Nenhuma ave pode ser começo, não porque o ovo venha antes, mas porque o ovo e a ave vêm juntos: é ter ovo que define a ave, sem a qual não haveria ovo. Por outras palavras, «a galinha é o disfarce do ovo» («O Ovo e a Galinha» (O.G.), Lispector), assim como ele é o disfarce em que ela se torna si mesma e se dá um futuro tornando o presente passado:

 

Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. — Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. (O. G.)
 

O começo é o parir do ovo: o tornar-se da ave no que ela é — agente disfarçado na própria auto-representação.

No começo era o parir do ovo, que se dava no canto e no voo (é entre ovo e voo que a ave canta a própria auto-representação). Ovo de rouxinol, o maior dos cantores voadores, ou de cotovia, o maior dos voadores cantores. No começo eram os poemas que pariam metonimicamente o rouxinol e a cotovia, como agentes disfarçados dos poetas que expunham metaforicamente. O rouxinol e a cotovia de carne tinham desaparecido para sempre no espaço azul dos céus do mito e da poesia e em vão algum poeta nominalista tentara restituí-los à sua natureza natural, ao seu ser animal: Borges menciona como Coleridge, em «O rouxinol», um célebre poema conversacional  denuncia  a caracterização tradicional do canto desta ave como a quintessência da melancolia, identificando-a como uma fraude cultural e reivindicando a reconstituição de uma experiência genuína, não artificial, da natureza, não viciada pelos estereótipos poéticos. Que as duas aves podem existir unicamente como incrustação mitológica (segundo a feliz expressão de Borges) do antropológico, tinha-o decidido uma vez por todas Ovídio no livro VI das Metamorfoses, sublimando o rouxinol à metamorfose cruel do humano, deformado no mais antinatural dos exercícios: tornar a geração um ministério de morte («Se me for possível, irei ter com toda a gente; se for encarcerada nas matas, encherei as matas e moverei as pedras a conscientes testemunhas; o céu e os deuses, se nele houver algum, ouvir-me-ão.» — texto ed. por P. Bernardini Marzolla, Einaudi, Torino 1979 e 1994, p.236.). O canto do rouxinol torna-se uma melancólica elegia de morte a partir do mito descrito por Ovídio, num tópos indestrutível da tradição literária ocidental, que a crítica de Coleridge não abala, antes confirma (passando ao lado da investigação etológica, que identifica neste canto um meio belicoso de sedução da fêmea e de afirmação de poder — sinal de controlo do território para afastar os machos concorrentes). Que escrever poesia seja escolher a morte é a dúvida de que ela própria se alimentou desde o início (Keats, «Ode to a Nightingale»), e a alegria da cotovia não chega a ser evidência poética suficiente para a confutar (Shelley, «To a Skylark»). Os poemas de Keats e Shelley formam um par numa inversão do cariz emocional da tradicional melancolia para a alegria, que não é, contudo, mais do que uma diferente estilização do mesmo ponto, porque para ambos os poetas é evidente que a experiência estética de que falam é de cariz metafísico (é uma forma de identificação e interpretação de uma condição cósmica), e não puramente um estado emocional de recepção dos fenómenos da natureza (como pretendido por Coleridge). Não será por isso por acaso que o canto da cotovia é trocado pelo do rouxinol por almas inexperientes, que confundem os cantos, os sentimentos e as leituras; assim, na celebérrima Cena V do Acto III de Romeo and Juliet:

 

Juliet
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierced the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yon pomegranate-tree:
Believe me, love, it was the nightingale.
Romeo
It was the lark, the herald of the morn,
No nightingale: look, love, what envious streaks
Do lace the severing clouds in yonder east:
Night’s candles are burnt out, and jocund day
Stands tiptoe on the misty mountain tops.
I must be gone and live, or stay and die.

Aves de canto e asas milagrosas, que as elevam além do hic et nunc a que é vinculada a  percepção humana para o espaço azul, alto sobre os sentidos do peregrino terreno, em que fica escondida a fonte do sentido,[1] o rouxinol e a cotovia são dríades das árvores (Keats) e dos campos, seres fantasmáticos, míticos, cuja radical insignificância corpórea exibe e amplia a dimensão genuinamente espiritual da suas faculdades, as de cantar e de voar, de se subtrair ao peso da condição terrena, nos seus penosos condicionamentos materiais, para se entregar à pura beleza da transfiguração poética do real. Na penúltima estrofe da ode de Keats, o momento pontual da escuta transfigura-se fabulosamente numa cadeia de ressonâncias temporais em que o reproduzir-se (sonoro e anacrónico) do canto se torna literalmente dissolução da própria fonte: a voz actual já não é origem, mas eco da voz ouvida por outros em outros tempos, possivelmente irreais ­— ouvida em dias antigos, em campos de trigo estrangeiro, por mágicas janelas abertas em perdidas terras de contos de fada.

Numa identificação simbólica que encontra o seu auge na lírica do romantismo, o rouxinol e a cotovia inscrevem-se na tradição literária como alter ego do poeta, partilhando com ele tanto a liberdade de quem não se deixa amarrar ao chão da realidade como a entrega incondicional à arte, ao canto imparável  (não ocupação marginal, mas forma de vida).

No hino por antonomásia («plaintive anthem») a esta identificação, a «Ode a um rouxinol» de Keats, o tempo continua a passar e a matar, mas o canto é imortal, porque brota da mesma fonte intemporal de que também o tempo é gerado (o mistério último em que natureza e espírito são indiscerníveis). É imortal não por estar fora do tempo mas por não lhe estar sujeito — reconhecendo precisamente na morte o triunfo último desta libertação —, o canto e o voo da ave –poeta (levado nas invísiveis asas da Poesia — «viewless wings of Poesy») sublimam a união profunda da arte e da natureza no devaneio niilista da dissolução do corpóreo: o artista vê-se «Sumir ao longe, dissolver e esquecer tudo» («Fade far away, dissolve, and quite forget»), assim como o hino lamentoso se sume além…, em cima de…, por cima de …, no fundo… da paisagem («plaintive anthem fades Past…, over…, Up…, deep…»).

O canto imaterial é ícone da desejada dissolução no espiritual, alcançada definitivamente na morte (por isso a alegria do canto se transfigura inexoravelmente em marcha fúnebre), e a única resistência contra este passo fatal é a dúvida de que ele não resulte, que a morte corpórea não constitua a saída definitiva da prisão da carne para a liberdade do espírito, mas sim o colapso definitivo na inconsciência radical do ser material, desprovido de toda a intencionalidade e sensibilidade: e se morrendo, em vez de deixar não visto o mundo, sumindo-se com o rouxinol pela floresta sombria («leave the world unseen,/ And with thee fade away into the forest dim»), o destino do poeta fosse tornar-se pura, insensível matéria («Still wouldst thou sing, and I have ears in vain—/ To thy high requiem become a sod»)?

Reconduzir a uma fonte natural a escuta escura de quem se escurece ao ouvir no escuro («Darkling I listen») é operação tão hipertroficamente simbólica que o mesmo poeta não pode deixar de a questionar, ficando perplexo à beira da pergunta que relativiza subtilmente a mensagem transmitida. O risco do auto-engano fantástico («Adeus! Não pode iludir tão bem como dizem, a  fantasia,  ninfa enganadora»: «Adieu! the fancy cannot cheat so well/ As she is famed to do, deceiving elf») é intrínseco à identificação metacorpórea com a natureza, e a «negative capability» está sempre à beira de tomar a «blindness» por «insight», a ilusão por epifania, o sonho por visão, a fantasia por conhecimento, o sono (da razão) por vigília («Was it a vision, or a waking dream?/ Fled is that music:—do I wake or sleep?»).

Consciente da ambiguidade fatal de uma comunhão espiritual com o ser do mundo que é mais desejo torturante do que ponto de partida para uma consistente exploração metafísica, o poeta perde-se na incapacidade de traçar as fronteiras e estabelecer qualquer mapa do mundo e da alma: a diferença entre imaginação e fantasia, entre experiência e projecção, é tão evanescente, que baralha as coordenadas perceptivas. A percepção torna-se alucinação, transforma a comunhão num fantasma residual e duvidoso. Na total ausência de luz («But here there is no Light»), a fragrância da noite terna é uma obscuridade perfumada em que se adivinham os doces aromas do Verão («But, in embalmèd darkness, guess») e em que até da lua, rainha da noite, não há mais certeza, a sua ausência tornando-se objecção à sua existência: «E talvez a Rainha-Lua esteja no trono,/ No cortejo de todas as suas Fadas brilhantes» («And haply the Queen-Moon is on her throne,/ Cluster’d around by all her starry Fays»).

O talvez (com sorte), carregado da dolorosa certeza de quem já sabe não poder acreditar em fadas, rui definitivamente na geração sucessiva: a solidão espiritual do poeta romântico torna-se solidão cosmológica do poeta simbolista, que não se afasta mais da sociedade em busca da natureza, porque sabe estar tão sozinho nesta como naquela. Para se aguentar como dispositivo de sentido, o hipertrofismo simbólico tem de se rescindir da natureza e de toda a ambição ontológica directa (a objecção empirista à la Coleridge, afinal, não fica sem efeito), abdicando definitivamente daquela comunhão interior com o ser do mundo que o poeta romântico ainda, todavia, procurava na sua incansável peregrinação de viajante solitário (o poeta romântico é o caminhante por excelência, o «Wanderer» que assombra tantos Lieder schubertianos).

Na geração baudelairiana, o poeta não passeia à noite por bosques, mas por subsolos urbanos de irredimível desolação, e o êxtase é definitivamente qualificado como alucinação. As asas de que brota não se chamam rouxinol e cotovia, mas ópio e absinto. O torpor jorra, vestido de cinzas, álcool e fumaça, e o voo é só lembrança: cisnes ou albatrozes feridos, as aves de Baudelaire já não voam, humilhadas pela própria inadequação.

Mas é o mefistofélico contador dinamarquês de histórias infantis para adultos desesperados, Hans Christian Andersen, quem produz a irreversível mutação genética que marcará o futuro da espécie avilírica, determinando o rumo da sua evolução. Em Andersen, o rouxinol desdobra-se em máquina,[2] abrindo o olhar para uma competição civilizacional cujo resultado está ainda hoje completamente em aberto (no conto, o rouxinol «natural» acaba por ganhar, triunfando graças à superioridade da vida sobre o desgaste entrópico da matéria inanimada: mais um convite homilético ao leitor do que uma persuasiva solução narrativa). A questão posta pelo desdobramento não é apenas a do alerta benjaminiano em relação à transformação da arte na época da reprodutibilidade técnica da obra (a vitória da voz mecânica sobre a natural, o facto de ela se tornar mais popular perante o público, deve-se essencialmente à sua manipulabilidade e à sua previsibilidade: o carrilhão canta ao comando, repetindo a mesma melodia, sempre igual, vezes sem fim; a homologação é uma forma de domínio, mas mais profundamente a da origem mesma da arte e da sua eventual guerra mortal com a técnica, que em Heidegger encontrará o seu mais sistemático teorizador. Se arte e técnica traçam rumos opostos de civilização (o rouxinol e a sua réplica mecânica sendo ontologicamente alheios), a competição e a escolha entre as duas tornam-se uma questão de vida e de morte da humanidade (o imperador que sobrevive sendo não um indivíduo, mas o garante da ordem da sociedade e do futuro da história humana).

Como é sabido, o símbolo vai além da hermenêutica do seu autor: Yeats adopta a ave-máquina, reconhecendo nela um «emblema» daquele doloroso divórcio entre arte e natureza que Andersen-Heidegger irredutivelmente recusam, mas a que a poesia já há muito se entregou. Descartando toda a estilização da arte contra a técnica (um must filosófico a que se votam até anti-heideggerianos militantes, como Adorno), no Yeats bizantino o canto torna-se explicitamente artifício (o disfarce do ovo, em que a ave não sobrevive à morte, mas se perpetua): ser poeta é renegar o eu natural, porque a morte não liberta o poeta reconduzindo-o à sua união com a natureza, mas desvenda o que ele é, ave de ouro sobre um ramo de ouro que canta para um Imperador sonolento.[3] Artifício, voz que ressoa após a morte do cantor graças ao maravilhoso dispositivo simbólico-linguístico que o homem inventou, o canto é imortal porque nunca foi vivo: é voz do espírito («Soul», «heart») que se reconhece a si mesmo, triunfando da doença da carne, tornando-se mais autêntico (mais alto) a cada rasgo da veste mortal que o aprisiona. O Imperador de Yeats é sonolento («drowsy»), como o torpor do poeta em Keats. O canto do rouxinol, de sangue ou de corda, produz uma condição de esquecimento do eu. Imitação da vida que mantém vivo quem o escuta, o canto não é forma corpórea, mas forma grega fundida, unida («gathered») ao artifício da eternidade graças à chama sagrada de um Deus. A permanência da escrita não é da ordem da intencionalidade (o eu é animal agonizante, que o fim apaga), mas é da ordem da linguagem, que subsiste independentemente de quem de vez em quando a usa.

A separação romântica do corpóreo radicaliza-se no simbolismo pós-romântico como separação da natureza, como ênfase desolada («waste») da dimensão artificial da arte: o canto não é mais do que matéria bem forjada («ouro»), animada não pela vida mas pela invenção simbólica, por aquela música não dada aos sentidos que é toda a beleza. Traçar a fronteira entre invenção e experiência, entre natureza e artifício, torna-se exercício não apenas vão mas inautêntico e enganador em Wallace Stevens, para quem a realidade é tão fruto da imaginação como do conhecimento, para quem, mais precisamente, a imaginação é instrumento essencial de conhecimento: «The palm at the end of the mind,/ Beyond the last thought, rises/ In the bronze decor,// A gold-feathered Bird/ Sings in the palm, without human meaning,/ Without human feeling, a foreign song.»[4]

Para os poetas que cantam no país jovem, triunfal e decadente da revolução industrial, é claro que o corte civilizacional que estranhou irreversivelmente o homem da natureza, aprisionando-o às cidades e aos dispositivos técnicos, não é um desvio, uma evolução enlouquecida, mas a evolução inevitável induzida pela separação de si mesmo que é todo o homem: na aspiração espiritual à alienação do corpóreo não pode haver reencontro com a natureza mas exílio da natureza, conflito com ela. A morte não é o preço a pagar pelo reencontro com a origem, mas a condição de origem: o não-ser vivo (da técnica, do conhecimento) é a modalidade de o homem se governar, moldando o corpóreo como instrumento de trabalho, de produção, de cultura, de linguagem, de história. O homem combate em si mesmo a natureza, funcionalizando o corpóreo a um fim espiritual que lhe é alheio e o destrói como sujeito individual, porque não há singularidade senão na identificação corpórea: na contingência de uma identificação espaciotemporal. Sem singularidade, a subjectividade torna-se abstração racional e o indivíduo é pura ocorrência irrelevante, particular em que o universal se aninha antes de voltar a levantar o voo em busca de outra terra, de outro ninho. O idealismo acaba por esvaziar o lugar do sujeito na etapa da marcha para o universal e os milhões de mortos das duas Guerras Mundiais são apenas corpos dos reduzidos a carne (de canhão, de crematório): corpos funcionalizáveis a um desenho histórico em que triunfa o espírito do povo, da nação, sobre a carne do ser humano, e o indivíduo não é o ser singular, único e insubstituível, que deve ser preservado a todo o custo, mas apenas um ser particular, insignificante, intermutável — o indivíduo apenas faz número. O que fica do poeta-indivíduo na evolução do simbolismo de matriz idealista não é a voz, mas o texto: forma corpórea da escrita, a alienação da palavra em traça material, inscrita em substância alheia, totalmente não natural (outra vez Yeats: «Once out of nature I shall never take/ My bodily form from any natural thing»). O autor morre porque nunca foi realmente vivo: foi voz de corda para uma palavra exterior a ele, que não vem da carne mas do símbolo, do dispositivo semântico em que as sociedades se perpetuam e os viventes passam e se põem.

O humano é disfarce da palavra que o poeta reconhece, denuncia e desvenda, pronunciando a verdade da sua falsificação. Despedindo-se das gerações moribundas para se eternizar em textos,  monumentos de intelecto intemporal, renunciando fazer parte do tempo e da natureza, a poesia sobrevive ao poeta, o mundo sobrevive ao homem, o sentido sobrevive ao sujeito. Será mesmo assim? A viagem à Bizâncio do canto intemporal — alheio a tudo o que é gerado, nasce e morre, senhor e não mais vítima da lei da sucessão — será a salvação do poeta ou a sua definitiva perdição?

Já não é ave de ouro a que canta vitoriosa e intemporalmente, mas ave de corda partida, literalmente «deitada fora», o Yeats da palavra final sobre a velhice do poeta, aquele «The Circus’ Animals Desertion», que recapitula o aparato simbólico de uma vida inteira de artista como sucata e lixo urbano, guardados no coração-mercado de pulgas de que o poeta já não tem esperança de fugir (para se unir à eternidade).

Se o preço último da separação do espírito em relação à carne é a abdicação da palavra da voz, do texto da vida, do sentido do tempo, do sujeito da natureza, se a morte se torna ponto de partida e não de chegada, começo e não fim, qual será o lugar do homem, estrangeiro ao mundo, expulso da poesia?

O lugar do homem é a vida da carne, diz uma voz poética (e filosófica) alternativa à separação idealístico-romântica (e antes platónica) do espírito da matéria, da eternidade do tempo, da alma do corpo. A natureza é corpo, matéria, e o sujeito é parte indiscernível dela, reconhecendo a consciência como uma atitude da carne aberta pela vida, fechada pela morte, presa no mistério temporal da sua presença espacial, que os sentidos não transmitem, sendo por ela transmitidos. Em matas líricas secundárias, singularmente pisadas por pé feminino, o canto da ave desabrocha como singular evidência da matriz corpórea da voz, palavra que nasce do sangue e do tempo e a eles não se subtrai; pelo contrário, a eles adere em plena imersão cronológica, instituindo a existência em Presençano instante irrevogável que é tornado duração (Circunferência) definitiva por uma única linha de melodia:

 

At Half past Three,
A Single Bird
Unto a silent sky
Propounded but a single term
Of cautious Melody —
At Half past Four,
Experiment had subjugated test
And lo, her silver principle
Supplanted all the rest —
At Half past Seven,
Element nor implement, be seen —
And Place was where the Presence was
Circumference between —
F1099 (1865) / J1084 (1866)[5]

 

A melodia do canto da ave é um metrónomo infalível que nos situa no tempo e no espaço, conjugando-os (é esta convergência inatingível à percepção, o ‘milagre’ da  Presença); que não nos separa deles, não os anula, mas os amplia: o anónimo Lugar («Place»), tornado meio e cumprimento («implement») do nosso estarmos no mundo no seu cumprimento temporal, estabelece a sua auto-suficiência  («supplanting all the rest»). Um único lugar, um único tempo — aqui, entre três e meia e sete e meia da manhã — são o cruzamento onde o corpo se dá (uma Única ave) como possibilidade de canto (apenas uma única linha: a vida terrena é comedida), como ocasião única e irrepetível de se ter o que chega (o que não deixa haver mais nada fora de si — o que não deixa resto).

A música, o canto, não nascem de um além nunca provado (inacessível a experiência e teste), mas de um encontro com o mundo que transfigura sacramentalmente em mistério a sua carne de tempo e espaço, o seu pequeno («scantilly») não se oferecer senão («but») como o momento único («single term») do aqui e agora sensorialmente acedidos.

Quanto custa, contudo, o milagre deste momento tornado duração, desta palavra de carne tornada poesia, a mulher–poeta sabe-o mais do que qualquer outra pessoa. O corpo é êxtase e sofrimento, é vida e guerra, ensanguentado rasto de morte: o preço de um único instante de beleza, de presença, é uma existência inteira. Quem fala de corpos sabe o que é a faca: 

 

Split the Lark — and you’ll find the Music —
Bulb after Bulb, in Silver rolled —
Scantily dealt to the Summer Morning
Saved for your Ear, when Lutes be old —

Loose the Flood — you shall find it patent —
Gush after Gush, reserved for you —
Scarlet Experiment! Sceptic Thomas!
Now, do you doubt that your Bird was true?
F905 (1865)/ J861 (1864)   

 

Parte a cotovia. Em Dickinson, a poesia torna-se matadouro e o poema coloca a poeta numa mesa de autópsia; e vivisseciona-a (o sangue jorra, jorro após jorro, apenas do corpo vivo que se esvazia até acabar em cadáver). Bolbo após Bolbo, verso após verso, a faca percorre a carne para extrair a música que é Salva («Saved») não por instrumentos mecânicos («Alaúdes»), mas pela vida de quem se ofereceu («dealt») para a tornar actual ocorrência temporal («uma Manhã de Verão»), de quem aceitou morrer para ela (não se dá actualização a não ser como irreversibilidade temporal). Enquanto Yeats procura refúgio da morte na poesia, a que pede a própria transfiguração em voz intemporal, Dickinson afirma que é poeta quem aceita morrer para cantar: Bolbo após Bolbo, dia após dia, verso após verso, é na Experiência Púrpura, ensanguentada, desta oferta que se reconhece a autenticidade da música — que a Ave era veraz.

A verdade que gostamos de esquecer é que comemos a carne dos seres mortos para sobreviver: a arte, como a vida, é violência de Dilúvio («Flood»), enxurrada de Jorros («Gush after Gush»), de ondas, de golpes, que nos abatem e nos arrasam. A poesia é uma eucarística, sacramental doação do corpo transfigurado, para produzir o milagre do canto, mas a poeta-mulher tem um problema adicional deste ponto de vista, porque o seu corpo feminino é visto como impedimento essencial à poesia: na opinião do homem seu contemporâneo, a mulher de Dickinson, apenas por ser mulher, dificilmente pode ser Ave veraz, verdadeira poeta. A arte não é país para mulheres, no Amherst do séc. XIX (como em todos os Amherst anteriores e tantos a seguir: Amherst após Amherst). O corpo da poeta-mulher pode produzir música, mas quem escuta não acredita nela e não ouve. Por isso a pequena cotovia tem de abandonar o céu da Manhã de Verão, descer ao alcance da faca e oferecer-se à Experiência sangrenta da vivissecção: reconhecendo que a música argêntea da cotovia não jorra do além do seu corpo, mas dentro dele, parte vital do seu ser mulher e do seu ser poeta (indissociáveis), o Céptico Tomé poderá finalmente certificar a autenticidade da sua poesia.

A dolorosa e triunfante destituição da auto-representação do poeta como ave em Dickinson, enfrenta em Clarice Lispector, cem anos depois, um desenvolvimento ulterior em direcção à recusa radical da dissolução da matriz corpórea da poesia, contra toda a ambição de uma legitimação simbólica de sentido intemporal. Em Dickinson, a confiança no êxito da experiência estética (a música é rolada na Prata da beleza) e do esforço hermenêutico ainda está patente (em «Split the Lark», a música já não se ouve, mas é encontrada na autópsia interpretativa do poema, pelo que a injunção se torna uma boa metáfora para o exercício do leitor enquanto crítico). Em Lispector, pelo contrário, o canto desapareceu definitivamente como emblema da arte, que não se deixa explicar nem como forma de sentido nem como forma de beleza, mas que unicamente se dá, aparece (é uma forma de exteriorização do mundo):

 

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.— O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. — Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome. (O. G.)


Aparece como mistério plenamente corpóreo de haver algo que não se deixa interpretar, perceber, saber:

 

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou em baixo do ovo. — Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. — O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. (O. G.)
 

É apenas si mesmo, ovo, presença irrecusável a que é impossível atribuir um sentido, uma identidade e até uma existência («O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.»), mas que é tão absorvente que suplanta todo o resto, e se torna razão de sobrevivência:

 

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio. O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez. Ao ovo dedico a nação chinesa. (O. G.)
O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido. (O. G.)
 

Nos dois contos exemplares dedicados por Lispector ao retrato da artista como mulher, «O ovo e a galinha» e «Uma Galinha» (U.G.), esta, «reduzida» a galinha, perdeu precisamente os dois poderes — o canto e o voo — que na linha evolutiva da espécie lírica tinham sido lei de selecção poética dos rumos a tomar. É dotada de asas de curto voo, voo desajeitado, que chegam apenas para um gesto de liberdade de pouca dura (não para alcançar o céu, mas só para se levantar da terra, em fuga, para sempre de novo voltar a cair):

 

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. /…/ Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. (U.G.)
 

 Capaz só de cacarejos roucos e indecisos, a galinha não sabe quem é, não se sabe definir, nem, propriamente, exprimir por meio do canto:

 

A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc./ “Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. (O.G.)
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. (U.G)
 

Às fêmeas não é dado cantar: estúpidas tímidas e livres, elas tornam-se as rainhas da casa sem  o saber e sem o aproveitar («A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.» – U.G.), ficando perdidas em dissimular uma obscura ânsia de liberdade,[6] que não chega a recortar uma individualidade na sequência dos séculos (apenas por um instante, contra o ar à beira do telhado, no sobressalto de uma tentativa fracassada, antes de se afundar de novo na apatia da própria vazia cabeça de galinha, igual a todas as outras: «Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.» – U.G.).

Sendo alguém com quem não se pode contar para nada («Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista»), mas que é sempre de novo constrangido à violência da obrigação social de ter uma utilidade (a de ser morta e comida, a de ser rainha da casa…), a galinha é ser intercambiável, indivíduo sem singularidade aos olhos da sociedade, que lhe concede só a qualidade da quantidade: o facto de fazer número, de serem todas as outras iguais a uma. A galinha é galinhas, a galinha é colónia, aviário em que o instante da morte é o mesmo da vida. E, contudo, na sua absoluta insignificância, a galinha é um ser, porque há algo nas suas vísceras (na sua carne) que faz dela o que é («Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser.»): a galinha não nasceu para ser matada e comida, para ir pela casa fora, para cantar e para voar, mas para pôr o ovo:

 

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida./…/ Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa. (O. G.)
 

E pôr o ovo é o que a galinha faz sempre de novo, no meio da violência, no meio da confusão da resistência ao que se quer dela. Pôr o ovo é o que produz a sua desajeitada, inconclusiva, obscura sede de liberdade, não por nobre escolha de vida, não para afirmar a liberdade superior do espírito, mas porque é isto que está escrito no seu corpo:

 

(…) pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. (U. G.)
 

A ave-poeta não vive escondida no espaço infinito do espírito («in dem blauen Raum verborgen»), acima dos humanos, mas vive entre os humanos («Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família»), desconhecida deles e de si mesma, escondida dentro do próprio corpo, desprovida de toda a excepcionalidade de sentimento e de conhecimento, sendo apenas ela mesma («rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial», U. G.). Mas sermos nós mesmos, sem nos reduzirmos à função que nos é atribuída, é uma liberdade estúpida que a sociedade não pode tolerar além de um certo prazo. Por um tempo pode contemplá-la, espantada e perplexa, até admirada («Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida./…/ O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer»), mas a certa altura deve pôr-lhe fim, decretando o fim da história e da narração, da vida e da arte: «Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos» (U.G.).

No fim era a galinha. O ovo continua a não existir, até ao fim dos tempos, além do fim da galinha, carne que nasce e morre, carne que sobrevive, sofre e gera, para se parir a si mesma naquilo que não existe — para se parir sempre de novo no ovo:
 

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir./…/ Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. (O. G.)

 

[1] «So wie des Wandrers Blick am Morgen Vergebens in die Lüfte dringt,/ Wenn, in dem blauen Raum verborgen, Hoch über ihm die Lerche singt» (Como de manhã o olhar do viajante no céu afunda em vão,/ quando, escondida no espaço azul, alta sobre ele canta a cotovia), Johann Wolfgang von Goethe, «An die Entfernte» (1788, publicada em 1789). Berliner Ausgabe. Poetische Werke [Band 1–16], Band 1, Berlin 1960 ss., p. 44.

[2] Hans Christian Andersen, «O rouxinol», em: Contos. Círculo  de Leitores, Lisboa 2015, pp.123-131.

[3] W.B Yeats, «Sailing to Byzantium», The Tower (1928) (The Collected Poems of W.B. Yeats. Wordsworth Editions, Hertfordshire 2008, pp. 163-164).

[4] Wallace Stevens, «Of mere being», (Late poems, 1950-1955), em: Collected Poetry and Prose, The Library of America, New York 1997, p.476.

[5] Os textos de Dickinson são citados a partir de The Poems of Emily Dickinson. Variorum Edition. Ralph W. Franklin (Ed.). 3 vols. Harvard U. P., Cambridge Mass. 1998

[6] Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. (U.G.)

 

Bibliografia:

 

Clarice Lispector, «O ovo e a galinha», em: A Legião Estrangeira (1964), Contos, Relógio d’Água, Lisboa 2006, pp. 46-54. Citado como O. G.

Clarice Lispector, «Uma Galinha», in Laços de Família (1960). Relógio d’Água, Lisboa 1989, pp. 27-29

J.L. Borges «O rouxinol de Keats», em Outras inquisições (1952), Obras Completas. Vol. II. Globo, Rio de Janeiro 1999, pp. 103-106

John Keats, «Ode to a Nightingale» (1819), em Poetical Works, Oxford University Press, Oxford/New York 1908 (1990), pp. 207- 209.

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