A chuva cintilou pela janela nocturna com uma miríade de pés. Houve um gemido lá fora na escuridão, a voz de todos os temores inomináveis. A inquieta chama da vela estremeceu à minha cabeceira. O gemido subiu até ser um grito e a pequena chama saltou com medo e quase desertou da sua coluna branca. Dos cantos do quarto precipitaram-se as sombras libertadas. Espectros negros dançaram em êxtase sobre a minha cama. Adoro o ar fresco, mas não posso permitir que chacine o corpo brilhante e delicado da pequena chama minha amiga, a camarada que se aventura comigo nas solidões depois da meia-noite. Fecho a janela.

Falam do poder de fogo de uma lâmpada eléctrica. O que querem dizer? Não pode ter a mais ténue centelha do verdadeiro poder da minha vela. Seria mais correcto declarar, numa invertida e tonta comparação parecida, o valor «daquelas delicadas irmãs, as Plêiades». Aquela ponta de pó estelar, as Plêiades, admiravelmente remota na noite mais profunda, nas profundezas onde a luz quase falha, não tem a força da cabeça de um fósforo; contudo, ainda apreensivo para o espírito apesar de trémulo no limite da visão, e às vezes mesmo desaparecendo, traz à mente a distinção entre os traços remotos e intricados — escondidos bem atrás de todos os nossos pensamentos reconhecidos — que raramente vemos com atenção. Gostava de ter conhecimento de uma lâmpada de arco que consiga fazer isso. Por isso a vela estelar para mim. Mais nenhuma luz segue tão intimamente a sugestão mais fantasmagórica de um autor. Sentamo-nos, eu e a vela, entre as sombras que estamos a conquistar e às vezes levantamos o olhar da página luminosa com um sorriso para contemplar as hostes do inimigo antes de elas nos aniquilarem; como certamente o farão. Tal como eu, a vela é mortal; extinguir-se-á.

Como o próprio livro de cama deve ser um lampião, para ajudar na sua iluminação, lâmpadas toscas são inúteis. Apagariam o livro. A luz para este tipo de livros deve ser consonante com o mesmo. Deve ter, como o livro, um brilho limitado, pessoal, suave e reconfortante; o círio solitário ao lado do único crente num santuário. É por isso que nada se compara à intimidade de uma luz de vela para um livro de cama. É um coração vivo, resplandecente e quente na noite profunda, a arder só para nós, deixando ao largo as esguias e longas sombras. Aí se mantêm os espectros monstruosos do nosso quarto nocturno, a guarda avançada da escuridão do mundo, mantidos à distância pela nossa corajosa luzinha, mas prontos para rapidamente avançar e nos submergir na escuridão original.

O vento geme lá fora; males antigos estão à solta e a vaguear em agonia. A chuva guincha pela janela. Por um segundo, só por um segundo, a vela sentinela é abalada e arde azul com medo. As sombras avançam imediatamente. A pequena chama recupera e basta olhar para o seu inimigo, a escuridão, e de volta para o seu lugar regressa o velho inimigo da luz e do homem. Para mim a vela minúscula, mortal, quente e corajosa, um lírio dourado num caule de prata!

«Quase todos os livros servem para livro de cama», disse-me uma vez uma mulher. Estive para responder apressadamente que quase qualquer mulher serve para esposa; mas não é dessa maneira que fazemos os pecadores ver os pecados. A sua ideia era a de que um livro de cama é soporífero e que por isso ela até defendia a leitura de discursos políticos. Isso seria um acto imoral. Certamente adormeceríamos; mas em que estado de espírito! Entraríamos no sono de olhos fechados. Seria como morrer, não apenas sem absolvição, mas no próprio acto de pecar.

Sobre que livro brilhará? Pensam em Platão, Dante, Tolstoi ou num Livro Azul para essa ocasião! Eu não consigo. Não me servem — não gosto deles. Não escrevo sobre vós. Sei que os homens que nomeei são transcendentes, os mais iluminados. Mas às vezes sou obrigado a confessar que me aborrecem. Embora os seus pés sejam de barro e assentem na terra, exactamente como os nossos, as suas frontes estelares são por vezes obscurecidas entre nuvens remotas. Por mim, são demasiado grandes para companheiros de cama. Não me imagino, levando a minha luz frágil e circunscrita, a seguir (de pijama) a figura escultural do florentino até onde persegue, alheado no seu manto de piedade austera, as profundezas audíveis do Hades. O Hades! Não é para mim; não depois da meia-noite! É deixar ir quem gosta.

Quanto ao russo, vasto e perturbador, recuso abandonar tudo, incluindo a almofada e os cobertores, para o seguir até à gélida tranquilidade da atmosfera, onde até as cores são espículas prismáticas de gelo, para cismar sobre a órbita errática da pobre bola de lama lá em baixo chamada terra. Sei que também é o meu mundo; mas não posso fazer nada sobre isso. Já é tarde, o fim de um dia cansativo, e àquela hora, para fazer serão a moldar um planeta novo e melhorado a partir do pó cósmico. Ao pequeno-almoço nada de útil teria sido alcançado. Estaríamos onde estávamos na noite anterior. O trabalho é demasiado moroso, assim que a almofada esteja confortavelmente disposta.

Pois a verdade é que há alturas em que estamos demasiado exauridos para permanecer atentos e gratos sob a visão aperfeiçoadora, generosa mas severa, dos videntes. Há alturas em que não queremos ser melhores do que já somos. Não queremos ser edificados e aperfeiçoados. À meia-noite, fora daqui com esses livros! Quanto aos eruditos literários, os sumo-sacerdotes do Templo das Letras, esporadicamente é estimulante e útil que um acólito lhes açoite uma bem assente com um turíbulo e fuja a sete pés, para variar, para alguma coisa fora do âmbito do breviário. A meia-noite é a altura em que nos podemos recordar, com deleite libertino, dos títulos de todas as grandes obras que cada cavalheiro deveria ter lido, mas que alguns entre nós não leram. Pois há quase tanto disparate obscuro escrito sobre literatura como há sobre teologia.

Há poucos livros que combinem com a meia-noite, a solidão e uma vela. É muito mais fácil falar sobre o que não nos agrada do que sobre o que está mesmo correcto. O livro deve ser, de qualquer forma, algo benévolo por um pecador nosso semelhante. A esperteza seria repelente a esta hora. A esperteza, seja como for, é hoje a medida da mediocridade; somos todos infernalmente espertos. Ao primeiro paradoxo espirituoso e perverso apaga-se a vela. Apenas os espíritos doentes anseiam a esperteza, tal como um corpo enfermo se vira para a bebida. A vela tardia lança o seu feixe a uma grande distância; e os seus raios tornam transparente muito do que parecia denso e importante. O espírito a descansar ao lado daquela luz, quando a casa dorme, e os assuntos decorrentes do mundo premente diminuíram até às suas proporções correctas porque as vemos à distância a partir de outro, e mais tranquilo, lugar nos céus onde o dever, a honra, os argumentos espirituosos e a lógica controversa das grandes questões aparecem de tal forma que dificilmente deixarão fóssil na lama endurecida que agora os cobrirá — nessa altura certamente que o espírito escarnece da esperteza.

Pois apesar de a essa hora o corpo poder estar exausto, o espírito está límpido e lúcido, como o de um homem recuperado de um estado febril. Não tem ilusões. Tem um foco preciso, pequeno e estelar, como uma chama limpa e solitária deixada a arder num altar de um santuário onde resta apenas um. Um livro que se aproxime dessa luz na privacidade desse local deve vir, por isso, com páginas honestas e francas.

Então gosto de Heine, contudo. O seu escárnio dos sérios e imponentes, naquelas frases que são tão corajosas como estandartes ao vento, é consolador e tranquilizante. As nossas próprias convicções secretas e estranhas, nunca exprimidas por não serem lícitas e por serem difíceis de pôr em palavras articuladas, parecem então ser ouvidas em voz alta na dicção suave, fácil e confiante de um imortal que tem a voz de despreocupação de quem observou, divertiu e afrontou os altos deuses em ávida e secreta discussão sobre a melhor forma de manter os dourados e ornamentos no corpo do mal que estes criaram.

O explorador de primeira água, Gulliver, também fica bem à luz da íntima vela. Já voltaram a ler a Viagem ao País dos Houyhnhnms? Experimentem lê-la isolada com tempo. Swift sabia tudo sobre os nossos problemas contemporâneos. Pôs tudo por escrito. Por que lhe chamavam misantropo? Ao ler aquela última viagem de Gulliver na selecta intimidade da noite sou forçado a perguntar não sobre o ódio de Swift para com a humanidade, não sobre o escárnio dos seus pares, não sobre a estranha e temível natureza deste génio que assim nos tinha em consideração, mas sim em como é que, depois de tão sábia e dolorosa revelação das coisas que insistimos fazer, das razões para as fazermos e do que acontece depois de as fazermos, os homens não mudam. Parece impossível que a sociedade possa permanecer inalterada, depois da surpresa que a sua aparência lhe terá causado quando viu o seu rosto naquele espelho implacável. Em vez disso apontamos para o facto de no final Swift ter perdido o juízo. Bem, isso não foi grande surpresa.

Livros assim, e a «Ilha dos Penguins», de France, não são livros de cama perturbadores. Esclarecem a alma agitada e revoltada, aliviando-a com alguma expressão livre para os pensamentos acusadores e interrogadores concebidos pelos assuntos do dia. Mas não se dão prontamente à prateleira ao lado da cama. Dependem do tipo de dia que tivemos. Sterne fica mais próximo. Preferíamos ser transportados para o mais longe possível de todas as perturbações do envelope de nuvens da terra e «Tristam Shandy» encontra-se seguramente ao sol.

Mas os melhores livros para a noite são os de viagem. Uma vez perdi-me todas as noites durante meses com Doughty na «Arabia Deserta». É um autor anguloso. A uma grande distância das coisas fáceis do dia-a-dia, como as que temos na imprensa diariamente, que tomamos por inglês, leva-nos imprudente e precipitadamente para o meio das ervas amargas e dos rochedos austeros da tórrida e extensa vastidão de Doughty; apenas para ficarmos desnorteados, com as canelas partidas e ao princípio com um fadiga imensa, numa terra estranha de sol inclemente, fome, minerais brilhantes, remotas rochas plutónicas e do próprio Adão. Mas assim que nos acostumamos e reconhecemos a linguagem — leva tempo — deixa de haver Londres depois de escurecer até que, como um viajante que retorna de uma terra esquecida, aparecemos novamente vindos do interior da Arabia na costa do Mar Vermelho, sentindo-nos como se tivéssemos perdido o contacto com o mundo tal como o conhecíamos. E se isto não significa boa literatura, não conheço mais nenhuma prova.

Porque outrora houve um pai que todas as noites tinha por hábito ler aos filhos uns capítulos da Bíblia — e cordialmente odiavam esse seu hábito —, também tenho esse livro; embora tema tê-lo apenas por saber que ele, o velho crente austero, ficaria contente por sabê-lo. Ele pensava no futuro quando lia a Bíblia; leio-a pelo passado. Os nomes familiares, o ritmo reconhecível das suas palavras, as suas maravilhosas histórias bem recordadas de coisas há muito passadas — como a de Ester, uma das melhores em inglês —, a raiva eloquente dos profetas pelas pessoas da altura, que pareciam vivas mas que estavam na realidade mortas, tudo é consolo e asilo para mim. E agora que penso nisso, é o nosso asilo e consolo que queremos num livro de cama.

 

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