou), o Telê queria o Serginho, e a polémica dura até hoje.
Naquele 5 de Julho de 1982, no velhinho Estádio de Sarrià (entretanto demolido), a sina da Itália parecia ser a de fazer as vezes do valoroso adversário destinado a cair de pé perante a avalanche poética dos pés brasileiros. Tinha feito uma campanha sôfrega e nada notável até então: empate a zero com a Polónia, empate a um com o modesto Peru, e empate (também a um) com os Camarões no Estádio de Balaídos, em Vigo. As desconfianças em relação à seleção (que são crónicas e quase patológicas entre os italianos) não tinham sido aplacadas por este modesto pecúlio e, de algum modo, confirmavam os maus presságios vindos da preparação para o campeonato. A magra vitória em Vigo, contra uma mediana equipa portuguesa, havia sido tratada silenciosamente pela imprensa, num clima de quase segredo de estado, como se a má forma da equipa, e as permanentes experiências táticas, tivessem de ser ocultadas a bem da nação futebolística (a azzurra veio até a inaugurar uma prática hoje bastante comum, o blackout à imprensa — que em italiano se diz silenzio stampa — depois da titubeante e nada assertiva campanha na fase de grupos do Mundial). Enzo Bearzot, um antigo médio que se notabilizara pela fiabilidade ao serviço de, entre outros, Inter, Catania e, sobretudo, Torino (onde jogou 7 anos), estava debaixo de fogo: depois de ter falhado o apuramento para o Europeu de 1976, tinha construído uma forte seleção que dera boa conta de si (4º lugar) no Mundial da Argentina em 78 mas que, dois anos mais tarde, tivera um desempenho frustrante no Europeu jogado em casa. Bearzot sabia que o Mundial de Espanha podia ser a sua última prova de fogo (estava na seleção principal desde 1975 — há 7 anos). Era consensualmente tido como aquilo a que os italianos chamam gentiluomo: tranquilo, discreto e educado. Conta-se que, naquela tarde de 5 de julho em Sarrià, disse aos jogadores antes do jogo mais ou menos isto: «primeiro, não devemos sofrer golos; em segundo lugar, é imperativo ganhar; em terceiro lugar… bom, não há terceiro ponto porque os dois primeiros já dizem tudo». Mas lá iremos. Por agora, concentremo-nos na pobre e acossada Itália que, de maneira tíbia e nada convincente chega ao Mundial espanhol.
A decisão mais polémica da carreira de Bearzot havia sido tomada algumas semanas antes da partida para Espanha. Roberto Pruzzo, o melhor marcador da Serie A em 1982, com 15 golos, que muito haviam ajudado a Roma (uma espécie de «equipa da moda» na altura, e que viria a ser campeã no ano seguinte com o mesmo goleador, Pruzzo, e o mesmo treinador, o sueco Nils Liedholm) a conquistar um brilhante 3º lugar, atrás somente da Fiorentina e da Juventus campeã, estava fora da lista. Em seu lugar, e para espanto generalizado, Bearzot chamou Paolo Rossi, um avançado magrinho que, depois de ter brilhado ao serviço do Lanerossi Vicenza, tinha sido apanhado no escândalo do Totonero de 1980, quando se descobriu que a manipulação de resultados era uma prática corrente no Calcio (Rossi jogava na altura no Perugia; o furacão do Totonero varreu o futebol italiano de fio a pavio: os juízes não tiveram qualquer prurido em mandar o histórico Milan para a segunda divisão, em irradiar o seu presidente e em condenar a suspensões de vários anos 25 jogadores das Series A e B).
Paolo Rossi, cuja sentença de 2 anos fora comutada em 1981, foi pouco depois contratado pela Juventus, a tempo apenas de participar em 3 partidas do campeonato e marcar um golo. A decisão de deixar em casa o ponta-de-lança mais prolífico do futebol italiano, um robot com cara de Astérix (bigode e tudo) que andava a estoirar redes ininterruptamente há 9 anos — no Genoa, primeiro, e depois na Roma —, foi tão estranha quanto a de convocar um avançado que havia jogado somente 3 jogos nos últimos 22 meses. Os treinadores, sabe-se, são uns bichos caprichosos, que gostam por vezes de tirar da cartola aquele coelho de que ninguém está à espera. A verdade é que, no caso de Bearzot, tudo parecia ir bastante para além disso: aquilo já não era um coelho, mas um elefante numa loja de porcelana e, naturalmente, depois dos 3 empates da primeira fase (nos quais Rossi nunca marcou e até chegou a ser substituído ao intervalo, por Causio, no jogo contra o Peru), as críticas ao selecionador subiram de tom.
Naquele Mundial, à primeira fase, constituída por grupos de 4 equipas em que cada uma disputava 3 jogos, seguia-se uma segunda, igualmente de grupos (desta feita de 3, com cada equipa a jogar 2 partidas). Dos quatro então organizados (e de que sairiam os 4 semifinalistas), havia um que chamara a atenção de todos: Itália, Brasil e Argentina iriam defrontar-se entre si no espaço de 7 dias, numa mesma cidade e no mesmo estádio. Foi acrescentada, com muita naturalidade e boa disposição, uma bela dose de folclore histórico a essa semana. Encontrar-se-iam, em Barcelona e no Estádio de Sarrià, três equipas já campeãs do mundo (a Argentina, inclusivamente, na edição anterior do torneio, que tinha vencido em casa 4 anos antes), com um registo invejável e, sobretudo, com uma intensa história de relacionamentos anteriores. A emigração italiana para a América do Sul (ocorrida sobretudo no período fascista, embora tenha existido um fluxo bastante importante na viragem do século XIX para o século XX) transformou tanto a Argentina como o Brasil em segundas pátrias para milhares de italianos fugidos à ditadura. Cidades como São Paulo ou Belo Horizonte sofreram um impacto massivo, e duradouro, das comunidades italianas, que se organizaram, se misturaram no modo de vida brasileiro, adotaram costumes indígenas e até fundaram clubes de futebol (como o Palmeiras e o Cruzeiro — ambos se chamaram «Palestra Itália» até ao início da década de 1940). Com a Argentina, a história era mais ou menos a mesma. Nomes como Zanetti, Monti, Bertoni ou Passarella vieram do lado de cá do oceano, e rapidamente se irmanaram com os Vázquez, Rodríguez, Galván e Martínez tão tipicamente castelhanos. Entre os rivais da América do Sul, no entanto, a história já não era tão cordial. Eternamente em conflito pela hegemonia no continente, digladiaram-se nos campos militar, político, financeiro e desportivo durante décadas a fio. Em 1982, ambos viviam sob o jugo de ditaduras militares, e até nisso as diferenças entre os dois países se faziam sentir: a brasileira, mais tropical e confusa; a Argentina, férrea e sanguinária. A rivalidade, no entanto, continuava a ter uma intensidade milenar (há uma anedota brasileira muito antiga que diz que um caiçara brasileiro tem uma maneira fácil de fazer dinheiro: basta-lhe fingir-se argentino e dizer que só lhe faltam algumas moedas para voltar para casa). Curtidos por um sem número de refregas desde o princípio dos tempos, os dois colossos sul-americanos preparavam-se para mais uma batalha a céu aberto pela supremacia continental.
A 29 de junho, italianos e argentinos abriram as hostilidades. A alvi-celeste tinha passado o grupo de apuramento com algum conforto, mesmo depois de ter perdido o primeiro jogo contra a então poderosa Bélgica, por 1-0 (acabou por passear contra a Hungria — 4-1 — e El Salvador — 2-0 —, o que lhe deu o segundo lugar do grupo). Era uma seleção de transição (uma coisa sempre complicada de fazer é manter-se uma equipa competitiva quatro anos depois de se ter ganho um Mundial): aos consagrados ícones de 78, como Passarella, Ardiles e, sobretudo, o bombardeiro guedelhudo Mário Kempes, juntaram-se jovens promessas como o keeper Pumpido (que viria a ser herói em 1986); o elegante avançado Valdano (que parecia saído de uma passerelle); e um baixito com ar de rufião que tinha brilhado a grande altura no Mundial de sub-20 realizado em 1979, e era ídolo do clube do povo, o Boca Juniors (Diego Armando Maradona — o homem que viria a ser Deus). O treinador era o velho herói de 1978, César Luis Menotti, chamado el flaco (o magro), sempre com as suas calças à boca-de-sino e impecáveis gravatas, normalmente por detrás de um pulôver de gola em «V», cujo penteado exemplar fazia as delícias do folclore futeboleiro da época. Também escritor (havia escrito 2 livros sobre futebol entre a conquista de 1978 e o torneio de 1982), era conhecido por fumar muito e por gritar aos seus rapazes antes dos jogos: «ao ataque! ao ataque! só a vitória interessa!». Apesar de haver uma natural desconfiança quanto à possibilidade de equipas campeãs em título manterem o nível passados 4 anos, a alvi-celeste era ligeiramente favorita face aos remendados italianos, de quem todos desconfiavam ainda mais. No relvado, no entanto, os argentinos pareceram sempre correr atrás do jogo, perante uma azzurra bem postada, e que parecia finalmente ter acertado com o seu 11 ideal. Depois de uma primeira parte nervosa, os italianos abriram o score por Tardelli, elevaram por Cabrini e, apesar de terem sofrido aos 83 min (um golo do capitão Passarella), seguraram o 2-1 e foram para o hotel esperar tranquilamente o duelo sul-americano.
O Brasil chegou a esse jogo (três dias depois) com o favoritismo ainda mais reforçado pela derrota dos argentinos às mãos dos aparentemente inofensivos italianos. Eram a melhor equipa do torneio, a muitos milhares de anos-luz de todas as outras, e a crença geral era a de que a Itália lhes tinha feito um favor por ter «baixado a bola» aos seus arquirrivais do Rio de Prata. Os argentinos, que tinham lançado às feras um coriáceo, desempoeirado e temível regimento de cavalaria apenas 4 anos antes, com o apoio dos generais e de um povo oprimido e fanático, pareciam ter perdido todo o glamour e a chama da tarde-noite em que viraram, já no prolongamento, sobre a temível Holanda num Monumental de River Plate cheio hasta la bandera (o jogo acabou 1-1, e a alvi-celeste acabou por fazer 3-1 na meia hora extra, com golos de Bertoni e do inevitável Kempes). O Brasil passou 75 minutos a enrolar a alvi-celeste no seu carrossel de feira, fez 3 golos (por Zico, Serginho e Júnior), podia ter feito mais, caprichou na posse de bola, enervou os já cansados argentinos, e fê-los perder a cabeça: a espumar de raiva e frustração, o astro Maradona fez-se expulsar depois de enfiar uma patada inqualificável no João Batista (médio do Grêmio e mais tarde do Belenenses), que havia entrado em campo poucos minutos antes. Nem o golo do 1-3, marcado por Ramón Diáz em cima dos 90 min, fez atrasar o carnaval adivinhado: bastava ao Brasil, por causa da diferença de golos, empatar com a enigmática Itália para aceder às ansiadas meias-finais. Até àquele momento, a canarinha tinha sido imperial: 2-1 à URSS (Sócrates e Éder), 4-1 à Escócia (Zico, Oscar, Éder e Falcão), 4-0 à Nova Zelândia (2 de Zico, Falcão e Serginho), e este 3-1 ao arqui-rival sul-americano. 4 jogos, 4 vitórias, 11 golos marcados, apenas 3 sofridos, golos para todos os gostos e a dividir por muitos, um futebol meio samba meio orquestra vienense, um trato de bola poético e pictórico, umas vezes malandro outras vezes burocrático, e no meio disto tudo todo o mundo começou a desenrolar a passadeira vermelha e a encomendar o carnaval: estava encontrado o campeão.
Na tarde de 5 de julho de 1982, o mais que provável novo campeão ia ser chamado a cumprir a aborrecida formalidade de despachar os italianos na caminhada imparável rumo às meias-finais (por essa altura, nenhuma das equipas dos outros grupos tinha assegurado a passagem, embora a Alemanha, que já jogara duas vezes e fizera 3 pontos — empate a zero com a Inglaterra e vitória tangencial por 2-1 sobre a anfitriã Espanha — estivesse bem encaminhada). Num Sarrià à pinha (44.000 espectadores) e sob um calor asfixiante, o «escrete» de Telê alinhou como sempre: Valdir no gol, Leandro e Júnior nas faixas, Oscar de stopper e Luizinho na sobra, Cerezo na cabeça-de-área, o trio de maestros, Falcão, Sócrates e Zico, o explosivo vagabundo Éder e o pinheiro Serginho. No banco, seu Telê tinha outro bouquet de semideuses: os já citados Dirceu (que até jogava em Espanha, no Atlético de Madrid), Paulo Isidoro e Batista, e ainda craques da estirpe de Edevaldo (lateral do Inter de Porto Alegre), Pedrinho (lateral do Vasco), Edinho (central do Fluminense) e, acima de tudo, Roberto Dinamite — o avançado que tinha marcado mais de 700 golos pelo Vasco da Gama e que haveria de passar a Copa espanhola sem fazer um único minuto.
A Itália, por seu turno, fez escalar a (também costumeira) guarda de honra: o guarda-redes era Zoff, um «paizão» grande e narigudo (que havia feito carreira no modesto Mantova e no Nápoles antes de chegar à Juventus, e que começara a jogar profissionalmente no já longínquo ano de 1961); na defesa, 4 operários especializados na arte de marcar bem: à direita, Collovati (do Milan, e que se transferiu, não sem polémica, nesse mesmo Verão, para o rival Inter); à esquerda, Cabrini (da Juventus, e o homem mais bonito que jamais calçou umas chuteiras); no centro, Gentile na marcação, e Gaetano Scirea (também da Juventus, e um dos melhores defensores de sempre, tragicamente desaparecido num acidente de viação na Polónia, em 1989), na posição de libero; à frente da defesa, Bearzot fez alinhar o diligente gregário ruivo Oriali (do Inter, e a quem o célebre rockeiro Luciano Ligabue, fervoroso adepto dos nerazzurri, haveria de dedicar uma canção a que chamou «Una vita da mediano»); ainda mais à frente, como primeiro organizador (naquilo a que os italianos chamam a cabina di regia, o posto do maestro), o todo-o-terreno Marco Tardelli, completíssimo médio da Juventus, que atacava e defendia com a mesma imperturbável altivez; na ligação entre o meio-campo e o ataque, Giancarlo Antognoni, símbolo da Fiorentina e, como bom filho da cidade da equipa viola, um artista dos relvados, um pintor de traço colorido e exuberante (apenas uns meses antes, em Novembro de 81, depois de ter sido abalroado brutalmente pelo guarda-redes do Genoa, Silvano Martina, Antognoni tinha perdido os sentidos e sofrido uma paragem cardíaca de 26 segundos; operado a várias fraturas cranianas, só regressou aos relvados, depois de uma sofrida convalescença, a 22 de Abril de 1982, poucas semanas antes do Mundial); no ataque, o tornante da Roma, Bruno Conti, com o seu risco ao meio, pernas arqueadas e energia para fazer 200 jogos seguidos; o elegante «centravanti» Graziani (ex-ídolo do Torino e então ao serviço da Fiorentina); e, claro, aquele rapaz com ar de feirante enfermiço que parecia pedir desculpa por tudo o que fazia — o tal Paolo Rossi, que tinha feito apenas 3 partidas nos últimos 22 meses.
O ambiente era frenético. Das 44.000 almas que lotaram o Sarrià, os brasileiros estavam em maioria, e a eles se juntaram todos os adeptos neutrais do futebol bonito e, ainda, todos quantos desejavam que os sonhos daquela equipa de eleição se concretizassem. Os italianos, eternamente orgulhosos e barulhentos, não deixaram a coisa por menos e desfilaram uma procissão de bandeiras tricolores. Ainda o jogo mal tinha começado, naquela fase de nem vais tu, nem vou eu a que os comentadores chamam «de estudo mútuo» («o jogo começou morno», diriam talvez), já os guerreiros de Garibaldi mostravam que não tinham vindo para facilitar a vida à canarinha — e logo numa jogada de fazer inveja aos doutores da bola das terras de Vera Cruz. Foi mais ou menos assim: bola na área italiana, Collovati para Scirea, tudo tranquilo e sereno a sair a jogar de trás, Conti, Oriali, de novo Conti, progride pelo corredor, já está no meio campo inimigo, leva a bola, faz duas rotundas, finge que vai entrar pela direita, corta dentro, está a chegar ao último terço, e com uma trivela majestosa de canhota, qual parábola desenhada a esquadro, faz voar a bola até ao corredor oposto, onde estava a chegar Cabrini. Os brasucas, naquela tradicional moleza tropical, talvez fiando-se que o seu Deus haveria de lhes entregar a bola sem que tivessem de se esforçar muito por isso, deixaram andar: nem uma porradinha, nem uma pressão, nem um encosto, nada — ficou tudo a ver jogar. Estavam decorridos apenas 5 minutos de jogo. Cabrini, ansioso por despachar a bola, nem precisou de «ganhar» a linha de fundo: cruzou mesmo de onde estava, de longe, mais ou menos à frente do banco brasileiro. E mal a bola lhe saiu da bota, percebeu-se logo para onde ia. Um arco longo, alto, fê-la sobrevoar, como se estivesse enfiada nuns carris imaginários de onde não se pudesse desviar, a dupla de centrais brasileira (que estava, justiça lhe seja feita, onde devia estar), e dirigir-se venenosamente para o segundo poste. Entretidos com o espadaúdo Graziani, todos se esqueceram do pequenito Rossi (inclusivamente o Júnior, que chegou meio segundo atrasado ao lance), e este apareceu tranquilo, como uma seta de fauno, meteu a testa e saiu para o aplauso. 1-0 e estavam abertas as hostilidades.
Do lado verde-e-amarelo tudo pareceu calmo como dantes: nem um queixume, ninguém em desespero ou com as mãos na cabeça, nenhuma boca aberta de espanto, nada. Afinal de contas, eles eram a melhor equipa daquela competição, e ainda faltavam 85 longos minutos para dar a volta à coisa. Todos os que seguiam a partida de fora (se calhar como os que estavam lá dentro) devem ter pensado, em simultâneo, que aquele golo não passara de um condimento para dar aquele gostinho especial ao esperado massacre brasileiro. Até teria mais piada (e seria mais nobre) passar às meias-finais tendo que dar a volta a um resultado adverso, e contra uma equipa que tinha tido o atrevimento de dar uma valente bicada no orgulho brasileiro (não eram, isso tornara-se óbvio na cabeçada de Rossi, os «bombos da festa» que muita gente previra: não iriam, decerto, para casa com o rabo entre as pernas). Poucos minutos mais tarde, porém, o equilíbrio cósmico do universo do futebol voltou a repor-se, e da maneira mais óbvia: aos 11 min, bola em Zico, a meio do meio-campo italiano, um meneio para fora, outro para dentro, passa-lhe à frente Sócrates com aquele trote de blitzkrieg, Zico (que estava virado para a linha lateral do lado oposto) mete-lhe a bola suavemente, com um toque que só um génio da lâmpada imaginaria, e zás, está o doutor dentro da área nas costas de toda a defesa italiana, que saíra na marcação e não contara com aquele rasgão nas suas linhas. Sócrates entra na área, a bola cola-se-lhe ao pé como um íman, é só ele e a baliza, mas o ângulo não é o melhor (está muito descaído sobre a direita), e a velocidade não aconselha o remate. Mas a carne e o osso deste homem não são da Terra, são de outro planeta: foram esculpidos, quem sabe, num Olimpo cósmico ainda por inventar. Ele olha para o centro da área, finge que vai cruzar e faz o improvável: toca suave, de colher, ao ângulo mais próximo, o desamparado Zoff fica com uma perna para cada lado e já está. De braços erguidos, o doutor encara a rede, e do outro lado muitos vivas brasileiros o saúdam, a ele e à equipa, uma vez que o mundo tinha voltado a girar como devia a partir daquele momento: era outra vez carnaval.
A grande história daquela tarde talvez seja um misto de uma série de imponderáveis, nos quais muitas vezes o futebol é tão fértil: a Itália foi teimosa (como é quase sempre), e aproveitou todos os erros do Brasil (não foram muitos, mas foram fatais); esteve sempre alerta e defendeu-se bem (só sofreu a bom sofrer porque aqueles brasileiros eram realmente especiais); nunca se deixou atemorizar (mostrando garbosamente aquele estoicismo que reflete o que de melhor há nos latinos); e pareceu ir acreditando, aos poucos, que aquilo que estava a acontecer era uma lenda bíblica, urdida pelo destino, que haveria de deixar o mundo de pernas para o ar. A história do seu segundo golo é um exemplo maior disso mesmo: a bola gira nos pés-de-pluma dos astros brasileiros durante um bom bocado (o empate interessa-lhes, claro), vai à frente, volta atrás, e assim sucessivamente, como o pêndulo de um relógio; de repente, há um livre perigoso a 30 metros da baliza brasileira; a bola bate na barreira, eleva-se no ar, parece que vai dar canto mas não: Valdir recolhe na tranquilidade, coloca a bola no chão (os guarda-redes ainda podiam fazer isso, na altura), dá quatro ou cinco passos, agarra-a outra vez, estica a catapulta e aí vai ela para a direita; Leandro recolhe, toca dentro em Cerezo, Cerezo domina, toca ainda mais dentro, e estão três jogadores brasileiros, a 35 metros da sua própria baliza, em posse de bola e na zona central, contra um (!) italiano. O problema é que esse italiano era Paolo Rossi, destinado a virar lenda nessa tarde tão intensamente catalã, e o inefável, o metafísico, o cortar da vida em duas metades tão antagónicas, euforia e desespero, fizeram desabar sobre o Sarrià um dilúvio de espanto: as três sentinelas de amarelo ficaram a entreolhar-se, vais tu?, vou eu?, vai tu que eu fico, a bola a aproximar-se, o desastre também, e o homem-fénix a quem haviam chamado Pablito depois do Argentina-78 rompe as trincheiras, um toque para a frente, salta um último carrinho desesperado, toca mais uma vez, entra na meia-lua, dispara firme e já está. Lá vai ele de novo, com aquele grande número 20 pintado de branco sobre as costas, os braços em baixo e os punhos cerrados, depois levanta-os, dá um salto, parece estar outra vez a pedir desculpa, ou a pensar, naqueles ínfimos segundos, que a vida dá mesmo muitas voltas. E aos 25 min, a azzurra está de novo na frente do marcador, confiante de que pode fazer estragos na defesa brasileira e cada vez mais segura da qualidade dos couraçados que lhe protegem a retaguarda. O Brasil, por seu lado, já só tem 65 minutos para fazer 1 golo e virar o resultado a seu favor.
Aquele intervalo deve ter sido sofrido no vestiário da canarinha. Podemos imaginar o misto de sensações, o medo, a esperança, o otimismo, a cautela, o suor, palavras que foram erguidas e outras que não passaram de suspiros anónimos, algum desânimo, gritos de incentivo, o peso da história sobre os ombros de meia dúzia de rapazes vestidos de amarelo a quem tinham prometido o mundo e que, naquele instante, deixavam fugir a areia dos sonhos por entre os dedos. A Itália, sempre antipática e nada romântica, era conhecida por «fazer cera», por retrancar, por não deixar jogar — e ainda mais quando o resultado lhe interessava. É certo que já tinha perdido Collovati, por lesão (entrara Bergomi, o defesa multi-funções do Inter, conhecido por zio Beppe — o tio Zé — uma vez que, apesar de ter apenas 18 anos, ostentava uma bigodaça que o fazia parecer uns bons dez ou quinze anos mais velho). Contudo, a estrutura da equipa não se tinha alterado: a troca fora direta, homem por homem. O Brasil, por seu lado, ainda tinha as duas alterações por fazer, e 45 minutos para martelar os italianos até à exaustão. O problema é que os italianos não ficam nada chateados se lhes tirarem a bola, e parecem estar historicamente moldados para defender: imperturbáveis, aguentam avalanches de jogadas de ataque, cruzamentos perigosos e remates com a melhor cara do mundo, como se estivessem na Praça de São Marcos a tomar café e a escutar os gondolieri. Permanecem impassíveis perante a iminência da catástrofe e, enquanto ela não acontece, eles são a estirpe futebolística mais perigosa que há, porque conseguem mudar o chip com uma velocidade sobre-humana: quando parece que os temos na toca é quando eles lançam a seta mortal. Tudo isto, claro, veio a mostrar-se decisivo.
Aquela tarde de Sarrià não foi só um jogo de futebol. Foi um jogo de antologia, e mesmo que os italianos nunca mais tivessem ganho nada, o mundo jamais se esqueceria deles como eles realmente são: uns tipos chatos e cínicos que se defendem como rochas e atacam como aves de rapina. O Brasil entrou nervoso para a segunda parte, mas conseguiu desbloquear o resultado com mais uma jogada de génio coletivo. Zoff bate na frente, Falcão (sem pressão) domina para trás, a bola chega a Júnior, que cavalga sobre o meio-campo italiano a partir da esquerda, há um mar de camisolas azuis mas ele flete para dentro, salta um carrinho impetuoso, carrega uma trivela para o lado oposto, e a bola chega de novo a Falcão. Alguém lhe passa nas costas a 200 à hora, mas ele nem quer saber: faz que solta, vira a agulha para dentro (há 3 italianos que ficam fora do lance com este passo de dança), puxa uma vez, parece hesitar (a canhota não é a sua perna melhor), acaba por disparar, seco, quase a fazer tiro ao alvo, o foguete só para na rede e aí vem o anjo loiro, numa gritaria louca que parece desatar a garganta de todos os brasileiros, vivos ou mortos, no estádio ou nas ruas, na cidade ou na favela. 23 minutos da segunda parte e as favas parecem contadas: 2-2 e pouco tempo de sobra para os infelizes italianos voltarem à carga. No minuto seguinte (um minuto de paz e reconciliação), Telê Santana dá ao povo o que o povo quer: tira o Serginho, suado e exausto, e bota o Isidoro (mais um baixinho traquina, alegre e de bons pés, para tentar esconder a bola dos irascíveis transalpinos). Bem se vê que o pior já passou, e agora é só meter a pelota no carrossel e deixar o relógio andar. Tudo está bem quando acaba bem — apesar do susto. Apoderou-se então do estádio aquela sensação «de estádio»: só uma cartada irónica do destino poderia empurrar aquele time para fora do panteão. A glória eterna, no céu verde-e-amarelo habitado por Deus, estava por fim ao alcance dos pés heroicos dos astros brasileiros.
Os rapazes vindos da bota pareciam condenados a levar um pontapé no traseiro, mas depois de tudo aquilo voltariam a casa como uma valorosa equipa, e com a moral reforçada, por terem sido a única que ousara encostar a banda brasileira às cordas — o clássico exemplo daquilo a que se chama «cair de pé». No entanto, ainda restavam 20 e tal minutos para tentar o milagre e isso, como todos sabemos, é uma eternidade em futebol. Aos 75 min, um atraso mal direcionado de cabeça apanhou Valdir em contrapé e saiu pela linha de fundo, apesar de todos os esforços do keeper vestido de cinzento, que quase conseguiu manter a bola em jogo. A azzurra não tinha tido um único canto no jogo inteiro: aquele era o primeiro. E ainda por cima foi mal batido: Conti levantou demais a alça e a bola foi fugindo da boca da baliza, afastando-se, quase irremediavelmente, do lugar sagrado onde a felicidade acontece. Um italiano teimoso dividiu-a no ar contra dois brasileiros, e a esfera de couro ficou morta à entrada da área. Tardelli, meio desesperado meio temerário, decidiu rematar, mas o tiro saiu tão frouxo e enrolado que não parecia destinado a mais do que a sair de mansinho, sem perigo nem frisson. Mas eis que os deuses do futebol, que já tinham tudo planeado desde lá de cima, fizeram desabar no Sarrià todo o seu imenso poder: a bola, que parecia perdida, sem outra direção que não fosse a linha de fundo, começou a encaminhar-se ao de leve para a bota direita do semideus franzino do número 20 nas costas que, com uma rotação suave e pendular, encostou para a rede vazia.
Os brasileiros, que tinham saído das posições na direção da bola (um instinto natural e bastante comum), estavam fora do sítio, e enquanto Pablito fugia dali para festejar, ficou cravado na relva da pequena área o símbolo do seu fracasso: Júnior, como uma estátua, hirto, incrédulo, aparentemente incapaz de se mexer, de braço no ar a pedir offside. Não havia. Era ele mesmo que estava a meter aquele fedelho magro e pálido em jogo. Valdir também deu dois passos à frente, e esbracejou, apontando para o local do crime (não se percebe se também estaria a pedir fora-de-jogo ou a recriminar a sua incapaz retaguarda). Mas não havia nada, nem offside, nem bandeira levantada, nada de nada. O árbitro caminhava tranquilo para o meio-campo, Rossi e os seus muchachos corriam em espasmos eletrizados para junto dos seus, e enquanto tudo corria os brasileiros pareceram incapazes de soltar um gemido ou de dar sequer um passo. Ao fim de algum tempo, a bola lá foi ao meio, mas o estrago definitivo já estava feito: só uma hecatombe poderia torcer o destino de novo a favor do «11» brasileiro, e castigar com a partida os onze guerreiros azuis mais afoitos e corajosos que jamais tinham pisado um relvado. Podiam vestir camisas vermelhas e invadir uma ilha qualquer: teria dado o mesmo resultado. Um triunfo retumbante.
Verdade seja dita, o Brasil tentou de tudo naquele frenético quarto de hora final. Carregou com toda a artilharia, a cavalaria, os tanques e tudo o mais que tinha. Estranhamente, porém, seu Telê não voltou a mexer na equipa, e tomara muitos treinadores terem tido o luxo de dispor de craques bíblicos como Dirceu ou Roberto Dinamite naquela hora de aperto. A azzurra sentiu-se no seu habitat natural, e começou a carregar contra-ataques uns em cima dos outros, esticando os seus tentáculos supersónicos contra a atónita e nada flexível defesa brasileira, que bamboleava como uma dançarina do ventre. A poucos minutos do fim, a suprema ironia metafísica do 5 de Julho no velhinho Sarrià: livre da esquerda, cabeçada de Paulo Isidoro, bola colada nas luvas de Zoff mesmo em cima da linha de golo, alguns brasileiros gritam (ainda que timidamente) «é golo», «foi golo», e logo o gigante se levanta com a bola presa debaixo do braço a gesticular que não e a dizer que não e a sentir que não — a bola não tinha entrado e a tragédia verde-e-amarela já não tinha marcha-atrás. Como prenúncio de uma tempestade, a tensão dentro do estádio parecia redundar num silêncio líquido, mortificante, pontuado aqui e ali pelos urros roucos e incrédulos da italianada, e por um coro de buzinas a fazer lembrar a hora de ponta em Roma. Quando o reputado árbitro israelita Abraham Klein apitou para o fim do jogo, Dino Zoff, o dinossauro das balizas de 40 anos, tinha acabado de pontapear a bola em direção ao infinito. Zoff dirigiu-se com toda a calma para o banco de suplentes, procurou Bearzot (que era friulano como ele e, como todos os nativos dessa zona do nordeste de Itália, conhecido pela sua frieza e compostura), beijou-o na face sem dizer uma palavra e dirigiu-se para o balneário.
Os italianos nem sabiam como festejar, e os canarinhos pareciam não acreditar que o céu havia desabado sobre as suas cabeças e que Deus, afinal, não era brasileiro. Tinha acabado, numa apoteose contida, o jogo de uma geração. Evidentemente, só acabou no campo, porque se tornou eterno na imaginação dos adeptos, na pena dos cronistas e nas enciclopédias de futebol — o mundo do «jogo mais simples» nunca mais foi o mesmo depois de Sarrià. É claro, meio mundo culpou (e persiste nessa análise) o Telê, o Valdir e o Serginho, e o outro meio culpou a frieza dos italianos e o seu sentido prático. Os que não estavam nem num mundo nem no outro disseram que o Brasil jogou com 9, e que enfrentou a Itália perfeita, e nenhuma dessas atribuições está completamente correta: primeiro, porque Falcão, Sócrates, Zico e o Éder daquele Verão valiam por dois, o que significa que o Brasil jogou, no fim de contas (e mesmo sem goleiro e sem centroavante), com uma vantagem numérica que devia ter chegado para ganhar. Para além disso, o acossado Valdir não teve responsabilidade direta em nenhum dos golos sofridos pela canarinha. A Itália, por seu lado, não foi perfeita: apenas se limitou a aproveitar aquilo que o Brasil (que nunca tinha sido pressionado até então) ofereceu de graça. É inútil tentar explicar racionalmente o que aconteceu em Sarrià naquela tarde. O inefável, o metafísico e o irracional tinham atacado outra vez, desta feita no palco mais nobre e luminoso do futebol mundial. O patinho feio ganhou quando todas as forças cósmicas do universo se alinhavam contra ele. E nascia, ao mesmo tempo, a melhor equipa de sempre a não ganhar um Mundial.