Who hath lain alone to hear the wild goose cry?

 

De vez em quando calha-nos ficar acordados à noite. Nunca consegui perceber por que é que isto acontece. Aparentemente não advém de nenhuma predisposição para o mal-estar de indigestão, de nenhuma precipitação por consumir chá ou tabaco em excesso, de nenhum excitamento por causa de um incidente insólito ou de uma conversa estimulante. Na verdade, deitámo-nos com esperança numa boa noite de descanso. Quase imediatamente os suaves sons da floresta aumentaram, infiltraram-se na vastidão vazia do primeiro sono; os nossos pensamentos vagueiam ociosamente entre a realidade e o sonho; de repente — zás! — ficamos completamente despertos!

Se calhar o reservatório das nossas forças vitais está repleto para transbordar com um pequeno desperdício; ou se calhar, mais subtilmente, a  grande Mãe insista para que entremos no templo dos seus mistérios mais vastos.

Pois, ao contrário da mera insónia, ficar acordado à noite na floresta é agradável. O zelo ávido e ansioso pelo sono dá lugar a uma deliciosa indiferença. Não nos preocupamos. A nossa mente está embalada numa refinada suspensão etérea do critério e do pensamento. As sensações entram sorrateiras na nossa consciência e também sorrateiramente voltam a sair. Às vezes ficam completamente despidas para as inspeccionarmos; outras vezes perdem-se na neblina do meio-sono. Assentam sempre suaves dedos aveludados na sonolenta imaginação, de maneira a que nas suas carícias sintamos o espaços mais vastos de onde vêm. Com tranquilidade melancólica, as nossas faculdades recolhem. Audição, visão, olfacto — todas estão sobrenaturalmente dispostas a qualquer som, visão ou perfume florestal que esteja lá fora na noite; e contudo, ao mesmo tempo, a opinião activa dormita, por isso estas coisas pousam nela doce e enjoativamente como pétalas de rosa caídas.

Nestas circunstâncias, ouviremos o que os voyageurs chamam as vozes dos rápidos. Muitas pessoas nunca chegam a ouvi-la. Falam muito suavemente, baixinho e distintamente por debaixo do constante fragor e bater, mesmo por debaixo dos tinidos e murmúrios mais pequenos cuja qualidade os eleva acima dos sons mais fortes. São como as formas lacrimais que nadam através do campo de visão, que desaparecem tão depressa quando concentramos a visão para as observar e que reaparecem tão milagrosamente quando o nosso olhar vagueia outra vez. Na quietude da nossa nebulosa meia-consciência falam; quando prestamos atenção para escutar, somem-se, e só os tumultos e os tinidos permanecem.

Mas nos momentos em que são audíveis são muito distintos. Tal como às vezes um odor reaviva uma memória há muito desaparecida, também estas vozes, com a força de um amplo impressionismo, sugerem cenas completas. Ao longe está o plim-plum-plim de sinos e o ir e vir murmurante de uma multidão en fête, de maneira que sentimos subtilmente a velha cidade pardacenta, com as suas paredes, o mercado movimentado, a decente multidão campesina. Ou, nas pausas entre os sibilantes baques abrasivos das águas, soam vozes ténues e cristalinas a cantar intermitentemente, chamamentos, notas longínquas de risos, como se muitas canoas avançassem contra a corrente — só que a flotilha nunca se aproxima, nem as vozes aumentam. Os voyageurs chamam a estas pessoas da neblina Caçadores; e parecem assustados. A cada um a sua visão, de acordo com a sua experiência. As nações da terra sussurram aos seus filhos exilados nas vozes dos rápidos. Nem de propósito, segundo todos os relatos, sugerem sempre cenas tranquilas — um campo, uma feira de rua, uma manhã de domingo numa cidade com catedral, viajantes despreocupados — nunca os tumultos e as lutas. Talvez seja isto a compensação da grande Mãe para um modo de vida duro.

Não há nada tão fantasticamente irreal para explicar, nada tão concretamente real para experienciar, como este tom das águas rápidas. E quando ficamos acordados à noite, está constantemente a entoar o seu discreto apelo. Progressivamente, o seu encantamento hipnótico funciona. Os tinidos distantes soam mais alto e próximos quando atravessamos a fronteira do sono. E então, do lado de fora da tenda, algum ruído do bosque quebra a alinhamento. Um mocho pia, um noitibó canta, um ramo quebra-se sob o cuidadoso rondar de qualquer criatura nocturna — imediatamente os prados franceses amarelados pela luz do sol desaparecem — estamos a observar a imagem indefinida da lua a expandir-se pela superfície da nossa tenda.

As vozes dos rápidos caíram para o fundo, tal como ficaram os impetuosos sons do rio. Na floresta há um grande silêncio, mas não há quietude. O noitibó agita para cima e para baixo a curta curva da sua habitual canção; vezes sem conta o mocho pronuncia o seu  rápido uuu, uuu, uuu. Estes, com o incessante bater dos rápidos, são a teia na qual a noite risca os mais delicados filamentos do imprevisível. Quebrantos longínquos, simples e expressivos; passadas furtivas mesmo à mão; o ténue arranhar de garras; um delicado funf! funf! funf! indagador; o súbito límpido cô-cô-cô-úu altaneiro do pequeno mocho; o pesaroso e longo grito da mobelha, transbordante com o espírito da solidão; o chamamento etéreo das aves migratórias lá no alto; um tap, tap, tap, entre as folhas caídas, subitamente silenciado; e depois, por fim, da moita mesmo ali ao lado, a magnífica pureza prateada da escrevedeira de garganta branca — o rouxinol do Norte — a estremecer com o êxtase da beleza, como se um raio cintilante de luar se transformasse em som; e durante isto tudo a indefinida figura da lua a escalar o topo da nossa tenda — estas coisas combinam-se subtilmente, até que por fim o grande Silêncio do qual fazem parte abarca a noite e empurra-nos para a contemplação.

Não há bebida mais gratificante do que a taça de água da nascente que bebemos nestas alturas; nenhum momento mais refrescante do que aquele em que olhamos à nossa volta para a floresta escurecida. Afastámos de nós a sonolência dos sonhos com o cobertor quente. Uma frescura, física e espiritual, banha-nos da cabeça aos pés. Todos os nossos sentidos estão afinados nas últimas sensações. Ouvimos os errantes nocturnos mais pequenos; vislumbramos os maiores. Um leve e inquisitivo perfume da humidade da floresta alcança-nos as narinas. E de certa forma, misteriosamente, de uma maneira que não é para ser compreendida, as forças do mundo parecem suspensas, como se um toque pudesse cristalizar infinitas possibilidades em infinita força e movimento. Mas falta o toque. As forças pairam no limiar da acção, ignorando os pequenos sons. Com toda a humildade e deslumbramento, somos habitantes do Lugares Silenciosos.

Nestas altura, encontraremos aventuras. Uma noite retirámos catorze porcos-espinhos do acampamento. Perto da Baía de McGregor descobri na erva alta do meu acampamento nove veados, a aparar a relva como muitos fantasmas sublimes. Um amigo conta-me sobre um cervo que todas as noites dormia à entrada da sua tenda e a um metro da sua cabeça, provavelmente para se proteger dos lobos. A mãe tinha sido, muito provavelmente, morta. No instante que o meu amigo se movia para a entrada da tenda, a pequena criatura fugia, e invariavelmente à primeira luz do dia já tinha desaparecido. Ursos noctívagos à procura de carne de porco não são insólitos. Mas mesmo que o nosso interesse não dê com nada a não ser morcegos, as sombras da floresta e as estrelas, aqueles breves momentos das forças adormecidas do mundo são uma experiência física que não pode ser adquirida de outra forma. Não podemos conhecer a noite por nos levantarmos; ela levantar-se-á connosco. Só por chegarmos até ela pelos limites do sono é que podemos estar com ela cara a cara na sua intimidade.

O vento nocturno do rio, ou dos espaços abertos da floresta, arrefece-nos ao fim de pouco tempo. Começamos a pensar nos cobertores. Pouco depois enrolamo-nos na sua suave lã. Subitamente amanhece.

E, é estranho dizê-lo, não temos de pagar com um dia em que passamos fatigados. Podemos querer recolher-nos às oito em vez de às nove, e podemos adormecer com uma rapidez sem precedentes, mas a nossa jorna começará com clarividência, avançará vigorosa e findará ainda com reservas. Sem langor, sem entorpecedora dor de cabeça, sem exaustão, prossegue a nossa experiência. Desta vez as nossas duas horas de sono foram tão eficazes como se tivessem sido nove.

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