O conto de Vladimir Nabokov «Signs and symbols» foi originalmente publicado com o título «Symbols and signs» na revista The New Yorker, a 15 de Maio de 1948. Trata-se de uma intervenção dos editores, de motivações nunca esclarecidas, para mágoa do autor, que viu assim destruída a alusão à expressão médica «signs and symptoms», especialmente comum nas bulas de medicamentos em língua inglesa. A referência é importante, visto que o conto trata precisamente de referencialidade e interpretação: um casal de velhos imigrantes judeus, possivelmente russos, residente numa grande cidade americana, tenta visitar o filho, internado num hospital psiquiátrico, onde foi diagnosticado com uma doença singularmente nabokoviana, «a mania referencial»:

In these very rare cases the patient imagines that everything happening around him is a veiled reference to his personality and existence. He excludes real people from the conspiracy—because he considers himself to be so much more intelligent than other men. Phenomenal nature shadows him wherever he goes. Clouds in the staring sky transmit to one another, by means of slow signs, incredibly detailed information regarding him. His inmost thoughts are discussed at nightfall, in manual alphabet, by darkly gesticulating trees. Pebbles or stains or sun flecks form patterns representing in some awful way messages which he must intercept. Everything is a cipher and of everything he is the theme. (Nabokov, 2012: 11)

Estamos perante a representação de um processo de leitura desregrada, ilustrando as consequências da pressuposição de um significado: na dúvida ou ausência, criamo-lo, porque disso depende a existência do leitor, qua leitor, do mundo ou do livro. Note-se que a descrição do mundo natural que ali podemos ler, enquanto tessitura de símbolos e sinais, retoma o vocabulário estético do Romantismo no que diz respeito à composição e organização da paisagem. Aquelas nuvens, aquelas árvores, não são nuvens ou árvores, mas algo mais próximo do que Keats escreve no soneto «When I have fears that I may cease to be»:  

When I behold, upon the night’s starred face,
Huge cloudy symbols of a high romance,
And think that I may never live to trace
Their shadows with the magic hand of chance (Keats, 1994: 237) 

isto é, a realidade objectiva não é contemplada por e em si, mas através do filtro de protocolos de interpretação ao serviço da criação literária. O estilo da descrição do narrador contradiz o que afirma, uma vez que a natureza fenomenal está excluída do sistema interpretativo do jovem paciente, constituído pela rede circular de referências que remetem sempre para o leitor em si.

O desenrolar do conto procura colocar-nos nessa posição, sugerindo a iminência de um grande desastre e a resolução da história do jovem hospitalizado e dos seus pais, que nunca chega: impedidos de visitar o filho devido à sua mais recente tentativa de suicídio, o casal regressa a casa, para onde decide trazer o filho no dia seguinte. Durante a noite, o telefone toca três vezes: as primeira duas são engano. Nunca sabemos o que significa a terceira, mas sabemos o que pode significar. É a última numa sucessão de pistas que têm essa aparência, mesmo que não o sejam, reproduzindo em quem lê o efeito da mania referencial. Esta ambiguidade dos sinais que, por acumulação, sugere uma possível organização, foi interpretada por Michael Wood como análoga à de um oráculo, que profetiza sem revelação: «The oracle is an infallible authority who talks to us fallibly» (Wood, 2012: 74). A infalibilidade em causa seria a do divino, a do significado que presumimos haver; falível seria o texto, ou, para ser mais exacto, o leitor que procura ler, ou ouvir, o que lhe for mais conveniente, porque «of everything he is the theme». A proposta de Wood é tentadora para alguém treinado nas contiguidades teóricas entre as ideias de divindade, presença e significado; é, também, como provavelmente será qualquer tentativa de ler «Signs and symbols», uma variação da mania referencial e do pressuposto do significado. Não creio que se possa, por aí, fugir à armadilha de Nabokov. Se aceitarmos a hipótese de que o conto coloca o leitor na posição do filho do casal, tornar-se-á proveitoso examinar em maior detalhe o que sabemos a propósito da possibilidade do seu suicídio, uma vez que esse é o mistério, o núcleo de significado em torno do qual este oráculo compõe o que quer dizer. Isto é importante porque ao identificarmos a «mania referencial» com determinado modo de leitura, estaríamos assim perante um texto que encena a morte do leitor que treslê, quando deixa de ler tudo em todo o lado precisamente por ler tudo em todo o lado. O que o texto nos diz sugere que esse modo de ler é o fim da leitura em si, porque tentamos ouvir um oráculo mudo. O conto não nos oferece alternativa, mas atentar na descrição de uma anterior tentativa de suicídio do jovem pode ajudar-nos a sair de impasses como o de Wood:

The last time he had tried to do it, his method had been, in the doctor’s words, a masterpiece of inventiveness; he would have succeeded, had not an envious fellow patient thought he was learning to fly—and stopped him. What he really wanted to do was to tear a hole in his world and escape. (Nabokov, 2012: 10-11)

O vocabulário retoma lugares-comuns da imaginação romântica e da criação artística, especialmente a literária: «a masterpiece of inventiveness», a imagem do voo que ocorre ao paciente invejoso, a ideia de «to tear a hole in his world and escape.» Já vimos algo assim na descrição dos sintomas da mania referencial. A fuga que a morte representa seria uma maneira de escapar a si mesmo e ao labirinto da referencialidade que o obriga a ver-se em toda a parte, o mesmo modo de leitura que nós, leitores de Nabokov, somos obrigados a adoptar. Essa adopção poderia aqui traduzir-se na fuga ao texto que temos em mãos, consubstanciada no fim da leitura, uma espécie de suicídio do leitor, que, ao parar de ler, deixa de existir. Pode também passar pelo recurso a um outro exemplo, que nos ajudará a compreender o que aqui está em causa.

No conto «O Homem dos Sonhos» (1913), de Mário de Sá-Carneiro, o narrador conhece um homem, possivelmente russo, num café em Paris, que lhe faz uma «admirável confissão» (105). Chamo a atenção para esta palavra, central na poética de Sá-Carneiro (basta pensar em A Confissão de Lúcio) e de considerável importância para o próprio Nabokov (o segundo título de Lolita, de acordo com o prefácio da personagem John Ray Jr, PhD, é Confession of a White Widowed Male). A retórica da confissão, como a do oráculo, passa por construir um valor de verdade, de significado escondido cuja existência deve ser presumida e aceite pelo leitor para que a modalidade do texto possa funcionar. No caso do oráculo, esse texto é caracterizado à primeira vista pela sua ambiguidade, para logo haver um esclarecimento do significado quando o mau intérprete é punido pela sua má interpretação, a de quem quer ler o que lhe é conveniente. A confissão, por outro lado, constrói-se como dependente da sinceridade de quem a enuncia, sendo a introdução de qualquer ambiguidade algo que põe em causa a ostensiva afirmação do significado. Lolita, e a procissão de narradores nada fiáveis de Nabokov, são disso exemplo.

De que trata a confissão de «O Homem dos Sonhos»? Da possibilidade de viver o sonho e sonhar a vida, isto é, de misturar literatura e realidade: «Porque é sonhando que eu vivo tudo. Compreende? Eu dominei os sonhos. Sonho o que quero. Vivo o que quero» (Sá-Carneiro, 1999: 105). Fernando Cabral Martins leu este conto como «uma alegoria da poiesis modernista, que tem o sonho como referente em pé de igualdade com a experiência natural do mundo (...) O Homem dos Sonhos é uma alegoria da própria criação literária (...)» (1994: 143). Eu argumentaria que a leitura de Cabral Martins atribui maior ênfase à retórica confessional do conto, não contemplando o peso que deve ser dado à questão da ambiguidade. A equivalência entre sonho e experiência natural do mundo não leva em conta a plena relevância que pode assumir a questão estilística, a modalidade de escrita, em Nabokov mais evidenciada na questão da leitura, que impõe ao texto uma certeza entre tantas dúvidas: podendo ser alegoria da criação literária, é enunciada em termos puramente literários, removendo o real da equação.

Essa especificidade torna-se mais clara ao notarmos como os termos utilizados pela personagem para descrever o produto dos seus sonhos dominados, aos quais podemos chamar de imaginação, retomam o vocabulário e sensibilidade do Simbolismo, nomeadamente através do interesse no sensorial, a apreciação pela sinestesia, a valorização da impressão passageira:

Narrar-lhe todas as minhas viagens seria impossível. No entanto quero-lhe falar ainda doutro país. Que estranho país esse... Todo duma cor que lhe não posso descrever porque não existe — duma cor que não era cor. (...) Mas o que havia de mais bizarro era a humanidade que o povoava. Tinha alma e corpo como a gente da terra. Entanto o que era visível, o que era definido e real — era a alma. Os corpos eram invisíveis, desconhecidos e misteriosos, como invisíveis, misteriosas e desconhecidas são as nossas almas (...) (Sá-Carneiro 107)

O russo desaparece, a sua memória é, como as suas descrições, fugaz, e o narrador convence-se de que estará perante alguém que vive no mundo real enquanto sonho já que vive o sonho enquanto real, recordando a borboleta de Zhuangzi. Como o jovem maníaco de Nabokov, o Homem dos Sonhos é descrito como possivelmente louco, e loucura é o termo usado também pelo narrador para caracterizar a sua obsessão em tentar compreender o que lhe foi dito.

É, mais uma vez, um lugar-comum da representação da imaginação literária, de linhagem antiga, mas de reconfiguração romântica que terá perdurabilidade até às vanguardas do século XX, passando pela estética simbolista. O significado desta confissão (como o da de Lúcio) será a sua ambiguidade, mas o estilo que a concretiza é reconhecivelmente pertencente a uma tradição literária. Em Sá-Carneiro, como em Nabokov, há um método na descrição da mania da referencialidade que contradiz a sua aparente falta de sentido.

Wood coloca em epígrafe ao seu estudo de Nabokov um verso de William Empson: «Ambiguous gifts, as what gods give must be.» Curiosamente, José Régio encerra o seu ensaio «O Fantástico na Obra de Sá Carneiro» (1964) citando Fernando Pessoa em tom semelhante — «Vendem os deuses o que dão» —, procurando, romanticamente, comentar o suicídio do autor e a relativa abundância e evidente qualidade da sua produção literária. Talvez esta nunca pudesse deixar de ser uma leitura sujeita à mania referencial.

 

Bibliografia:

Cabral Martins, Fernando. 1994. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Estampa.

Keats, John. 1994. Complete Poems. New York:  Random House.

Nabokov, Vladimir. 2012. “Signs and Symbols”. Anatomy of a Short Story: Nabokov’s Puzzles, Codes, “Signs and Symbols”. Ed. Yuri Leving. New York and London: Continuum. 65-81.

Sá-Carneiro, Mário de. 1999. Céu em Fogo: Oito Novelas. Lisboa: Assírio e Alvim.

Wood, Michael. 2012. “Consulting the oracle”. Anatomy of a Short Story: Nabokov’s Puzzles, Codes, “Signs and Symbols”. Ed. Yuri Leving. New York and London: Continuum. 9-14.

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