The Haunting of Hill House é uma série da NETFLIX criada por Mike Flanagan (2018) baseada no romance homónimo de Shirley Jackson (1959), do qual retém alguns dados. A série trata do projecto de remodelação de Hill House, uma mansão conhecida por estar assombrada, comprada pela família Crain. O decurso do projecto é atrasado por diversas complicações, como o aparecimento de um bolor negro no interior das paredes ou a detecção de fenómenos paranormais: alguns membros da família Crain falam de divisões da casa que são desconhecidas dos restantes, outros começam a desenvolver faculdades psíquicas e, pela casa, surgem espíritos fantasmagóricos, que se vêm a revelar serem antigos membros da família Hill, que construíra e dera nome à mansão.
O enredo é progressivamente revelado em duas linhas temporais: a dos eventos que se iniciam com a chegada dos Crain a Hill House, e que vai até ao momento em que se vêem obrigados a fugir de lá, e a dos eventos que ocorrem vinte e seis anos depois e que relatam o que leva a família a regressar à mansão. Para além desta amálgama temporal (visto que a alternância entre as duas linhas pode ocorrer em qualquer passagem entre cenas e sem aviso prévio), cada episódio segue a perspectiva da personagem que lhe é central e cabe ao espectador reunir toda a informação particular relevante, e sempre incompleta, ao longo da série.
O primeiro episódio reporta os eventos de uma noite em que Hugh pede aos filhos que fujam da mansão para o carro, exigindo-lhes que tapem os olhos; ao fazê-lo, Hugh deixa Olivia, a mãe das crianças, para trás. Os motivos para a fuga não são explícitos e o facto de a mãe ter sido deixada para trás levanta suspeitas acerca de Hugh. Descobrir o que motivou a fuga constitui o mistério da série e, uma vez que a narração fornece informação lacunar e filtrada, há uma constante sensação de dúvida, com os episódios a terminarem tendencialmente em cliffhangers, ou seja, com a suspensão da conclusão dos eventos. A história progride de modo a fazer desconfiar da fiabilidade da narração e, como tal, o espectador torna-se numa espécie de detective em missão para descobrir e compreender o caso dos Crain — e isto requer um investimento intelectual que vai além do que há de estético em ver uma série.
É exigida aos espectadores uma atenção especial[1]: a sintaxe (a ordem pela qual a história é contada) não é linear, dividindo-se nas duas linhas temporais já referidas nas quais, por sua vez, se distinguem as perspectivas de cada personagem. Assim, pode comparar-se o tipo de concentração exigido aqui ao exigido pela ficção policial: há um mistério, há pistas e há evidências contraditórias que devem ser analisadas. Franco Moretti distingue ainda dois níveis de realidade na ficção policial que são detectáveis em Hill House: o que é revelado superficialmente e o que é encoberto pelo que é superficial (151). Estes níveis de realidade são oferecidos pelo formato cinematográfico e pela quantidade de detalhes que a mansão guarda.
Os Crain são houseflippers, isto é, compram e remodelam casas para as poderem vender por um preço mais alto; e esta função está escondida no apelido da família que é homófona da palavra «crane», guindaste, o instrumento da construção civil usado para levantar objectos pesados. O apelido Crain sobrecarrega a família com a função de consertar a casa, o que condiz com a tendência desta família para o uso do verbo «to fix» (fixar ou consertar), cuja polissemia sugere as ideias de perenidade ou preservação.[2] Por exemplo, Steve, ao escrever romances, procura «fixar» a realidade para tentar compreendê-la melhor, procurando um modo de conservar a realidade através da ficção: «to fix reality through fiction».[3] Já Hugh é quem mais repete a frase «I can fix it» ao longo da série, seja quando descobre o bolor negro[4] que vai atrasar as obras por meses, seja quando acolhe um cadáver nos braços.
Estes artifícios tipicamente literários sugerem uma relação com a literatura parnasiana, incluindo a matriz de terror da série na história literária do género. A mansão parece mover-se de modo sobrenatural, ao ponto de aparentar ganhar vida: muda de forma e guia cada elemento da família para uma sala com uma porta vermelha e cujo interior se adequa aos respectivos interesses individuais; lá, a mansão parece alimentar-se do conteúdo psicológico dos seus habitantes, passando a conhecê-los para, assim, poder ludibriá-los. No último episódio, os irmãos encontram-se na sala vermelha e Nell explica que a sua mãe dizia que as casas eram como corpos:
Mom says that a house is like a body and that every house has eyes. And bones. And skin. And a face. This room is like the heart of the house. No, not a heart, a stomach.
A sala está vedada por uma porta vermelha com uma maçaneta dourada decorada com a fronte de um leão (central para o genérico). A sala vermelha é primeiro comparada ao coração e depois ao estômago da casa, uma analogia com o corpo humano que parece ecoar a que é feita em «The Fall of the House of Usher», de Edgar Allan Poe, onde as janelas são descritas como «empty eye-like». No título deste conto a palavra «House» refere-se tanto à casa como à família dos Usher; tal como em The Haunting of Hill House, que não diz apenas respeito à assombração da casa que pertencia aos Hill, mas também à assombração dos fantasmas da família Hill sobre a casa. Do mesmo modo que Hill House toma os Crain por reféns, o narrador diz que Usher sentia que a casa o prendia: «the house (...) had somehow through the long years gotten a strong hold on his spirit» (22, 26). Note-se ainda que o momento em que Hugh pega em Steve para fugir da casa, no primeiro episódio, é filmado de maneira a que o enquadramento permita conceber que os corredores da casa por onde fogem os estão a engolir, como quando o narrador do conto de Poe escapa, por um triz, da casa dos Usher à medida que esta se desmorona.
Hill House está repleta de estátuas de forma humana, de janelas que permitem avistar o que se passa lá fora e de espelhos que permitem ver o que está detrás do observador. Esta cenografia, aliada aos movimentos lentos e constantes da câmara, permite que sejam entrevistos detalhes que podem facilmente passar despercebidos. Ora, fazendo bom uso da atenção reforçada que é exigida ao espectador, esta construção cénica estabelece um jogo para causar mais sustos ao espectador: The Haunting of Hill House reinventa o Where’s Waldo? ao esconder fantasmas em segundo plano[5] por via de anamorfoses que são facilitadas pelo antropomorfismo das estátuas que decoram a mansão (e. g. quando uma forma sugere várias interpretações, como é o caso da famosa figura «coelho ou pato?»). Como já se referiu, o formato policial põe o espectador a prestar uma atenção reforçada aos detalhes para melhor entender a série, o que o atraiçoa quando, em vez de descobrir pistas, detecta fantasmas no fundo do ecrã, que acrescentam uma sensação de risco para os presentes na cena, incapazes de os observar. Gera-se uma espécie de jumpscare (aqueles sustos ou sobressaltos característicos do cinema de terror); digo «uma espécie de jumpscare», uma vez que não é causado por um movimento brusco (jump), mas antes pela atenção investida na busca de pistas. Uma observação desinteressada da série pode evitar alguns sobressaltos, ou seja, alguns sustos só estão disponíveis a quem investe no esmiuçar de detalhes da série.
A narrativa não-linear alia-se muito bem ao jogo da narrativa policial, no qual tudo deve ser explicado pelo seu término: por exemplo, depois de fugirem da casa, a pequena Nell repara que a camisa do pai tem manchas de sangue, o que, juntamente com o abandono injustificado de Olivia na mansão, pode ser extrapolado para se considerar a prova de um homicídio. A não-linearidade e os despistes causados ao espectador convidam a uma segunda visualização da série para que se possam confirmar as pistas que o seu final denuncia como mais importantes. A este respeito, refiro novamente Moretti, que considera que a sintaxe de um policial é um dos seus aspectos mais importantes e que deve ser dotada de coerência: «a sintaxe de uma história de detectives — mesmo no seu aspecto mais abstracto enquanto relação entre sujeito e narração — prova-se essencial na definição do seu sentido» (133). A sintaxe em The Haunting of Hill House é o elemento que mais requer atenção para que se possa compreender o que se passou com a família Crain. Assim, o objectivo do espectador é o de reconstituir ordenadamente os eventos apresentados para obter um melhor entendimento.
Para melhor assimilar a questão não-linear, voltemo-nos para o primeiro episódio, onde a premissa é lançada, mas não sem antes lançar outros quantos dados que parecem não ter nexo. O episódio começa com o choro de um bebé que interrompe a noite de sono do jovem Steve. Prontamente, o rapaz levanta-se para ir acalmar os ânimos dos irmãos Luke e Nell, ambos de seis anos. Quando Steve abre a porta do quarto, o som do choro termina e os irmãos explicam por que não conseguem dormir: Nell foi assombrada pelo fantasma da Bent-Neck Lady e Luke acorda sempre que Nell está acordada, acrescentando «It’s a twin thing!». Os gémeos acabam por acalmar-se e Steve regressa à cama. A câmara foca-se então na cara da pequena Nell e, no fundo escuro da cena, vemos o rosto pálido de um busto aproximar-se, tomando forma ao ritmo lento e crescentemente estridente do som de um violino. A cena é interrompida pelo genérico. Mas de onde veio o choro do bebé que acordou Steve?
Ao longo da série, a sonoplastia é usada para produzir a repetição perfeita de determinados padrões sonoros, conseguindo o aspecto de rimas. Disso são exemplos as várias cenas que se passam dos dois lados de algumas portas, como quando o som do rodar da maçaneta do quarto de Steve no primeiro episódio é repetido no penúltimo, revelando quem estava do outro lado. Outra rima deste tipo ocorre quando Nell e Shirley tentam abrir uma misteriosa porta vermelha; de início não se revela quem estava do outro lado da porta, mas pode entrever-se uma sombra. O mesmo padrão de sons repete-se no episódio «Touch», quando Theo, a dançar, é interrompida por alguém que roda a maçaneta do outro lado da porta, o que a leva a pensar que é o seu irmão Luke a tentar pregar-lhe uma partida. Estas rimas reúnem cenas distantes e distintas por terem sido apresentadas em diferentes enquadramentos cronológicos; o resultado constitui um transporte temporal por associação, quando recordamos já ter ouvido determinados sons ou descobrimos quem estava do outro lado da porta.
Um outro exemplo surge no episódio «Open Casket», quando as paredes do quarto em que Shirley e Theo estão começam a emitir ruídos, como se recebessem encontrões de fora. Esta cena acaba cortada e passa para uma Shirley, já adulta, a acordar de um pesadelo — o que gera dúvida acerca do que foi mostrado. Depois do velório de Nell, as paredes tornam a bater do mesmo modo quando Shirley e Theo ficam sozinhas na casa funerária. Visto que da primeira vez se tratava de um pesadelo de Shirley, a rima só é identificável por ela e pelos espectadores, uma vez que são os únicos que podem reconhecer a repetição dos sons.
Theo também gera algumas rimas na série, mas, no seu caso, são mais de carácter visual, uma vez que Theo possui um dom extraordinário de sensibilidade: é capaz de ver o passado ou o futuro daquilo em que toca. Esta é uma faculdade difícil de controlar, uma vez que o tacto permeia todo o corpo e, para solucionar o problema, Theo começa a calçar luvas, protegendo-se com uma camada que a separa do contacto directo com pessoas e objectos, para evitar as visões. O carácter descontrolado da sua clarividência é demonstrado pela rapidez com que se apresenta a sequência de visões motivada pelo tacto; por exemplo, no episódio «Touch», descobre-se que, quando Hugh pediu aos filhos que fossem para o carro para fugir da casa, este toca em Theo, o que lhe permite a ela ver um momento do futuro e outro do passado: o momento do futuro diz respeito aos eventos do final da série, quando o seu pai é confrontado pelo fantasma de Poppy Hill (membro da família Hill que parece ter vindo dos Roaring 20s) antes de morrer; já o momento do passado revela a Theo o que motivou o pai a querer salvar os filhos. Esta rima só se torna evidente quando o espectador se apercebe de que, no momento em que a família Crain foge da casa, Theo já tinha pistas para o que aconteceria vinte anos depois, mas que não era capaz de as interpretar por não saber distinguir as visões que se referem ao passado das que se referem o futuro.
As rimas, sonoras ou visuais, assemelham-se à sensação de déjà vu — de que algo suficientemente similar ao que se está a sentir já teria acontecido anteriormente. Nesta série, os déjà vus têm a particularidade de se intrometerem por vários regimes ontológicos: presente e passado, real e sonho ou alucinação, contado e vivido, ou mesmo os lados conhecido e desconhecido de uma porta. Assim, desnorteia-se o espectador, que põe em causa a cronologia apresentada (o pesadelo de Shirley enquadra as irmãs enquanto crianças, mas quando desperta já é adulta) ou questiona a credibilidade do que é apresentado (as paredes que batem depois do velório activam o déjà vu e fazem pensar que o pesadelo teria realmente ocorrido).
O problema das batidas nas paredes recebe uma nova intensidade quando o fantasma de Poppy Hill explica como perdeu o seu filho, uma criança que não podia andar nem falar e que se movimentava com o auxílio de uma cadeira de rodas. Como tinha graves dificuldades de comunicação, o filho de Poppy Hill batia com força nas paredes do seu quarto para chamar a atenção da sua mãe.[6] Mas quando Poppy conta tudo isto a Olivia, interrompe a narração dizendo «but it was all just a dream», o que se interpenetra com o pesadelo de Shirley, dando-lhe por fundamento informação que não se sabia acerca deste rapaz.
Poppy Hill é um fantasma interessante, não só pela sua prosódia, que imita a voz das novelas de rádio dos anos 30, como pela forma como seduz Olivia: a história do seu filho serve para convencer Olivia a não deixar os filhos crescer, de modo a evitar que cumpram os destinos que lhe foram sugeridos num pesadelo em que tentava, sem sucesso, embalar os gémeos, que lhe dizem:
Nell: What if I have a worse dream? (…) You send us away, out into the dark, and my heart breaks right in half, and I can’t feel anything happy, for weeks and months and years until I can’t stand it anymore. And I have to die.
Luke: And what if I’m so sad and scared of the dark out there, that I put poison in me? I poison myself for years and years, until my blood turns into poison, my body breaks down.
Nell: You send us out there into the dark and the dark gets us, a piece at a time, over years and years and years, until I’m on a silver table, with my jaw wired shut, and Luke is dead and cold on the floor with a needle in his arm.
No pesadelo, Nell diz ter medo de acabar numa «silver table» como aquela em que Shirley a prepara para o funeral, depois de morta; e Luke diz temer chegar ao ponto em que substitui o seu sangue por veneno, o que condiz com a sua futura toxicodependência. As futuras acções de Olivia, que apenas queria ser uma boa mãe, levam a uma reviravolta edipiana, cumprindo as profecias dos pesadelos ao agir de modo a poder evitá-las. Foi Poppy Hill quem concebeu este pesadelo para enganar Olivia, que é acordada, mais tarde, pelo seu filho Steve, que a encontra especada a olhar para as camas dos gémeos vazias, enquanto acreditava falar com eles.
Nas intenções de Olivia podem detectar-se dois aspectos que seguem o programa da estilística parnasiana: a impassividade apreciada na arte da estatuária cumpria-se pela manutenção da aparência dos filhos, que seriam fantasmas, e a impessoalidade cumpria-se ao impedir que crescessem para formar personalidades próprias. Olivia, incapaz de se conformar com a passagem do tempo e a mudança, torna-se na vilã da série e mascara os seus macabros objectivos de instintos maternais: o seu desejo de manter uma ligação com os filhos é o que a cega ao ponto de os tentar matar.
Os fenómenos «preternaturais» (como diz Steve), o aparecimento de fantasmas, a sensibilidade mediúnica de Theo e a capacidade premonitória dos sonhos de Olivia são anacronismos na narração, justificando-se assim o seu carácter sobrenatural. Naturalmente, os fantasmas parecem não existir, os sonhos constam de conteúdo latente psicológico e tendemos a duvidar de quem nos toca e diz saber qual é o nosso destino; porém, o nosso interesse pelos fenómenos sobrenaturais desta série relaciona-se com a atmosfera assustadora que a sobredetermina, a começar no título The Haunting of Hill House, e que torna desde logo evidente que o enredo a desenvolver se insere num género específico. Só é claro que o sobrenatural é um conjunto de anacronismos narrativos quando se conhece a totalidade dos eventos da série e os destinos dos vários membros da família Crain. Assim, na primeira visualização, o espectador não compreende imediatamente que o sobrenatural é composto por pedaços de tempo fora do sítio: os fantasmas explicam-se quando se revela que a casa prende os espíritos de quem lá morre dentro; os sonhos de Olivia são mostrados numa altura em que o espectador já conhece os destinos de Nell e de Luke de modo a que os sonhos tenham uma intensidade sobredeterminada para o espectador que já os viu concretizados (tanto Nell morta numa «silver table», como Luke a injectar-se com heroína); as visões de Theo também só se tornam compreensíveis quando nos damos conta dos destinos das várias pessoas.
No último episódio, «Silence lay steadily», o fantasma de Nell aparece aos irmãos que se reuniram na sala vermelha de Hill House — o estômago da casa —, produzindo um discurso que começa por se assemelhar à reprodução de um disco riscado, repetindo frases lacónicas e desmotivadas:
I feel a bit clearer just now. We have. All of us have. Wouldn’t have changed anything. I need you to know that. The rest is confetti. No, not a heart. A stomach.
Quando diz sentir-se mais nítida (“clearer”), Nell refere-se ao facto dos irmãos a poderem ver finalmente, prestando-lhe a atenção que sempre desejara. No início, os irmãos estranham e consideram que a comunicação com o fantasma de Nell é impossível, uma vez que repetia frases incompletas e aparentemente sem nexo. É então que Shirley diz «I feel like I’ve been here before» e Nell pára, olha para a irmã e retoma o discurso de modo a responder-lhe:
We have. All of us have. So many times and we didn’t know it. All of us. I feel a bit clearer now. No, not a heart. A stomach. We have. All of us have. So many times and we didn’t know it. All of us. I feel a bit clearer now.
As frases de Nell são anacronismos: respondem a questões que ainda não foram colocadas. A resposta precoce à frase de Shirley, «I feel a bit clearer just now», faz parecer que o facto de estar morta lhe garante um conhecimento superior acerca do que vai acontecer, permitindo responder antes do tempo. Tal como os outros fantasmas, Nell é um anacronismo: um pedaço de tempo enquadrado fora do seu tempo de vida. De seguida, Nell revela o grande problema da série e que resolve a interpenetração das linhas temporais em Hill House, justificando o modo não-linear da narrativa apresentada:
Everything’s been out of order. Time, I mean. I thought for so long that time was like a line, that our moments were laid out like dominoes, and that they fell, one into another and on it went, just days tipping, one into the next, into the next, in a long line between the beginning and the end. But I was wrong. It’s not like that at all. Our moments fall around us like rain. Or snow. Or confetti.
À visão de que o tempo é visto como dominós que causam a queda da peça que vem a seguir, de um modo cronológico ordenado (passado, presente e futuro), Nell contrapropõe uma teoria não-linear para o tempo: a teoria-confetti. Em vez de peças de dominós que representam uma concatenação de acontecimentos como causas e efeitos numa linha que não se repete, Nell sugere que a forma como os confetti caem explica melhor a noção de tempo, o que permite desmontar a aparente linearidade de uma qualquer sequência de eventos por via da sensação do que nos cai em cima — os confettis, como a chuva ou a neve, podem ter várias intensidades, provir de várias direcções e são difíceis de contabilizar, o que implica que não há, para esta teoria, um instrumento que permita a contagem do tempo para além da sensibilidade do corpo que sente o ligeiro peso dos pedaços de confetti que lhe caem em cima.
A teoria-confetti facilita a compreensão de dois plotholes da série: o bebé que acordou Steve no primeiro episódio e o «outro corpo» acerca do qual Hugh é interrogado pela polícia. Acerca do bebé, a última cena da série é a da entrada do caseiro Mr. Dudley em Hill House, carregando o corpo moribundo da sua mulher. Ao morrer dentro da casa, Mrs. Dudley surge ao seu marido como um fantasma a segurar no bebé que tinham perdido por aborto espontâneo e o choro deste bebé rima com o choro que acordou Steve na mesma mansão, cerca de vinte e seis anos antes. O corpo que a polícia encontrou na casa é explicado no último episódio, quando a família está a sair da mansão, Steve e Hugh tropeçam em algo que está no chão, mas que não é revelado pela câmara, levando a uma desconfiada troca de olhares. Quando ficam sozinhos, Hugh agradece o silêncio: «Probably best you didn’t say anything to them». Acontece que, momentos antes, e no mesmo espaço em que tropeçaram em algo, Hugh tinha negociado com o fantasma de Olivia um modo para libertar os filhos que estavam presos na sala vermelha a conversar com Nell. O corpo que estava no chão, detectado pela polícia depois dos eventos da noite da fuga, era o corpo de Hugh, envelhecido e irreconhecível para qualquer membro da família no momento em que fugiam da casa, vinte e seis anos antes da sua morte. Forma-se, assim, uma construção similar à das escadarias dos desenhos de M. C. Escher: imaginando a possibilidade do seu percurso, seria possível sair de um dos lados da moldura e reentrar pelo outro lado; em ambos casos, uma personagem entra na casa no fim da linha temporal (o bebé ou o corpo morto) e ressurge no início.
A teoria-confetti do tempo é um comentário metaléptico acerca do modo de narração da série — ou seja, um comentário que pretende explicar a maquinaria narrativa que gera a ilusão ficcional — não só pela sua não-linearidade, mas também pela forma como os tempos vividos e perspectivados por cada um dos Crain se reúnem e se complementam. Neste discurso, Nell explica que o tempo (e a própria série) não é linear nem se distingue em várias linhas temporais. O tempo — e o desta narrativa em particular — é como um derrame de dados lacónicos a complementar à medida que mais dados são recebidos. O tempo é equacionado com a velocidade com que se associam ideias em torno de um determinado evento e, na série, esta noção de tempo é forçada ao espectador à medida que descobre o que se passou e o que motivou as várias pessoas envolvidas.
Deve ser mencionada a mais macabra manipulação temporal da série: a que ocorre com a morte de Nell, no episódio «The Bent-Neck Lady». Ao longo da sua vida, Nell foi constantemente assombrada pelo fantasma de uma silhueta da qual apenas se podia distinguir o pescoço dobrado, o que justifica o nome da assombração — The Bent-Neck Lady. Há determinadas transições entre cenas em que este fantasma assombra Nell quando era criança e cenas de Nell em adulta que indiciam o que se passa por via de uma mera sobreposição de dois planos, em que as madeixas dos cabelos da Bent-Neck Lady se sobrepõem perfeitamente às de outra personagem.
Adulta e desequilibrada, Nell nunca recuperou dos traumas que viveu em Hill House, o que a leva a recorrer à psicoterapia. O médico incita-a a regressar à mansão como esforço para enfrentar os seus medos e lá Nell é incentivada pelo fantasma da sua mãe a um suicídio por enforcamento. Mas, à medida que cai e, no momento em que a corda dá um esticão no pescoço, o tempo é torcido e esta Nell morta, de pescoço dobrado, aparece a si mesma alguns momentos antes de regressar à mansão. O esticar da corda e o dobrar do pescoço ocorre por várias vezes, explicando e recontextualizando cada episódio da assombração da Bent-Neck Lady até que, por fim, a corda se desenrola, Nell cai, torna a torcer o pescoço e pode ver-se a si mesma, com apenas seis anos, a chorar de medo, e murmura «No, no, no... No, no, no...» — o único ruído que a assombração alguma vez emitiu.
As torções temporais, que apresentam um enredo desnorteante e surpreendente, bem como a superstição por assombrações fantasmagóricas, ajudam a compreender alguns aspectos da forma como lidamos com a ausência de entes queridos. Se o tempo não for visto como um dominó, então não é o facto de as pessoas estarem próximas fisicamente que determina a intensidade da relação. Se o tempo for como confetti e depender do processamento intelectual de dados empíricos ou relatados, então a sensação da ausência (que nunca é estética, mas depreendida por oposição conceptual) é reduzida. Nell distorce duas dimensões canonicamente distintas: tempo e espaço. Se o tempo é como confetti, então está dissolvido no espaço e depende da comparação de estados de coisas para fazer ressaltar o que neles há de semelhante ou diferente: Hill House invoca as memórias de quem lá viveu e torna-as manifestas como fantasmas que circundam determinados objectos ou espaços a que atribuíam importância em vida (e. g., o fantasma de Mr. Hill que assombra Luke por causa de um chapéu).
As palavras de Nell sobre como lidar com a perda ou a ausência de entes queridos são dóceis:
Forgiveness is warm. Like a tear on a cheek. Think of that and of me when you stand in the rain. I love you completely, and you loved me the same. That’s all. The rest is confetti.
O seu discurso serve para responder às preocupações dos irmãos, que lamentam não ter aproveitado para estar com ela enquanto ainda estava viva. Ainda assim, Nell é optimista acerca da sua condição, do luto e do funcionamento associativo da memória: se o tempo é confetti, correspondendo à velocidade da associação intelectual de dados sensoriais, então, sempre que se visita uma casa em que já vivemos ou que se contacta com um objecto com o qual já tivemos contacto, essas memórias são accionadas por uma metonímia que permite um transporte (então, é a comparação de dois estados distintos de coisas que faz com que a memória experiencie anacronismos).[7] Assim, o luto, a memória e o respeito pelos mortos não são sensações faseadas ou com tempo contado, mas que podem ser activadas acidentalmente na memória (por uma justaposição de dados similares). Nell pretende que os seus irmãos vivam a vida desprovidos dos remorsos pelo que não puderam aproveitar com ela. Esta é, sem dúvida, uma das melhores intimações que os mortos (ainda que ficcionais) podem fazer aos vivos.
[1] A adopção das perspectivas das personagens leva a uma filtragem da informação dos eventos narrados: a personalidade, as crenças e os preconceitos de cada membro da família interferem na informação, o que se revela na capacidade de ver ou não determinadas coisas. Por exemplo, em «Steve sees a ghost», a perspectiva é a de Steve, que é céptico em relação ao que o resto da sua família diz ter visto em Hill House; neste episódio, Nell surge a dançar sozinha pelas ruínas da mansão, porém, no quinto episódio, que apresenta o ponto de vista de Nell, pode ver-se com quem estava a dançar. Ao tomar a perspectiva céptica de Steve, o primeiro episódio permite uma lenta e estável entrada no fluxo dos acontecimentos incríveis que a série vai relatar: a dúvida de Steve é o ponto de vista de quem não se deixa assustar pela ficção de terror.
[2] A tendência pelo conserto ou pela preservação das aparências remete para o programa da poética parnasiana de meados do século XIX, que pretendia sugerir a perenidade das formas belas por via de poemas de louvor a estátuas, motivados pela sua capacidade de reter aparências. O assunto é devidamente circunscrito nos termos da sua origem em França por Barbara Johnson no ensaio «1866, The dream of stone», do volume A New History of French Literature, organizado por Dennis Hollier.
[3] A respeito dos restantes membros da família e das suas relações com o polissémico to fix, Shirley é tanatopraxista, maquilha mortos de modo a conservar as suas aparências em velórios e funerais; a sua actividade é de «to fix appearances», onde o verbo tem o valor de «conservar». Já, Olivia, a mãe, age de um modo diametralmente oposto: ao tentar matar os próprios filhos pretende conservar as suas aparências infantis, de modo a preservar o seu papel de mãe. As suas actividades podem ser descritas com a mesma frase que se usou para Shirley e com a mesma valência semântica. Theo, por sua vez, é psicóloga, procura resolver os dilemas dos seus pacientes, pelo que a sua acção é a de «to fix through psychotherapy», com o sentido verbal de consertar. Luke é viciado em heroína, o que o leva a «to need a fix», com o valor de dose de heroína. Já a sua irmã gémea, Nell, sempre sentiu que a família não lhe prestava atenção, pedindo por várias vezes que se fixassem nela, alcançando apenas o seu objectivo quando reúne a família para o seu velório; a descrição da sua função seria «to fix someone’s attention».
[4] Em Hill House, o ar tóxico do bolor negro que atrasa a remodelação pode motivar as recorrentes enxaquecas de Olivia, que é quem mais manifesta a perda de controlo das suas acções. Numa mansão repleta de estátuas e de longos e labirínticos corredores, a constante inspiração de ares tóxicos pode muito bem justificar que se acredite ver assombrações, reduzindo-as a fenómenos químicos. Esta justificação parece remover a distorção dos binómios místicos entre vida e morte, natural e sobrenatural, que suscitam intriga nesta história, mas em simultâneo, o bolor negro é um elo para novas associações de ideias que renovam a dúvida do espectador. O bolor explica esta narrativa do mesmo modo como alguns filmes terminam com o despertar de um sonho: é mais um desnorteio para o espectador, que faz duvidar da veracidade narrativa do que viu até então.
[5] Os realizadores da série dispuseram do fórum online Reddit para explicar que cada um destes fantasmas era um membro da família Hill. O conhecimento de que são membros da família Hill vem de uma fonte que está para além da série e não surte efeitos na sua economia: os realizadores podem justificar os fantasmas, mas o seu surgimento continua a ser gratuito, ou seja, estes fantasmas só servem para assustar.
[6] O fantasma do filho de Poppy surge no sexto episódio, durante uma tempestade, a sair de um dos quartos para o corredor na sua cadeira de rodas.
[7] A descrição de um fenómeno semelhante é eximiamente conseguida por Gérard Genette, no ensaio «Métonymie chez Proust», onde explica como Proust alicerçou a narração da Recherche: «Sans métaphore, dit (à peu près) Proust, pas de véritables souvenirs; nous ajoutons pour lui (et pour tous): sans métonymie, pas d’enchaînement de souvenirs, pas d’histoire, pas de roman. Car c’est la métaphore qui retrouve le Temps perdu, mais c’est la métonymie qui le ranime, et le remet en marche : qui le rend à lui-même et à sa véritable «essence», qui est sa propre fuite et sa propre Recherche» (1972, 63). Segundo Genette, é a metáfora que permite um transporte temporal que só pode ser alcançado pelo conseguimento de um contexto metonímico suficientemente similar que permita a associação e comparação.
Bibliografia
FLANAGAN, Mike, The haunting of Hill House, FlanaganFilm, Amblin Television, Paramount Television, 2018, NETFLIX, https://www.netflix.com/title/80189221 .
GENETTE, Gerard, «Métonymie chez Proust» in Figures III, Paris, Éditions du Seuil, 1972, pp. 41-63.
JACKSON, Shirley, The haunting of Hill House, Nova Iorque, Penguin Books, 2018.
MORETTI, Franco, Signs taken for wonders, essays on the sociology of literary forms, tradução de Susan Fischer, David Forgacs e David Miller, Londres, Verso, 1988.
POE, Edgar Allan, Complete stories of Edgar Allan Poe, Nova Iorque, Garden City, 1966.