1. Introdução

Na filosofia moral recente, a importância do cuidado tem sido reconhecida, tanto em relação às atitudes morais que tem por base, tais como a solicitude, a atenção e a responsividade, como à prática do cuidado no atender às necessidades dos outros em contextos do quotidiano. No entanto, o propósito central da obra de Carol Gilligan, inicialmente estabelecido no seu estudo seminal In a Different Voice, não foi ainda inteiramente reconhecido. A ideia de uma «moralidade feminina» é ao mesmo tempo tão provocadora e tão razoável que nos esquecemos de que é acima de tudo feminista, e que reivindica uma forma alternativa de moralidade. Ao procurá-la, o tratado de Gilligan procura identificar uma perspectiva ética diferente, até então negligenciada, mas universalmente presente ― uma perspectiva fácil de ignorar porque se relaciona com mulheres e actividades de mulheres. A este respeito, a abordagem de Gilligan não é essencialista, mas totalmente comum, imbuída da perspectiva do quotidiano.

A ética do cuidado evoca um apelo ao «realismo», no sentido que lhe é dado por Cora Diamond em The Realistic Spirit: a necessidade de ver ou de atentar naquilo que se encontra mesmo aí à mão. As reflexões sobre o cuidado reconduzem a ética ao seu devido domínio, a prática comum ― de forma semelhante ao modo como Wittgenstein procurou reconduzir a linguagem do seu uso metafísico ao seu uso quotidiano, onde as palavras têm significados comuns apreendidos pelos falantes da língua.

Segundo esta perspectiva, a ética não é apreendida por referência a um conjunto enumerável de regras preexistentes ― nem tampouco apelando a um domínio moral metafisicamente independente. Pelo contrário, está incorporada em situações, afectos e práticas humanas. A ética do cuidado insiste na importância do cuidado e de prestar atenção aos outros; em particular, diz respeito àqueles cuja vida e bem-estar dependem de padrões de cuidados diários, personalizados e contínuos. Além disso, a ética do cuidado tem por base uma análise das condições históricas que promoveram uma divisão do trabalho moral que desvaloriza social e moralmente as actividades de cuidado. A relegação das mulheres à esfera doméstica traduz-se numa despromoção de actos e de preocupações legítimas ao estatuto de meros sentimentos «privados», desprovidos de peso moral e político. É porque o trabalho e as actividades de cuidado recaíram tradicionalmente sobre os ombros das mulheres que a questão do cuidado diz primariamente respeito às mulheres.

Ao propor uma valorização de atitudes morais tais como o cuidado, a atenção aos outros e a solicitude, a ética do cuidado contribuiu para modificar concepções dominantes da ética e do modo como compreendemos a moralidade. Além disso, a ética do cuidado introduz uma dimensão ética na política ao levar a cabo uma crítica de teorias da justiça proeminentes (cf. Diamond 1991). O seu feito mais significativo, porém, consistiu em dar a devida representação ao eticamente comum. A ética do cuidado chama a nossa atenção para aquilo que somos incapazes de ver, não por estar escondido ou num lugar secreto, mas por ocasionalmente estar mesmo diante dos nossos olhos.

Para situar esta discussão, observe-se que a ética do cuidado enquanto algo que está enraizado no quotidiano prefigura a definição de Wittgenstein do comum: «O que estamos a fazer são observações acerca da história natural dos humanos (…) constatações, das quais ninguém duvidou; e não são observadas por estarem diante dos nossos olhos de uma maneira contínua» (IF, §415).[1] Wittgenstein aborda a questão daquilo que é «importante» e o facto ― concretamente substanciado pela ética do cuidado ― de que o que nos parece importante muitas vezes não o é de todo:

De onde provém a importância da nossa investigação, uma vez que ela parece destruir tudo o que é interessante, isto é, tudo o que é grande e importante? (…) Mas só destruímos castelos de cartas. (IF, §118)

Este artigo visa conjugar a «destruição» ou a «subversão filosófica» a que Wittgenstein se refere e o apelo ao comum na ética do cuidado. O artigo procura uma ligação entre a ética do cuidado e o meu interesse de longa data pela filosofia da linguagem comum tal como representada por Wittgenstein, Austin e Cavell, nomeadamente ao servir-se das suas ideias para ilustrar uma perspectiva feminista.

 

2. Um Tema Sensível

O cuidado é um tema sensível ― requer delicadeza no seu manuseamento. Num primeiro sentido, quando genericamente apresentada, a reflexão sobre o cuidado tende a ser alvo de objecções ou até mesmo de uma rejeição imediata. Trata-se, portanto, de um tópico «sensível». À primeira vista, parece opor uma concepção «feminina» e uma concepção «masculina» da ética. Tal como sugerido por Gilligan e Noddings, a ética feminina é definida pelos conceitos de atenção, preocupação com os outros e um sentido de responsabilidade que reflecte laços pessoais próximos, enquanto que a ética masculina é definida pelos conceitos de direitos, justiça e autonomia. Muito se tem dito sobre as dificuldades associadas a uma distinção entre as éticas feminina e masculina enquanto ética do cuidado e ética da justiça, respectivamente, que corre o risco de reproduzir os próprios preconceitos enraizados que a ética do cuidado procura combater. Tal como propôs Gilligan (1987), podemos argumentar que, longe de se tratar de conceitos opositivos, cuidado e justiça são, na verdade, perspectivas complementares, e a escolha entre um e outro depende do contexto de aplicação (a este respeito, recorde-se o célebre modelo wittgensteiniano do coelho-pato, que envolve uma mudança voluntária de perspectiva de uma possível representação a outra). Há, pois, outro sentido em que o tema do cuidado é um tema sensível. Porque o cuidado está fundamentalmente incorporado numa forma de vida, que se desenvolve num contexto de relações e relacionamentos, trata-se de um tema que apela a um sujeito que é, por definição, atencioso e cuidador.

Além de constituir um novo ponto de partida, a reflexão sobre o cuidado afecta uma transformação do próprio estatuto da ética. A questão da sensibilidade está de facto no cerne do cuidado. Urge, portanto, compreender aquilo que este importante conceito significa e que tipo de sensibilidade está envolvida na ética do cuidado. De facto, não se trata tanto de uma noção de sentimento ― no sentido de Hume, por exemplo, a ser contrastado com a racionalidade ― mas de percepção. E no entanto, não é mais do que uma percepção comum. É aqui que devemos olhar para o ponto de partida de uma modificação do quadro ético.

A própria Gilligan, ao regressar à antítese entre as perspectivas do cuidado e da justiça em 1987, começa com o coelho-pato, a ilustração paradigmática da mudança perspectival (cf. Gilligan 1987, 31). Tal como Wittgenstein, ao chamar a atenção para esta imagem, ela não procura introduzir um relativismo acerca da perspectiva moral, senão motivar uma série de observações importantes. Em primeiro lugar, indica a possibilidade de uma mudança de ponto de vista, mesmo quando um ponto de vista domina necessariamente essa escolha. Para além disso, sugere a necessidade de atender a uma perspectiva de cada vez (ou, de outro modo, a impossibilidade de ser proficiente em mais do que uma perspectiva ao mesmo tempo). Por último, mostra a importância do contexto na representação da escolha. Por analogia, a ética torna-se uma questão de enfatizar, por cada situação moral que examinamos, não só «orientações» visuais diferentes, mas um certo quadro de percepção (cf. Gilligan 1987, 32). Gilligan sugere uma abordagem Gestalt à ética, insistindo, como Wittgenstein, na necessidade de escolher aspectos de relevo contra um determinado pano de fundo.

Cora Diamond define a especificidade desta abordagem deste modo:

As nossas concepções morais particulares emergem contra um pano de fundo mais geral de pensamento e de sensibilidade. Diferimos no modo como permitimos (ou não permitimos) que os conceitos morais moldem as nossas vidas e as nossas relações com os outros, no modo como estes conceitos estruturam a nossa compreensão daquilo que fizemos ou experienciámos. (Diamond 1997)

Esta abordagem perceptual não será apenas situada e dinâmica mas particularista. É apenas através da atenção aos aspectos particulares, por oposição aos aspectos gerais, de uma situação que encontraremos a perspectiva certa na ética ― e, já agora, na estética. Há aqui uma referência adicional a Wittgenstein, para além da Gestalt seminal do coelho-pato, que tem que ver com o seu particularismo, ou seja, a «atenção ao particular».

Wittgenstein ilustrou isto com o exemplo da palavra «jogo», em relação à qual observou (1) que mesmo se houver algo comum a todos os jogos, não significa que seja isso que temos em mente quando chamamos jogo a um jogo particular, e (2) que a razão pela qual chamamos jogos a tantas actividades diferentes não implica que haja algo comum entre elas, mas apenas uma «transição gradual» de um uso para outro. No que diz respeito à palavra «bom», ele observou que o modo distinto através do qual uma pessoa A convence uma pessoa B de que determinada coisa é boa estabelece, a cada nova ocasião, o significado segundo o qual a palavra «bom» é usada nessa discussão (cf. Wittgenstein 2016, 325).

Esta observação é surpreendente se considerarmos que os escritos publicados de Wittgenstein contêm relativamente poucas reflexões morais explícitas. No Tractatus Logico-Philosophicus (1922), Wittgenstein tomou uma posição muito firme contra a própria existência da filosofia moral, dada a sua insistência na ideia de que o propósito da filosofia é a clarificação lógica de proposições. A própria filosofia não é um corpo doutrinal, mas uma actividade, que consiste em tornar claros os nossos pensamentos (cf. TLP, 4.112). Desta descrição da tarefa central da filosofia, segue-se que só pode haver tal coisa como «filosofia moral» se houver um conjunto de proposições que a filosofia moral possa tratar de clarificar. No entanto, Wittgenstein insistiu também, por razões que ultrapassam o âmbito deste artigo, que não pode haver proposições da ética (cf. TLP, 6.42). Ainda assim, adoptar uma abordagem wittgensteiniana em relação à moralidade não implica que se subscreva um programa relativista ou céptico. Wittgenstein descreveu o Tractatus, onde negou a existência da filosofia moral e de proposições da ética, como tendo um propósito ético. Ao insistir neste propósito ético, a sua intenção não era representar o Tractatus como uma obra inteiramente indiferente à filosofia moral. Como escreve Diamond, o propósito era antes mostrar que a ética não advém da teorização:

A sua posição era (tanto nessa época como mais tarde) que uma obra literária como, por exemplo, um romance ou um conto, poderia ter um propósito moral mesmo na ausência de qualquer ensinamento ou teorização moral. Tal trabalho poder-nos-ia ajudar a lidar com as tarefas da vida no espírito adequado. Era suposto ser este o efeito do Tractatus. (Diamond 1996)

O propósito de tal pensamento não é rejeitar a ideia de moralidade, nem tampouco de filosofia moral, entendida num sentido específico, mas de uma teoria moral sistemática. Note-se que certos pensadores anti-teóricos encontram, ainda assim, nestas observações uma forma específica de realismo. Isto é evidente, por exemplo, nos ensaios de John McDowell sobre Wittgenstein (cf. McDowell 1981) e no próprio trabalho de Diamond, particularmente em The Realistic Spirit (cf. Diamond 1991). O realismo que aqui está em causa não deve, no entanto, ser descoberto numa realidade metafísica ou num domínio de objectividade moral, mas produzido pela atenção ao detalhes, àquilo que se encontra diante dos nossos olhos. É neste contexto que Diamond e McDowell criticam assim aquilo a que chamam a visão de esguelha. Por exemplo, procuramos determinar a natureza da obrigação inerente a uma regra relacionando-a com algo na realidade em vez de olhar para o modo comum de dizer o que a regra requer. Como diz Diamond:

Temos, por exemplo, a ideia de que olhamos para a actividade humana de seguir uma regra «de esguelha» e, a partir deste ponto de vista, perguntamos se há ou não algo de objectivamente determinado que a regra exige que seja feito na aplicação seguinte. (Diamond 1989, 30)

Assim, uma análise das nossas práticas morais particulares é mais realista (no sentido proposto por Diamond) do que a busca teórica por uma realidade moral. Estamos aqui a lidar com uma filosofia moral inscrita nas nossas práticas comuns e que emerge de questões particulares. Ao propor um reconhecimento de valores morais tais como o cuidado e a atenção aos outros, a ética do cuidado contribuiu para modificar a concepção dominante de ética e alterou profundamente o modo como olhamos para ela. Deu voz ao comum. A ética do cuidado chama a atenção para o comum, para aquilo que somos incapazes de ver, para aquilo que está mesmo diante dos nossos olhos e é, por essa mesma razão, invisível para nós (cf. Laugier 2020). É uma ética que dá voz e atenção a seres humanos que são desvalorizados precisamente porque desempenham tarefas desapercebidas, invisíveis.

 

3. Realismo Comum

O propósito de Diamond, servindo-se de Wittgenstein, é caracterizar uma ética do particular (de atenção ao particular), e esta perspectiva é partilhada pela ética do cuidado: a atenção à vida comum. O realismo na ética, segundo esta visão, consiste em regressar à linguagem comum, examinar as nossas palavras e prestar-lhes atenção e cuidar delas: cuidar das nossas palavras e expressões, assim como dos outros no dia-a-dia.

A Filosofia da Linguagem Comum ensina-nos, de facto, que as nossas vidas éticas não podem ser apreendidas pelos conceitos tradicionais da filosofia moral. Nas suas obras tardias, que convergem com as ideias de Diamond, Hilary Putnam propõe abandonar uma certa forma de realismo na ética e a possibilidade de um terreno comum para discussões éticas:

A nossa vida ética não pode ser apreendida por meia dúzia de palavras como «dever», «certo», «obrigação», «equidade», «responsabilidade», «justiça», e os problemas éticos que nos dizem respeito não podem ser reduzidos a debates entre as proposições metafísicas dos proponentes do direito natural, do utilitarismo, do senso comum e por aí em diante. (Putnam 2020, 489)

Putnam, tal como Diamond, faz ecoar o legado de Murdoch: o cuidado com aquilo que dizemos.

[Há] proposições éticas que, sendo mais do que descrições, são também descrições. (…) estamos «emaranhados» em palavras descritivas como «cruel», «impertinente», «irreflectido». (Putnam 2021, 489-490)

Estes termos emaranhados, que são «tanto avaliativos como descritivos» e comuns, estão, segundo Putnam, no cerne da nossa vida ética: a elucidação dos seus usos é parte do conhecimento moral, que é conhecimento ou ética sem ontologia ou metafísica. «J. McDowell e eu insistimos ambos nisto, e estamos ambos cientes da nossa dívida para com Iris Murdoch» (Putnam 2020, 490).

Regressaremos abaixo ao legado de Murdoch e ao seu recurso à visão e textura comum da linguagem. Ao contrário da metafísica, a abordagem ética deverá trazer-nos de volta à terra áspera da linguagem comum. Não há nada de ontológico nesta abordagem realista à ética: tanto a lógica quanto a ética podem ser encontradas «, naquilo que fazemos (…) e há uma espécie de fantasia que nos impede de olhar para aí» (Diamond 1991, 6). Os elementos de um vocabulário ético fazem apenas sentido no contexto dos nossos usos, dada uma forma de vida particular; podemos dizer que «ganham vida» no âmbito de uma praxis específica. O contexto confere às palavras o seu significado; um significado que nunca é fixo e é sempre particular. «Uma palavra só tem significado no âmbito da prática da linguagem» (Wittgenstein 1954, 344).

O significado não é só definido pelo uso ou contexto (tal como muitos filósofos reconheceram), mas está inscrito e apenas é perceptível contra o pano de fundo dinâmico da prática linguística, que é modificada por aquilo que fazemos com ela.

A palavra «belo» está ligada a um jogo particular. Na ética passa-se algo análogo: o significado da palavra «bom» está ligado ao próprio acto que esta modifica. Só podemos estabelecer o significado da palavra «beleza» ao considerar o modo como a usamos. (Wittgenstein 1979, 35)  

Poderíamos ter então a tentação de ligar a ética a uma ontologia particularista, que colocaria particulares abstractos (e.g., da percepção) no centro de uma teoria do valor ou de um realismo de particulares. No entanto, isto seria perder de vista o significado da ideia de semelhança de família, que é precisamente a recusa de uma ontologia, incluindo particulares abstractos. Wittgenstein critica esta ânsia pela generalidade ― a tendência de procurar por algo comum a todas as entidades que habitualmente subsumimos sob um termo geral. A ideia de que um conceito geral é a propriedade comum aos seus casos particulares está relacionada com outras ideias primitivas e excessivamente simples acerca da estrutura da linguagem (cf. Wittgenstein 1969, 17). Aquilo que é preciso, tal como Putnam sugere, é uma ética sem ontologia e não uma ontologia do particular (cf. Putnam 2004).

O realismo na ética requer antes uma exploração do modo como as nossas preocupações éticas estão enraizadas na nossa linguagem e na nossa vida, em aglomerados de palavras que vão além do nosso próprio vocabulário ético e sustentam ligações complexas com uma variedade de instituições e práticas. A fim de descrever a compreensão ética, teríamos de descrever tudo isto, todos estes usos particulares de palavras, das quais não pode ser dada uma definição geral. Da perspectiva da linguagem comum, os elementos do vocabulário moral não têm significado fora do contexto dos nossos costumes e forma de vida. Por outras palavras, tais elementos ganham vida contra o pano de fundo que «confere às nossas palavras o seu significado».

Para Wittgenstein, o significado não é apenas determinado pelo uso ou «contexto» (como muitas análises da linguagem reconhecem), mas está enraizado nas nossas práticas linguísticas e só é perceptível contra esse pano de fundo. Redefinir a ética a partir daquilo que é importante significa prestar este tipo de «atenção aos particulares». Existe todo um aglomerado de termos, um jogo de linguagem do particular ― atenção, cuidado, importância ―, que é comum à filosofia da linguagem comum e à ética do cuidado. A atenção ao detalhe está na base da mudança de perspectiva realista na filosofia moral: desde o exame de conceitos gerais e normas de escolha moral ao exame de visões particulares, de «configurações» individuais de pensamento. A ética do cuidado funde-se com esta sensibilidade às palavras e com o «espírito realista» ao chamar a nossa atenção para o lugar das palavras comuns na trama e nos detalhes das nossas vidas e para a nossa relação de proximidade ou distância com as nossas palavras.

Mas que espécie de interesse temos nós pelo particular? O impulso filosófico para a generalidade constitui um «desprezo pelo particular». Por oposição, a percepção moral é atenção ao particular. No seu importante ensaio, «Vision and Choice in Morality», Murdoch, discípula de Wittgenstein, invoca a importância da atenção na moralidade (cf. Murdoch 1956). Na sua perspectiva, a primeira forma de manifestar cuidado é prestar atenção a algo, isto é, ser atencioso. A palavra atenção é uma tradução possível do termo cuidado, talvez exagerando um pouco a vertente perceptual mas salientando as dinâmicas antecipadoras desta percepção. Murdoch evoca também as diferenças ao nível da moralidade em termos de diferenças de Gestalt. Ela quer evitar a ideia clássica de percepcionar um objecto por via de um conceito:

As diferenças morais, aqui, não são tanto diferenças de escolha, mas diferenças de visão. Por outras palavras, um conceito moral não é tanto como um aro móvel e expansível colocado sobre um certo domínio de factos, mas como uma diferença de Gestalt. Diferimos, não apenas porque seleccionamos diferentes objectos do mesmo mundo, mas porque vemos mundos diferentes. (…)

Aqui, a comunicação de um novo conceito moral não pode necessariamente ser feita através da especificação de um critério factual acessível a qualquer observador («Aprove-se este domínio!»), mas implica a comunicação de uma visão completamente nova. (Murdoch 1956, 40-41)

Aqui, uma vez mais, Murdoch leva a cabo uma crítica do geral na ética. Não há conceitos morais unívocos que só podem ser aplicados à realidade para delimitar objectos. No entanto, os nossos conceitos dependem dessa realidade para a sua aplicação a um certo domínio de interesse, a uma certa narrativa ou descrição, e ao nosso interesse e desejo de os explorar em função daquilo que é importante para nós. A ideia de importância fornece-nos os meios para uma outra formulação do conceito de cuidado enquanto atenção àquilo que é importante ou que importa para nós ― àquilo que conta.

 

4. A Importância da Importância

Esta relação do cuidado com o que importa foi salientada por Harry Frankfurt em The Importance of What We Care About (1988). Num espírito análogo, Cavell fala-nos de cinema e dos filmes que importam para nós, que são os objectos da nossa atenção e cuidado, exigindo uma educação da percepção e uma visão atenta:

A lição que retiro daqui é a seguinte: para responder à pergunta «o que é que acontece aos objectos quando são filmados e projectados?» ― assim como «o que é que acontece a pessoas, lugares, assuntos e motivos particulares quando são filmados por este ou aquele realizador?» ― há apenas uma fonte de informação, a saber, a aparência e o significado destes objectos, destas pessoas, que encontraremos de facto na sequência de filmes, ou passagens de filmes, que importam para nós. (Cavell 1984, 79)

A importância do cinema reside no modo como põe visualmente em evidência aquilo que importa, a fim de, como escreve Cavell, «ampliar o sentimento e o significado de um momento». No entanto:

… o seu papel é também contrariar esta tendência e, em vez disso, reconhecer esta realidade trágica da vida humana: habitualmente, não nos apercebemos da importância dos seus momentos enquanto os estamos a viver, pelo que podemos levar uma vida inteira para determinar as encruzilhadas importantes de uma vida. (ibid.)

É possível compreender o conceito de cuidado considerando a atenção específica à importância desapercebida de coisas e momentos exigida pela apreciação da arte cinematográfica. «A ocultação inerente da importância» é parte daquilo que o cinema também nos ensina acerca da nossa vida comum. Redefinir a moralidade com base na importância, e na sua ligação à vulnerabilidade estrutural da experiência, produz os elementos necessários à constituição de uma ética do cuidado. A noção de cuidado é inseparável de todo um aglomerado de termos aparentados, que constituem um jogo de linguagem do particular. Entre eles contam-se atenção, preocupação, relevância, significância e importância. A nossa capacidade de cuidar torna-se, segundo Murdoch, «uma versão desprendida, não-sentimental, não-egoísta, objectiva do cuidado». A atenção que daí emerge é o resultado do desenvolvimento de uma capacidade perceptual enraizada na capacidade de ver o pormenor, o gesto expressivo, que se destaca contra um pano de fundo, sem incorrer numa reificação ontológica indevida. Podemos agora apreciar mais claramente a contribuição da ética do cuidado para uma transformação da ética em atenção à forma de vida humana.

Este particularismo da atenção ao detalhe foi também proposto por Diamond, nomeadamente no seu importante ensaio «Having a Rough Story about What Moral Philosophy Is», que encerra The Realistic Spirit. Segundo a sua concepção, a filosofia moral precisa de mudar o seu foco e substituir o exame de conceitos gerais pelo exame de visões particulares ― as «configurações» de pensamento dos indivíduos. Também Murdoch é radical a este respeito:

Consideramos algo mais elusivo a que poderíamos chamar a sua visão total da vida, tal como manifestada pelo modo como falam e ficam em silêncio, pela sua escolha de palavras, os seus modos de apreciação dos outros, a sua concepção das suas próprias vidas, aquilo que acham atraente ou digno de louvor, aquilo que acham divertido: em suma, as configurações do seu pensamento que são continuamente manifestadas pelas suas reacções e conversas. Estas coisas, que podem ser mostradas aberta e inteligivelmente ou elaboradas intimamente e adivinhadas, constituem aquilo a que se poderia chamar a textura do ser de um humano, ou a natureza da sua visão pessoal. (Murdoch 1956, 39)

É de facto no uso da linguagem, na escolha de palavras, estilo de conversa, etc., que a visão moral de uma pessoa é abertamente revelada ou intimamente elaborada, o que para Murdoch não é tanto um ponto de vista teórico quanto uma textura do ser ― mais uma expressão Gestalt, dado que «textura» pode aparecer em diferentes registos: visuais, auditivos ou tácteis. Esta textura nada tem que ver com escolhas morais ou argumentação ética. Diz antes respeito, uma vez mais, àquilo «que importa» e àquilo que expressa as diferenças entre indivíduos.

Não nos é possível reconhecer o interesse moral da literatura se não reconhecermos gestos, maneiras, hábitos, peculiaridades de discurso, peculiaridades de pensamento, tipos de rostos, como moralmente expressivos ― de um indivíduo ou de um povo. A descrição inteligente destas coisas é parte da descrição incisiva e inteligente da vida, daquilo que importa e que faz a diferença nas vidas humanas. (Diamond 1991, 375)

São estas diferenças que devem ser o objecto da «descrição incisiva e inteligente da vida». A ideia de uma vida humana alude à forma de vida wittgensteiniana, que define uma textura de forma semelhante. A noção de textura designa então uma realidade instável, que não pode ser apreendida por conceitos ou por objectos particulares, mas é, ainda assim, acessível por via do reconhecimento e da identificação de gestos, maneiras, estilos, etc. A forma de vida é, de um ponto de vista ético, definida pela percepção. Na literatura, a atenção a texturas ou a padrões morais encontra a sua exploração paradigmática nos romances de Henry James, descritos por Diamond e por Nussbaum nos seus ensaios sobre a sua magnífica obra. Neste contexto, há uma percepção dos motivos jamesianos como «moralmente expressivos», como, sem dúvida, o seu autor intencionara. Além disso, aquilo que é percepcionado não é um domínio objectivo de valores ou de conceitos morais, mas a própria expressão moral, que é apenas possível e, aliás, apreensível na sua relação com as formas de vida retratadas no pano de fundo do romance. A literatura é, muito possivelmente, o lugar privilegiado para a percepção moral, que, encontrando o seu apogeu no romance jamesiano tardio, alcança os seus objectivos através da criação de um pano de fundo que sublinha as diferenças entre formas de vida. Regressaremos a uma abordagem Gestalt adiante, ao reflectir sobre a percepção directa de significado ― embora com menos ênfase na constituição de um objecto do que na percepção das suas «possibilidades», que somos convidados a explorar. A percepção de um objecto envolve sempre uma abertura imediata para uma perspectiva antecipadora cujas directrizes apelam à exploração. A atenção à expressão comum e à voz e textura humana conduz a uma reconsideração da questão da expressão das mulheres, que tem sido abafada ou negligenciada pela filosofia. Uma vez mais, a linguagem comum não deve ser concebida como algo que tem apenas uma função descritiva ou até agencial, mas como um instrumento perceptual que confere subtileza e capacidade de adaptação às percepções e acções.

 

5. Competência Moral e Educação

A definição de competência ética em termos de percepção activa e aperfeiçoada (por oposição à capacidade de julgar, argumentar e escolher) é adoptada por Martha Nussbaum (cf. Nussbaum 1990). Para Nussbaum, a moralidade é essencialmente uma questão de percepção e atenção e não de argumento moral. Uma objecção imediata a Nussbaum é que os seus argumentos restabelecem uma oposição esquemática e dúbia entre sentimento e razão. Ainda assim, a discussão de Nussbaum é relevante ao nível da reorientação da questão ética a uma forma de psicologia moral radicada numa percepção educada de modo sensível e inteligente.

Segundo Nussbaum, a competência moral não é apenas uma questão de conhecimento ou de raciocínio, mas também uma questão de aprender a expressão certa e educar a sensibilidade. Um autor verdadeiramente bem-sucedido artisticamente é alguém capaz de educar a sensibilidade do leitor, tornando personagens ou situações particulares perceptíveis através de uma escolha adequada de registo literário. Uma educação literária da sensibilidade é uma educação capaz de gerar significados. Veja-se, por exemplo, a ilustração da vida de Hobart Wilson escolhida por Diamond no seu ensaio «Moral Differences and Distances»; ou qualquer uma das personagens de James, que, no curso das suas narrativas imensamente subtis, nunca deixam de ensinar o leitor a apreender as coisas do modo mais acertado e claro. No seu prefácio a O que Maisie Sabia, James observa: «O esforço por realmente ver e por realmente representar não é minimamente desprezível em face da força constante que tende à confusão» (James 2017, 16). Este romance, observa Diamond, é todo ele uma crítica da percepção por meio de uma descrição de «um mundo social no qual a percepção da vida se caracteriza por uma incapacidade de ver ou aferir a atenção de Maisie» (Diamond 1991, 309).

Por estas razões, a ideia de descrição ou de visão (enquanto modelo ortodoxo ou objectivista da percepção) já não é suficiente para dar conta da visão moral pois esta não consiste em ver objectos ou situações, mas as possibilidades e significados que emergem nas coisas; em antecipar, em improvisar (diz Diamond). A percepção é, portanto, activa, não no sentido kantiano de ser conceptualizada, mas porque envolve uma perspectiva em constante mudança. Redescobrimos assim a alternância entre «pato» e «coelho» em que Gilligan atenta na senda de Wittgenstein. Pensamos, além disso, na análise que Nussbaum e Diamond fazem de Henry James: o romance ensina-nos a olhar para a vida moral como «uma cena de aventura e de improvisação», que transforma a ideia que temos da agência moral e torna visíveis os valores inerentes à improvisação moral.

Há, portanto, constrangimentos à percepção, não porque esta seja voluntária, mas porque é necessário ver a emergência de dinâmicas e apreender as possibilidades inerentes às coisas. Como observa Diamond, «[v]er as possibilidades nas coisas é uma questão de transformação da nossa percepção delas» (ibid.). De modo semelhante, Wittgenstein observa que não estamos a lidar com fenómenos, senão com as «“possibilidades” dos fenómenos» (IF, §90).

Aprender uma linguagem é aprender a percepcionar as possibilidades dos fenómenos, ou as possibilidades nas coisas, que constituem o pano de fundo da expressão moral. Este é um ponto essencial, que surge claramente em The Claim of Reason:

Ao «aprender a falar» não aprendemos apenas os nomes das coisas, mas aquilo que um nome é; não apenas a expressão mais adequada para expressar um desejo, mas aquilo em que expressar um desejo consiste; não apenas a palavra «pai», mas aquilo que um pai é; não apenas a palavra «amor», mas o que é o amor. (Cavell 1979, 177)

Segundo Cavell, a aprendizagem da moralidade é, pois, inseparável da aprendizagem da linguagem e da respectiva forma de vida. Quando concebido nestes termos, o cuidado não é de todo um elemento subordinado ou marginal da ética: está na sua própria raiz. A integração numa forma de vida é em si mesma importante para nós, e consiste em aprender aquilo que é importante em termos de significância e também de significado (cf. Ogden & Richards 1923):

Em vez de dizer que dizemos aos principiantes o que as palavras significam, ou que lhes ensinamos o que os objectos são, diria antes: nós introduzimo-los às formas de vida relevantes que estão contidas na linguagem e reunidas em torno dos objectos e das pessoas do mundo em que vivemos. (Cavell 1979, 178)

Aprender uma linguagem define assim a ética enquanto atenção à realidade e aos outros ― em suma, a uma forma de vida. A aprendizagem da linguagem é a apreensão de uma estrutura expressiva, que especifica modos de expressão adequados, assim como o significado de palavras. É uma iniciação numa forma de vida que implica o treino da sensibilidade (e capacidades associadas) através de exemplos. Por isso, a moralidade diz também respeito à nossa capacidade de interpretar a expressão moral ― não apenas a capacidade de provocar e formar um juízo ou escolha moral, mas as suas várias leituras morais. No entanto, esta capacidade expressiva não é puramente instintiva ou afectiva. É também conceptual e linguística ― é a nossa capacidade de usar palavras de forma adequada e de as usar em novos contextos, permitindo-nos responder ou reagir correctamente aos aspectos morais com que nos deparamos. Diamond recorre à a concepção de Murdoch do pensamento moral para argumentar que, não obstante o seu abandono do não-cognitivismo, a filosofia moral contemporânea continua a ser descuidada em relação à linguagem, assim como cega relativamente à expressão moral:

Estamos constantemente obcecados com «avaliações», «juízos» ou raciocínios morais explícitos que levam à conclusão de que algo vale a pena, ou é um dever, ou é errado, ou deve ser feito; a nossa ideia daquilo que está em jogo no pensamento moral é quase sempre reduzida a: «é errado fazer x» versus «é permissível fazer x»; o debate sobre o aborto é o nosso paradigma de debate moral. «Desconfiar da linguagem» transformou-se na incapacidade de ver o que implica usá-la de forma adequada, dar-lhe uma resposta adequada, sintonizarmo-nos de modo adequado; na incapacidade, portanto, de ver que tipo de falha está em causa quando não a usamos adequadamente. De que modo é que as nossas palavras, os nossos pensamentos, as nossas descrições, os nosso estilos filosóficos nos decepcionam? E de que modo é que, quando aproveitados ao máximo, nos elucidam? (Diamond 1991, 379-380)

A capacidade de expressão moral está enraizada numa forma de vida dúctil, pois deixa-se moldar por usos adequados e inadequados da linguagem. É a forma de vida, tanto no sentido natural como no social, que determina a estrutura ética da expressão, que por sua a vez a reconfigura e lhe dá forma (cf. Cavell 1989). A nossa relação com os outros, que reflecte o tipo de interesse e de preocupação que temos para com eles e a sua importância para nós, existe apenas na possibilidade do nosso próprio desvelamento por meio da expressão, seja ele bem-sucedido ou falhado, voluntário ou involuntário.

De modo a reconhecer a nossa predisposição para comunicar, que está pressuposta em todas as nossas actividades expressivas, temos de ser capazes de nos «ler» uns aos outros. Os nossos desejos devem ser manifestos para as outras pessoas. Este é o nível natural de expressão, no qual a verdadeira expressão assenta. A mímica e o estilo assentam nisto ( . . . ). Mas não haveria nada em que nos pudéssemos apoiar se os nossos desejos não estivessem incorporados no espaço público, naquilo que fazemos e tentamos fazer, no pano de fundo natural da auto-revelação, que a expressão humana empreende incessantemente. (Taylor 1979, 89)

Aquilo que é descrito num tom céptico por Cavell, aludindo à dificuldade da expressão individual e de reconhecer e ler as expressões individuais dos outros, é capturado num tom hermenêutico por Charles Taylor. Tanto a concepção de Cavell como a de Taylor levam a um questionamento moral da expressão mútua, da experiência do significado, da constituição do estilo, e da educação ― mútua e do «eu» ― ao aprender a prestar atenção à variedade de expressões humanas: «A fim de serem apreendidas, as expressões humanas, a figura humana, têm de ser lidas» (Cavell 1979, 508). Por outras palavras, a leitura da expressão humana, que torna possível responder, é resultado da atenção e do cuidado. É o resultado de aprender a ser sensível. Encontramos nestas observações o tema cavelliano da educação ao longo de todas as etapas da vida adulta. Ao reconhecer que a educação não termina com a chegada à idade adulta, percebemos que a educação não é apenas uma questão de aquisição de conhecimento factual, mas de novos aperfeiçoamentos e afinações através de um processo que dura toda uma vida e não simplesmente uma etapa inicial do desenvolvimento. Acontece que este é igualmente o propósito da insistência de Wittgenstein, desde o início das Investigações, na ideia de aprender uma linguagem. Trata-se de um processo que não consiste na apreensão de significados, senão num conjunto de práticas que, não estando «alicerçadas» numa língua nem causalmente ligadas a um pano de fundo social ou natural, são aprendidas ao mesmo tempo que a própria língua e constituem a textura mutável da nossa vida. A relação com os outros, o tipo de interesse e de cuidado que temos para com eles, a importância que lhes damos, adquirem o seu significado no contexto de uma expressão possível e/ou na nossa própria auto-descoberta (cf. Laugier 2015).

Como mostra Sabina Lovibond, a educação moral consiste em tornarmo-nos fluentes nos contextos, conexões, e enquadramentos das acções morais de modo a percepcionar a realidade e a expressão moral directamente (cf. Laugier 2015). A abordagem realista de Lovibond coaduna-se com a ênfase de McDowell na Bildung e na segunda natureza: a ideia de que uma competência linguística específica é desenvolvida no campo da moralidade, i.e., a aquisição de uma sensibilidade particular para reconhecer razões éticas adequadas através da educação moral (cf. McDowell 1994). É então que, como diz Lovibond, «a sensibilidade para reconhecer a força das razões éticas torna-se uma componente da nossa segunda natureza» (Laugier 2015, 61). Em suma, aprendemos a ver através da ética.

No entanto, para além destas abordagens realistas e do modelo alternativo da ética de virtudes, é preciso compreender que aprender a linguagem moral tem também como base uma certa autoridade e uma forma de cegueira, de confiança. Segundo a leitura cavelliana de Wittgenstein, a questão da educação é permeada pelo cepticismo: aprender não garante a validade daquilo que fazemos, uma vez que só a aprovação dos nossos «mestres» morais pode outorgar validade. Nada, portanto, alicerça a nossa prática da linguagem à excepção da própria prática ― «o turbilhão orgânico a que Wittgenstein chama formas de vida», a que Cavell alude em «The Availability of Wittgenstein’s Later Philosophy»:

Aprendemos e ensinamos palavras em certos contextos, e depois espera-se que sejamos capazes de as projectar noutros contextos. (…). O discurso e a actividade humana, a sanidade e a comunidade, têm por base nada mais do que isto, mas também nada menos. Trata-se de uma visão tão simples quanto difícil e tão difícil quanto aterradora. (Cavell 1969, 52)

A visão é «aterradora» porque supõe que a aprendizagem é sempre infinitamente extensível e que, assim que tivermos aprendido uma palavra ao contactarmos com uns quantos contextos de uso característicos, espera-se que tenhamos a capacidade de a projectar em novos contextos e, portanto, de improvisar constantemente. Aquilo que está em causa na expectativa de uma improvisação incessantemente fluida é uma questão moral, que se relaciona com a «sanidade» ou com a possibilidade de partilhar ou de aprender uma forma de vida. Isto vai muito para além da referência a uma educação moral aristotélica que encontramos na ética de virtudes: aprender uma palavra é aprender, e imaginar, uma forma de vida (cf. Cavell 1979, 125 e Ferrarese & Laugier 2018). Uma ética da vida comum, que se referisse simplesmente à autoridade das «nossas práticas« contra a teoria, não teria pernas para andar. A ética não se refere a uma descrição das nossas práticas: «As nossas práticas são exploratórias, e é, de facto, apenas através dessa exploração que chegamos a uma visão plena daquilo que nós próprios pensámos ou quisemos dizer» (Diamond 1991, 39). Somos capazes de perceber o que a ética não é, nomeadamente um conjunto de princípios ou regras, ou de conceitos gerais. No entanto, a ética não pode ser puramente descritiva, na medida em que os nossos conceitos éticos também afectam as nossas práticas, a nossa forma de vida; os conceitos são também uma forma que a nossa vida adquire.

Considerar o uso pode ajudar-nos a perceber que a ética não é aquilo que pensamos que deve ser. Mas a nossa ideia daquilo que a ética deve ser moldou necessariamente aquilo que ela é, assim como aquilo que fazemos; e considerar o uso, enquanto tal, não é suficiente. (ibid.)

Este apelo à prática vem, uma vez mais, de Wittgenstein e, em particular, da sua abordagem ao conceito de «regra», concebida como algo que é visível contra um pano de fundo de práticas humanas e não como aquilo que as determina. A normatividade está entretecida na textura da vida:

Não somos apenas treinados a continuar a série «446, 448, 450» e por aí em diante; crescemos no seio de uma vida na qual dependemos de pessoas que seguem toda a espécie de regras, e essas pessoas dependem de nós: as regras, a concordância a respeito de como as seguir, a confiança nessa concordância, as formas de criticar e de corrigir quem não as segue convenientemente ― tudo isto está entretecido na textura da vida. (Diamond 1989, 27-28)

Em vez do modelo perceptual, e talvez estático, do pano de fundo, talvez sejam preferíveis os modelos da textura e do padrão. Pela sua parte, Wittgenstein fala de um «padrão na tapeçaria da vida» e de um «fluxo vital»; ou, como em Zettel, de lugar e conexões: «A dor ocupa este e aquele lugar na nossa vida, tem estas e aquelas conexões» (Z, §§532-533).

Como observa Diamond, as conexões «nas nossas vidas» não estão ocultas; estão constantemente diante dos nossos olhos. Ela alude aqui ao famoso símile do «desenho no tapete» do conto clássico de James (O Desenho no Tapete, de Henry James). É através de conceitos, incluindo conceitos morais, que percepcionamos porque os nossos conceitos «apreendem» (os seus referentes) no desdobrar de uma textura orgânica, que é dinâmica, e na qual padrões recorrem e emergem.

Se a vida fosse uma tapeçaria, este ou aquele padrão (fingir, por exemplo) nem sempre estaria completo e variaria de muitas maneiras. Mas nós, no nosso mundo conceptual, vemos sempre a mesma coisa repetida com variações. É assim que os nossos conceitos apreendem (auffassen). (RPP II, §672)

 

6. Pano de Fundo e Forma de Vida

O pano de fundo da forma de vida não é nem causal, nem fixo como um conjunto, mas vivo e móvel. De novo, podemos certamente apelar às formas que a vida toma em vez de falar em formas de vida. A distinção não pretende dar conta de uma forma definitiva ou estável, mas das diferentes formas que uma só vida pode tomar sob um olhar atento ― o «turbilhão» da vida que vivemos na linguagem, das nossas «visões», por oposição a um conjunto estável de significados e de normas sociais.

A expressão «pano de fundo» (Hintergrund) aparece em Wittgenstein para designar um pano de fundo para a descrição, que põe em evidência a natureza das acções. Não obstante a leitura de alguém como John Searle, tal pano de fundo não serve para explicar coisa nenhuma: não lhe pode ser atribuído uma função causal porque se trata da própria linguagem na sua instabilidade e sensibilidade à prática. Como escreve Wittgenstein,

[j]ulgamos uma acção contra o seu pano de fundo na vida humana (…) O pano de fundo é o rebuliço da vida; e o nosso conceito refere-se a algo neste rebuliço. (RPP II, §§624-625)

Como pode o modo de agir humano ser descrito? Só mostrando de que forma as acções dos mais variados seres humanos se misturam num certo fluxo. Não se trata do que um indivíduo faz, mas do todo fervilhante (Gewimmel) que constitui o pano de fundo contra o qual vemos a acção (cf. RPP II §629 e Z §567).

Vemos a acção, mas somos apanhados no meio de uma «forma de vida em fluxo», na qual a acção sobressai e se torna apreensível e, por isso, importante. Não é de todo o mesmo dizer que a aplicação da regra é causalmente determinada por um pano de fundo, e dizer que esta deve ser descrita contra o pano de fundo de acções humanas e de conexões. Esta é a diferença entre uma concepção Gestalt e descritiva da ética e uma concepção «conformista» que procura oferecer uma justificação por referência a um acordo prévio validado pela comunidade. O pano de fundo não fornece ou determina o significado ético, uma vez que não existe tal coisa, mas permite uma visão mais clara daquilo que é importante e tem significado para nós no momento relevante: as conexões na textura das nossas vidas. Em Cultura e Valor, Wittgenstein menciona «o pano de fundo contra o qual aquilo que sou capaz de expressar adquire significado» (CV, 23). O pano de fundo «aceite» ou dado não determina as nossas acções (pelo que não há qualquer causalidade envolvida) mas permite-nos vê-las claramente.

A partir de uma descrição imanente e de uma postura de cuidado, é possível definir a ética como algo que dirige a nossa atenção para as capacidades ou competências morais das pessoas comuns. A atenção ao quotidiano, àquilo a que Cavell chama o outro comum, é a primeira definição de cuidado. Neste contexto, a célebre definição de cuidado proposta por Joan Tronto e Berenice Fisher deve ser levada a sério enquanto postura realista:

Num sentido geral, o cuidado é um tipo de actividade que inclui tudo aquilo que fazemos para preservar, dar continuidade, e reparar o nosso mundo de modo a que possamos viver nele o melhor possível. Este mundo inclui-nos a nós próprias, aos nossos corpos, ao nosso meio ambiente ― elementos que procuramos entrelaçar numa complexa rede que sustenta a vida. (Fisher & Tronto 1990)

A reflexão sobre o cuidado pode ser vista como uma consequência da viragem no pensamento moral ilustrada pelo trabalho de Cora Diamond: contra aquilo a que Wittgenstein chamou, no Livro Azul, «a ânsia pela generalidade», trata-se de uma tentativa de valorizar, no âmbito da moralidade, a atenção ao(s) particular(es), aos detalhes comuns da vida humana, aos aspectos da vida negligenciados pela filosofia e por nós. Este propósito descritivo transforma a moralidade: o cuidado, como a Filosofia da Linguagem Comum, traz a nossa atenção de volta à terra áspera do comum, ao nível da vida quotidiana.

Como Bernard Williams nos lembra, «as teorias éticas são esquemas abstractos que devem guiar o juízo de todos acerca deste ou daquele problema particular» (Williams 1998, 54). A formulação de Williams revela-se uma fonte de várias dificuldades interrelacionadas e que têm que ver com a passagem do geral ao particular, da regra à sua aplicação, da teoria à experiência. Para além destas dificuldades epistemológicas, a sua descrição levanta outras questões pertinentes: porquê centrar a reflexão ética na questão dos princípios, da fundação ou da justificação? Porque é que esta deve seguir o modelo legislativo ou científico? Porquê formular regras em vez de simplesmente descrever aquilo que fazemos? Estas são as questões difíceis que a ética do cuidado tem de enfrentar, na medida em que, ao nível metodológico, vai contra a corrente das teorias morais contemporâneas.

A mitologia da «teoria moral» reside na ideia de elaborar uma série de princípios que podem produzir a «resposta moralmente correcta» à maioria dos problemas morais em todas as circunstâncias. A visão «não-ortodoxa» e anti-teórica, por outro lado, rejeita a possibilidade de princípios morais substanciais e gerais ou de teorias metaéticas acerca da natureza das declarações morais ou normativas, a partir das quais se poderiam desenvolver formas de justificação e de raciocínio válidas em quaisquer situações. A maioria dos filósofos morais não-ortodoxos (e.g., Anscombe, Baier, Diamond, Lovibond, Williams, McDowell) são influenciados pelo pensamento de Wittgenstein. Por certo, muitos concordarão que temos o dever, por exemplo, de cuidar da nossa família e dos nossos amigos ― mas normalmente não queremos ser amados por uma questão de dever, e a própria preocupação com não ser amado por uma questão de dever seria um tópico mais interessante para a moralidade do que a obrigação propriamente dita (assim ocorre na literatura e no cinema). De forma semelhante, como observa Diamond, pode haver algo de mesquinho ou de «pouco generoso» numa pessoa perfeitamente rigorosa consumida pela ideia de fazer aquilo que considera ser o seu dever. Estas características que mancham o carácter do filósofo moral zeloso deveriam ser objecto da reflexão moral, em vez de serem remetidas ao caixote do lixo das questões éticas marginais. Annette Baier sugere que nos deveríamos interessar por uma virtude como a gentileza, que pode apenas ser tratada em termos simultaneamente descritivos e normativos, e «resiste a uma análise em termos de regras» (Baier 1985, 219), uma vez que se trata de uma resposta adequada ao outro dependendo das circunstâncias: exige, pois, uma atitude experimental, uma sensibilidade à situação e uma capacidade de improvisar, i.e., de «continuar» a partir de certas reacções. Baier serve-se frequentemente de Hume para definir atitudes morais como a expectativa ou simplesmente esperar para ver aquilo que acontece em vez de aplicar princípios. Sem estas atitudes baseadas na expectativa, a reflexão moral corre o risco de ficar refém da «visão de esguelha», de perder de vista aquilo que importa na moralidade, aquilo que nos importa.

Baier critica, à semelhança de Murdoch, Diamond e Anscombe, a ideia de que a filosofia moral é redutível a questões de obrigação e escolha ― como se um problema moral só se tornasse tratável ao ser formulado nestes termos (cf. Baier 1995). Baier recorre à ironia de Ian Hacking na sua crítica à obsessão da filosofia moral com o modelo da teoria dos jogos (cf. Hacking 1984). Certamente, já todos teremos reparado no capítulo obrigatório sobre o «dilema do prisioneiro» em qualquer livro sério sobre filosofia moral. Recorde-se a proposição das Investigações em que Wittgenstein define o acordo numa forma de vida:

Verdadeiro e falso é o que as pessoas dizem; e é na linguagem que as pessoas concordam. Não se trata de uma concordância de opiniões, mas de formas de vida. (IF, §241)

O modelo da concordância é, para Wittgenstein, a concordância linguística: é na linguagem que concordamos. Isto permite-nos compreender a natureza da concordância. Podemos pensar que o nosso uso da linguagem e práticas são dados como conjuntos de regras às quais não temos outra escolha senão aderir. No entanto, outra das descobertas de Wittgenstein é que o uso não é suficiente. A minha concordância com ou pertença a esta ou aquela forma de vida, seja ela social ou moral, não é algo que seja dado. O pano de fundo não é a priori, mas modificável através da própria prática. A aceitação da forma de vida como «algo que nos é dado»― uma ideia que Wittgenstein preconiza ― é a aceitação de um dado natural: «o facto de ser um humano e ter, por isso, (uma certa medida ou um certo grau de) capacidade para o trabalho, para o prazer, para a resistência, para a sedução». No entanto, a forma desta aceitação ― a «medida» ou o «grau» da nossa concordância ― não pode ser conhecida a priori do mesmo modo que a medida ou o grau de uma palavra pode ser conhecido a priori, uma vez que o uso da linguagem moral é improvisado. E, portanto, não é como se concordássemos com tudo de antemão. A carga moral está sempre «no que devemos dizer e quando» (Austin 1962, 181). O facto de a linguagem moral nos ser dada não implica que saibamos a priori o que é que vamos fazer ou de que forma vamos estar de acordo nesta linguagem com os restantes falantes, como é que vamos encontrar as expressões certas para responder, etc. Aquilo que constitui a concordância linguística e a concordância moral é a constante possibilidade de ruptura, a ameaça do cepticismo, ou a perda de voz moral.

Uma forma de vida só pode ser apreendida atentando nas texturas ou nos padrões morais que percepcionamos como algo de «moralmente expressivo» no pano de fundo fornecido pela forma de vida. A nossa capacidade de expressão moral está enraizada numa forma de vida mutável, exposta aos nossos melhores e piores usos da linguagem. O tipo de interesse, de preocupação que temos pelos outros, e a importância que lhes damos, não existem a não ser na possibilidade da exibição ou da revelação do «eu» na sua expressão moral. A ideia de uma ética formulada numa voz diferente e expressa por vozes de mulheres é, inseparavelmente, uma concepção comum da ética, uma concepção expressivista da ética e uma concepção realista da ética. Trata-se de uma ética cujo ponto de partida são as experiências da vida quotidiana e os problemas morais de pessoas reais nas suas vidas comuns.

 

7. Perder Conceitos

Segundo Diamond, muitas das declarações que encontramos na filosofia moral contemporânea são, nas suas próprias palavras, «imbecis, insensíveis ou delirantes». Ela dá, como exemplo, uma passagem na qual Peter Singer argumenta a favor da defesa dos animais:

Aquilo que quero dizer por «imbecil, insensível ou delirante» pode ser tornado claro por uma única palavra ― a palavra «até» na seguinte citação: «Vimos que o investigador revela um viés a favor da sua própria espécie quando faz uma experiência com um animal não humano num caso em que não consideraria legítimo usar um ser humano, até um ser humano atrasado mental». (Diamond 1991, 23)

O que há de errado neste argumento não é o argumento em si, mas o uso da palavra «até». O que há de errado é a falta de cuidado. Quando Diamond diz que a filosofia moral se tornou largamente cega ou insensível, ela quer dizer que esta se tornou insensível à especificidade humana do questionamento moral e à vida moral comum.

O que importa na percepção moral não é a concordância e a harmonia, mas a percepção (por vezes violenta) de contrastes, distâncias, diferenças, e a sua expressão; aquele momento em que, como diz Diamond, há uma «perda de conceitos», quando estes já não funcionam. Cavell descreve esta dificuldade no âmbito do cepticismo, como uma sensação ou tentação de inexpressividade, como a nossa incapacidade de ir além das nossas reacções naturais para conhecer o outro ― de ir além dos limites da minha compreensão e dos meus conceitos, mas também da minha experiência.

A nossa capacidade de comunicar com ele depende da sua «compreensão natural», da sua «reacção natural» às nossas instruções e gestos. Depende, portanto, da nossa concordância mútua quanto aos juízos. Esta concordância leva-nos extraordinariamente longe no caminho da compreensão mútua, mas tem os seus limites; limites que, poder-se-ia dizer, não são apenas os do conhecimento, mas os da experiência. (Cavell 1979, 184-185)

O que é importante na situação ética não é apenas a concordância, mas a discordância gerada pela sensibilidade às palavras: a exposição da perda dos nossos conceitos e a dificuldade de aplicá-los a novos contextos. Diamond considera o caso das experiências em animais para mostrar que certas formas de argumento são intoleráveis e criam uma distância e perplexidade fundamentais para uma definição de ética:

Suponha-se que alguém dizia, numa discussão ou aquando de uma experiência com animais, que uma das razões pelas quais seria errado fazer experiências com «recém-nascidos», enjaulá-los, sujeitá-los a químicos ou choques eléctricos, ao cancro, ao medo ou angústia extrema, ou matá-los ― uma razão que não se aplica aos animais ― é que isso privaria a sociedade dos contributos valiosos que eles poderiam vir a dar enquanto adultos. Este argumento não se aplicaria obviamente aos animais porque estes não podem dar o mesmo tipo de contributo. (…) A minha distância em relação a alguém assim não tem que ver com uma recusa daquilo que essa pessoa julga poder defender. Trata-se antes de dizer para mim mesma: «Quem é esta pessoa, e como pode ela pensar que este é o tipo de argumento que se deve articular nesta discussão? Que espécie de vida é que ela leva, e em que vida pode esta discussão ter lugar?» (Diamond 1998, 274)

O que importa aqui para Diamond é que não há qualquer oposição entre sensibilidade e entendimento, mas que a sensibilidade é uma forma de vida conceptual. Isto explica as reacções «sensíveis» que temos perante questões conceptuais como aquela ilustrada por Diamond na passagem acima. Na ética, não há necessidade de separar argumento e sentimento. Em vez disso, Wittgenstein revela o carácter genuinamente sensível dos conceitos e o carácter perceptivo da actividade conceptual que, postos em prática, possibilitam uma apreensão clara de contrastes e de divergências conceptuais. Por exemplo, talvez seja possível saber, sem mais, e sem se ser capaz de produzir um contra-argumento, que o que alguém está a argumentar é «um absurdo solenemente cómico», ou moralmente repugnante, completamente imbecil e delirante, etc. Em última análise, para conferir ao conceito de cuidado o seu devido estatuto, temos de o colocar num lugar central do quadro da ética. Isto é, temos de reconhecer que a moralidade como um todo tem de se tornar sensível ― «uma sensibilidade que envolveria a totalidade da mente».

O que aqui está em causa é a expressão da experiência: quando e como confiar na nossa experiência, como encontrar a validade do particular. É a questão de encontrar a expressão subjectiva e encontrar a nossa própria voz. A história do feminismo começa precisamente com uma experiência de não-expressão, da qual as teorias do cuidado dão conta de forma sofisticada, com o propósito de salientar uma dimensão ignorada e silenciosa da experiência. Esta experiência, descrita por Cavell por relação ao género cinematográfico a que chama «melodrama da Mulher Desconhecida» é uma experiência de alienação radical, de impossibilidade de exprimir essa experiência por meio da linguagem ― aquilo a que hoje frequentemente se chama gaslighting. Ambos os filmes a que aí se alude revelam a experiência de inexpressividade e de silenciamento de uma mulher que não só a leva a perder autoconfiança, como também linguagem e percepção. Este é o problema que a ética do cuidado de Gilligan confronta de um modo teórico.

Também John Stuart Mill se ocupou do problema de não dispor dos conceitos e do quadro teórico certos, em que alguém não tem voz para se fazer ouvir porque perdeu contacto com a sua própria experiência, com a sua própria vida. A inexpressividade das mulheres é a estilização da inexpressividade humana.

Assim, a própria mente submete-se ao jugo: até no que as pessoas fazem por prazer o conformismo é a primeira coisa em que pensam; (…) as suas capacidades humanas secam e definham; tornam-se incapazes de quaisquer desejos fortes ou prazeres inatos, e ficam geralmente sem opiniões ou sentimentos desenvolvidos por si, ou propriamente seus. Ora, será esta, ou não, a condição desejável da natureza humana? (SL, III, §6)

A descrição de Mill captura todas essas situações que envolvem uma perda de experiência, de linguagem e de conceitos, e que podem motivar um desejo de escapar à condição em que somos deixados quando perdemos a voz, de recuperar a posse da linguagem comum, e de encontrar um mundo que configure o contexto adequado para o fazer. Restabelecer a ligação com a experiência e encontrar uma voz para a sua expressão é talvez o objectivo principal da ética. O cuidado, entendido como atenção e percepção, deve, pois, ser distinguido de uma espécie de sufoco do «eu» pelo afecto ou pela devoção. Deve confrontar-nos com as nossas próprias incapacidades e desatenções, mas, acima de tudo, mostrar-nos como estas desatenções se traduzem depois em certas teorias e avaliações.

Falta, porém, articular esta expressão subjectiva com a atenção ao particular que é uma das características fundamentais do cuidado e, por isso, definir uma forma de conhecimento através do cuidado. O conhecimento moral, por exemplo, que a literatura ou o cinema revelam através da educação da sensibilidade (i.e., o treino da virtude de ser sensível) não é necessariamente traduzível na íntegra para uma argumentação racional ou moral, mas não deixa de ser conhecimento. O título ambíguo do livro de Nussbaum, Love’s Knowledge, joga com esta ideia. Longe de assinalar o conhecimento do «amor» enquanto objecto abstracto geral, o jogo sintáctico com os significados indica o conhecimento particular que a percepção apurada do amor nos oferece através da própria experiência do amor. Como o seu título ironicamente sugere, não há qualquer contradição entre sensibilidade e conhecimento, cuidado e racionalidade.

Daí a redefinição ou redescrição de Diamond da moralidade a partir da literatura. «Tentei», diz ela, «descrever certos aspectos de como a vida moral se parece, sem dizer nada acerca de como se deve parecer». Esta descrição fenoménica da vida moral permite uma transformação do campo da ética, um novo ênfase na sensibilidade, mas também o desaparecimento da ética enquanto área de investigação específica:

Tal como a lógica não é, para Wittgenstein, um tópico particular, com o seu próprio conjunto de verdades, mas permeia todo o pensamento, a ética não tem um tópico particular; um espírito ético, uma atitude em relação ao mundo e à vida, pode permear qualquer pensamento ou discurso (Diamond 2000, 153).

Em suma, a ética é uma atenção aos outros e ao modo como estes se encontram enredados connosco em conexões. A ética do cuidado é, neste sentido, inspirada por Hume, Mill e Wittgenstein.

Cavell e Diamond opuseram-se, tal como Murdoch, à meta-ética não-cognitivista, que analisa declarações morais discernindo uma componente emocional ou afectiva e uma componente factual (servindo-se erradamente de Wittgenstein e da sua rejeição das proposições da ética no Tractatus). O problema, tal como Putnam e Cavell fizeram amplamente notar, reside na pretensão de oferecer uma análise de declarações morais, à qual corresponde uma teoria dos seus significados fixos. Se nos propusermos a analisar estas declarações, aquilo que obtemos é uma declaração de um facto juntamente com uma expressão de uma emoção (tal como uma exclamação ou uma expressão de apreço ou repulsa). O problema do emotivismo em metaética é, portanto, semântico. É como se uma declaração moral pudesse ser reconstruída como uma equação aditiva que relaciona uma declaração mais um sentimento. É como se a expressão fosse adicionada à declaração e não fosse a própria declaração. Trata-se de uma filosofia da linguagem insustentável, que o próprio Wittgenstein questionou. A teorização meta-ética da década de 1930 produziu a cegueira criticada por Diamond em The Realistic Spirit:

É espantoso que, embora esta abordagem à filosofia moral tenha basicamente desaparecido, aquilo que Murdoch queria dizer quando falou numa «desconfiança em relação à linguagem« é tão relevante como nunca; (esta) transformou-se na incapacidade de ver tudo aquilo que está em causa quando fazemos um uso adequado da linguagem, quando lhe respondemos adequadamente, quando somos capazes de nos sintonizar com ela; a incapacidade, portanto, de ver o tipo de falha que pode estar em causa quando a usamos de forma inadequada (Diamond 1991, 380).

 

8. Aventura da Percepção e Agência do Cuidado

As linhas de pensamento exploradas até este ponto permitem compreender um requisito fundamental da ética do cuidado. Através de um olhar «terno e atento» e, portanto, cuidadoso, percepcionamos as situações morais de uma forma diferente e activa. Isto altera a nossa percepção da responsabilidade do agente moral e da própria agência. A atenção aos outros, exigida e explorada criativamente pela literatura e pelas artes, não nos oferece novas certezas nem um equivalente literário ou artístico de teorias. Em vez disso, confronta-nos com a incerteza e o cepticismo. Ao centrarmo-nos numa concepção estreita da ética e da percepção, corremos o risco de, como diz Diamond, passar ao lado da aventura. Isto é, corremos o risco de passar ao lado de uma dimensão da moralidade ― especificamente, o aspecto visível do pensamento moral, ou «aquilo com que a vida moral se parece». Além disso, é devido a uma falta de cuidado que acabamos por passar ao lado deste aspecto fundamental da ética.

A aventura conceptual é, portanto, uma componente da percepção moral. Há aventura em qualquer situação que combine incerteza, instabilidade e «o sentido urgente da vida». Diamond e Nussbaum referem uma passagem de James que explicita muitíssimo bem esta forma aventurosa que a vida moral assume:

Uma “aventura” humana e pessoal não é algo a priori, positivo, absoluto e inextinguível, mas apenas uma questão de relação e de reconhecimento ― na verdade, é um nome que damos, apropriadamente, a qualquer passagem, qualquer situação à qual se acrescenta o sabor urgente da incerteza ao sentido urgente da vida. Trata-se, portanto, admiravelmente, de uma questão de interpretação e de condições particulares; e sem uma percepção delas, as mais prodigiosas aventuras poderão vulgariza-se e não contar para nada. (Nussbaum 1990, p. 307)

Algumas passagens famosas do romance The Ambassadors, de James, salientam esta aventura da percepção. O protagonista do romance, o sensível, resguardado e já não propriamente novo Lambert Strether, vem a adquirir uma nova atitude moral e um «novo padrão de percepção» no «grande rebuliço» da vida parisiense, que se revela difícil, incerta e perigosa:

Agora vejo, antes não vira suficientemente e agora estou demasiado velho! Demasiado velho para aquilo que vejo. Oh, mas ao menos vejo. (James 1972, 615)

Estes momentos perturbadores do romance definem o cuidado enquanto visão e, reciprocamente, a percepção atenciosa e antecipadora como cuidado. Cuidar é actividade, mobilidade e improvisação.

Aquilo que lhe acontece torna-se uma aventura, torna-se interessante, excitante, devido à natureza da atenção que ela lhe dá, à intensidade do seu apercebimento, à sua resposta imaginativa. (…) O leitor desatento passa então duplamente ao lado: passa ao lado da aventura das personagens (para ele, «elas não contam para nada») e passa ao lado da sua própria aventura enquanto leitor. (Diamond 1991, 314-315)

Assim, podemos ver que a vida moral enquanto aventura é tanto conceptual (expandimos os nossos conceitos) como sensível (expomo-nos). Por outras palavras, é ao mesmo tempo passiva (admitimos ser transformados, ser tocados) e agencial (procuramos «um sentido activo da vida»). Não há necessidade de separar a vida conceptual e o afecto, tal como não há necessidade de separar, na experiência moral, o pensamento (espontaneidade) e a receptividade (exposição à realidade e aos outros). James acrescenta que é necessário que nada escape à atenção: «Esforça-te por ser uma dessas pessoas que não deixa escapar nada.» Com esta brilhante perspectiva jamesiana, chegámos à nossa formulação final da ética do cuidado.

No nosso tempo, é muito possivelmente no cinema e em produções televisivas que a atenção wittgensteiniana ao detalhe e a sua proximidade ao cuidado é mais vivamente evidenciada. Uma série de exemplos retirados do cinema recente revelam, por meio da descrição e da narração minuciosa do cuidado, a sua dimensão agencial no âmbito da grande diversidade de formas de cuidado existentes. É como se o cinema, tendo esgotado as representações e conversas em torno do motivo romântico (tipificadas na comédia do novo casamento e no melodrama característico do cinema clássico de Hollywood), descrevesse agora uma variedade mais ampla de formas e objectos de afecto. Podemos pensar na acentuação do cuidado em filmes sobre desastres ou de ficção científica, cujos enredos se centram frequentemente na preservação ou sobrevivência de uma estrutura familiar (The Day After Tomorrow, R. Emmerich, 2004; War of the Worlds, S. Spielberg, 2005; Don’t Look up, 2021). Do mesmo modo, várias séries televisivas recentes centram-se no cuidado (The Leftovers, This is Us) e algumas até apresentam o trabalho concreto do cuidado: Unbelievable (2019), Maid (2021).[2] O cinema e a televisão têm a capacidade de destacar a necessidade e a importância, para todos os humanos, desta dimensão das nossas vidas (cf. Laugier 2019) ― e de moldar inteiramente a percepção e moralidade.

[1] N.T.: Nem sempre seguimos a tradução de M. S. Lourenço verbum ad verba: em vez de «homens», traduzimos «Menschen» por «humanos» ou «pessoas»; e em vez de «castelos no ar», traduzimos «Luftgebäude» por «castelos de cartas».

[2] The Leftovers (HBO: Nova Iorque, USA, 2014–2017); This Is Us (ABC: Tóquio, Japão, 2016–2022); Unbelievable (Netflix: Los Gatos, CA, USA, 2019); Maid (Netflix: Los Gatos, CA, USA, 2021).

 

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