Numa revista com capa assaz cínica, aprendi há pouco que para patinar num lago a indumentária correcta é castanho despretensioso com casaco de colarinho de pele, ao passo que para rinques privados deve usar-se fato de padrão espinhado cinzento e chapéu tirolês cinzento-acastanhado. Ah, inóspitos anos em que fui patinador e ninguém me falou nisto! E outra coisa. Tentava pacientemente fazer uma pirueta sob o olhar indolente de um jogador de hóquei que não tinha mais que fazer antes de os outros chegarem do que observar as minhas experiências. «O que não percebo sobre esse jogo», disse ele por fim, «é quem ganha?» Nunca me tinha ocorrido perguntar. Parecia entediado e lembrei-me de que as fotografias na revista mostravam que os utilizadores da cuidada indumentária para patinagem de lago e de rinque tinham olhos vazios que pareciam desmedidamente entediados. Ambiciono fazer a «rocker» e a «mohawk»[1]; posso até adquirir o fato apropriado para patinar num rio pequeno se descobrir qual é; mas um olhar entediado — ora, nem o hóquei me aborrece, a não ser que pare para o observar. Não concebo que quem o jogue pareça entediado. Mesmo Alexandre, que jogava um jogo mais criativo do que hóquei, entediou-se — pobre rapaz, devia ter escolhido patinagem artística quando era criança; não conheço nenhum ser humano que declare tê-la conquistado totalmente.

Gosto mais de patinar no lago ao luar. O espaço entre os montes terá sempre um pouco de neblina à sua volta, por mais limpo que esteja o céu. O luar, que parece tão lúcido e brilhante quando olhamos para cima, fica pardacento e esfumado à volta do lago e dos montes. A margem, que era como ferro debaixo do nosso calcanhar quando pisámos o gelo, fica indefinida quando olhamos para trás para a ver desde o centro do lago, como a memória de um sonho. O movimento é como voar num sonho; flutuamos livremente e o mundo flutua debaixo de nós; a nossa velocidade não requer esforço e não tem mérito, pois, aceleremos o que quisermos, nem deixamos nada para trás nem nos aproximamos de nada. Olhamos para cima. A neblina está lá por cima agora; vemos a lua num «halo irreal» no fundo de um «copo de cristal gelado», e nós próprios estamos num idêntico. A neblina, palidamente opalina, passa por ela vinda de lado nenhum e indo para lado nenhum. Como nós próprios, ela é o centro de um círculo de limites vagos e mais vago conteúdo, por onde passa uma corrente rápida e incessante de percepções através de um halo tenuemente luminoso de consciência.

Se ao luar a neblina toca nas emoções como leve e sedutora música, não o faz menos à luz do sol. Frequentemente, quando vou patinar ao nosso riozinho confortável, dois sinuosos quilómetros entre o açude e a ponte ferroviária, os montes estão cobertos por neblina prateada que os emoldura em vinhetas de cantos esbatidos. O tom é o das pinturas japonesas em seda branca, a sua cor visível suave e baça através do pó gélido de que se enche o ar. No açude os jogadores de hóquei divertem-se acaloradamente, mas não lhes presto atenção e num ápice estou para lá da primeira curva, onde os seus brados me chegam suavizados pelo ar como os de uma longínqua convenção de corvos políticos. O pó prateado caiu sobre o gelo, o suficiente para cobrir rastos e deixar-me uma placa limpa para gravar com bagos de uva e arabescos. O rio serpenteia mais à frente como uma estrada ininterrupta, riscada por sombras de suaves contornos violeta, anil e lavanda. De um lado, é ladeado por bétulas pendentes, carvalhos, bordos, nogueiras e pontuais aglomerados de abetos sob os quais o próprio ar parece tingido de verde. Do outro lado, massas arredondadas de arbustos e amieiros enrolam-se desde a ponta do gelo como nuvens de fumo vermelho. O rio afunila-se e curva, depois espraia-se num pântano, onde teço as minhas curvas à volta dos tufos cor-de-palha. Aqui, mesmo sendo a neve fresca, há rastos mais antigos do que os meus. Um corvo traçou o seu hieróglifo paralelo, pegadas alternadas com traços longos aonde arrastou o seu dedo médio, quando levantava a pata, e o esporão, quando a baixava. Debaixo de um arbusto pequeno, que hospitaleiramente espalhou as suas sementes, está um bordado delicado e meândrico de minúsculas patas de aves em curvas irregulares entrelaçadas em padrões circulares. Um deslize silencioso até à margem, onde entre galhos despidos pequenas formas esvoaçam e balouçam com notas conversacionais graves, leva-me à companhia de uma corporação de pintassilgos operários, metodicamente a espingardear pinhas de bétula e amieiro, enquanto conversam sotto voce. Debaixo de um carvalho pendente, os escritos na neve relatam que um esquilo caiu do ramo mais baixo, saltitou uns metros por ali sem destino e depois subiu a margem. Mais à frente, onde o rio volta a afunilar, a travessia a toda a velocidade de um coelho nervoso desenhou uma linha aparentemente tão livre de desorientação frívola que podia ter sido traçada por todas as solenidades da matemática. Não há rastos de perseguição; será que fugia da sua própria sombra ou da sombra de um falcão?

A neblina assenta agora no sopé dos montes, deixando as encostas mais elevadas quase imperceptivelmente cobertas e os cumes arredondados ligeiramente suavizados. As encostas cobertas de neve estão marcadas por arbustos e árvores tão finas e suaves que me recordam gravuras de Dürer: a pelagem do leão de São Jerónimo e as penas do galo no brasão com a caveira. De trás do véu do monte mais a sul chega uma leve nota:

De lábios desconhecidos que sopram
Uma trompa imaterial.[2]

É a primeira premonição longínqua do comboio da tarde; sustenho-me e fico demoradamente à espera do sinal seguinte. Por fim, ouço o seu pulsar, que cessa quando pára no apeadeiro sob o monte. Aí, a locomotiva invisível dispara uma coluna de vapor prateado acima da superfície da neblina, quebrando-se no topo em nuvens arredondadas, parecida precisamente com a fotografia da explosão de uma mina submarina, uma deflagração titânica de força numa pose estática, um géiser de água atomizada hirto como um ulmeiro congelado. Depois rápidas baforadas de fumo empoeirado, cuja torrente não alcança os meus ouvidos até o comboio furar com a sua cabeça negra para fora da terra das fadas e se transformar numa prosaica lembrança do jantar. Lá em cima, saltita na sua estreita ponte sobre o meu rio e desaparece entre os baixios. Na sua esteira a neblina volta a espalhar-se em camadas regulares. O silêncio renova-se e consigo escutar o ranger musical de quatro estorninhos numa macieira enquanto esvisceram umas quantas maçãs podres nos ramos mais altos. Volto-me e deslizo por entre as curvas e os braços do rio sem me demorar com adornos ou arabescos. No açude, o jogo de hóquei continua acalorado; os jogadores não prestam atenção ao comboio da tarde.

[1] Nome de movimentos de patinagem no gelo. [N. de T.]

[2] «From undiscoverable lips that blow / An immaterial horn.» Versos do poema «Autumn», de William Watson. [N. de T.]

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