Falar de Santarém é falar de um planalto sobre o qual foi edificada uma cidade. Nas zonas baixas contíguas ao planalto, a cidade cresceu com características de subúrbio, plantando grandes superfícies comerciais às quais os habitantes do planalto são forçados (nem tanto, mas prevaleça o estilo) a descer. E pouco mais descem, sendo surpreendente o desconhecimento que alguns autóctones mais urbanos revelam sobre o concelho. Talvez por exigir o mesmo esforço descendente, o rio Tejo tem estado muito ausente das conversas sobre o presente e o futuro, embora seja muito usado para postais panorâmicos e citações literárias.

Por razões que só a psicanálise poderá explicar, os nativos de Santarém gostam de reclamar para a cidade toda a espécie de títulos honoríficos, fazendo dela, consoante a ocasião e o pendor, capital do Gótico, capital do Teatro Amador, capital da Gastronomia, capital da Liberdade, capital do Ribatejo e, com enfado burocrático e administrativo, capital de concelho e de distrito. Tais distinções poderiam corresponder a virtudes que tornassem mais aprazível a vida dos nativos e que atraíssem colonos para a necessária revitalização. Infelizmente, não é o caso. Santarém alimenta-se essencialmente de fantasias sobre o presente e de tradições em fase de decomposição mórbida, cultivando uma mentalidade de grande aldeia que ocasionalmente se abre para o mundo, relutante e desconfiada. 

No centro histórico, há abundância de igrejas, generosamente espalhadas por ruas e praças; há também, e com muito maior abundância, casas abandonadas e decrépitas, em risco de ruína, para gáudio dos pombos e das ratazanas, que agradecem a atenção emprestando à tessitura urbana um inconfundível e ancestral odor. Talvez por o passado estar tão presente nas ruas e nos hábitos dos nativos, Santarém parece não precisar de museus, ao contrário de tantas outras cidades que materializam dessa forma a importância da arte, da história e da cultura.

Em tempos, houve um jardim central com árvores de grande porte, com um lago e uma biblioteca. A modernidade, vinda do sul e encontrando uma cidade mal protegida por vestígios de muralhas, encarregou-se de o transformar num terreiro de pedra, com parque subterrâneo modernamente concessionado, que convida ao martírio nas tardes de canícula de uma das cidades mais quentes do país. Por diversas razões, os ingénuos e incautos nativos, que começaram por aplaudir a melíflua voz que lhes prometia a eternidade e quinze minutos de fama televisionada, zangaram-se com a modernidade e regressaram aos velhos hábitos, mas agora com menos sombra.

De resto, Santarém é uma cidade pacata. Tão pacata que até se esquece de se comparar com outras cidades de semelhante dimensão que têm projectos estruturantes e visões estratégicas de longo prazo. Tão pacata que se esquece de olhar para esse mapa que a coloca no centro de um país pequeno, a uma pequena distância de Lisboa. Trata-se de uma estirpe de pacatez que chega a ser doentia, resquício de uma mentalidade feudal que ainda persiste no trato e no espírito de casta, que aplaude acriticamente a tradição, que compactua com o compadrio, que empurra novas gerações para outras cidades onde o presente vibra e o futuro canta mais alto para todos.

Assim, o que se pode esperar de uma cidade orgulhosamente envelhecida e, por ignorância ou sobranceria provinciana, tão esquecida de tudo o que a rodeia? Que rejuvenesça, que se deixe colonizar, que se transforme e se reconstrua. Se alguma tradição morrer pelo caminho, esse será um pequeno preço a pagar pela sobrevivência. É sempre bom lembrar — e, melhor ainda, constatar — que algumas tradições já não são o que eram.

Partilhe:
Facebook, Twitter, Google+.
Leia depois:
Kindle