Este texto é dedicado a Maria Armanda
Epígrafe
― Qual foi o pior momento desde que cuidas das mães?
(silêncio)
― Naquele fim de tarde quando a mãezinha já não conseguiu chegar a tempo à casa de banho e fez chichi pelas pernas abaixo, chorou. Eu chorei também e percebi que tinha chegado o momento de cuidar para que ela nunca mais chorasse por fazer chichi pelas pernas abaixo.
(silêncio)
Há quatro anos que cuido, juntamente com a minha irmã Ana, das nossas mães, Armanda e Isabel, que estão ambas acamadas e com demência. Esta situação revolucionou as nossas vidas e as das delas. A casa foi transformada, os nossos tempos também, as roupas foram mudadas, os cheiros também. As nossas idas e vindas de casa, o sentido da rua, do privado e do público, tudo se alterou. A nossa vida emocional e o cuidado com ela, o cuidado com as flores que a minha mãe Armanda plantou e sempre adorou e que mantemos no quintal fazem parte das nossas vidas. Sinto verdadeiro prazer em falar e beijar as minhas mães, de as alimentar, de as deixar cheirosas a cada muda de fralda. Isto é cuidado e é trabalho e, em muitos dias, exaustão emocional. Mas sem isto a vida não aconteceria nem para as flores, nem para tantas coisas que estão muito para além dos corpos inertes delas e das mentes povoadas por sonhos e monstros dos quais já não conseguem falar. E é a partir daqui, deste lugar, que começo a pensar a política do cuidado, a ontologia do cuidado e a minha própria ignorância acerca disto tudo.
Introdução
A pandemia trouxe a necessidade de falar do cuidado, dos cuidados. Parece que, quase de repente, toda a gente entendeu quanto a vida e os cuidados são fundamentais às sociedades e para garantir as condições necessárias à nossa existência. A hipertrofia das reflexões, publicações e das notícias sobre o cuidado ― em particular, sobre os cuidados de saúde por causa da infecção COVID-19 ―, revelaram uma parte, sem dúvida importante, do que está em causa. No entanto, ao mesmo tempo, foram subsumindo na retórica sanitarista, colonizada pelas metáforas bélicas, o pluriverso dos cuidados que sustentam a vida em todas as suas formas e que, afinal, são os alicerces, sem os quais, nos tornaríamos incapazes de sobreviver. É sobre isso que fala a epígrafe desta reflexão: sem o cuidado, a vida rapidamente se transformaria no medo, no desconforto, na sujidade de não chegar a tempo de fazer chichi num local adequado e asseado. Sem cuidados, chegam rapidamente as inseguranças e as doenças, a vergonha e o sentimento de abandono. E não são apenas as pessoas idosas ou as que, pela idade e condições de vida mais vulneráveis, ficam indefesas, desprotegidas ou fragilizadas. Sem o cuidado, todas e todos nós deixaríamos de ter condições para viver uma vida digna e gostosa de se viver. Pensar para além dos discursos correntes sobre os cuidados e colocar em cima da mesa tudo o que fica escondido e é desvalorizado no acto de cuidar de si, das outras e dos outros e da Terra, é o que me move neste ensaio.
Este ensaio é metodologicamente inspirado e baseado na auto-etnografia dos cuidados que, ao longo dos últimos anos, eu fui realizando acerca dos cuidados que eu e a minha irmã decidimos prestar às nossas mães. Trata-se de trazer para a reflexão académica a ideia de que os conhecimentos são gerados na intersecção permanente entre o sentir-saber-fazer. Esta proposta teórica vem no eito dos feminismos para os quais o que é pessoal é sempre político (Hanisch 1969), os conhecimentos são sempre elaborados a partir de um corpo concreto que vive e sente num contexto concreto (Celentani 2014; Cunha 2014) e quantos mais conhecimentos interagirem mais rigorosa e potente será a nossa ciência (Harding 1998). Esse entrelaçamento simbiótico entre pensar, agir e sentir é tanto um corazonar (Arias 2010) como uma racionalidade outra (Cunha e Valle 2022) que sustenta, não apenas uma crítica à hegemonia da razão kantiana, pura e desencarnada e a todas as suas derivações modernas ocidentais, mas procura contribuir para uma descolonização das ciências sociais.
Este ensaio está estruturado em duas partes principais. Na primeira, faço uma breve reflexão sobre a economia política contemporânea para, na segunda, fazer uma proposta teórica com base nas epistemologias do Sul (Santos e Cunha 2022) sobre os cuidados.
Começando a pensar sobre a economia política contemporânea e os cuidados
Começo por argumentar que o capitalismo ― com a sua obsessão pela mercantilização absoluta da vida ―, o colonialismo ― e a sua pulsão racista que continua a produzir um mundo dividido entre metrópoles e colónias cuja linguagem principal é a violência e o despojo ― e o heteropatriarcado ― para o qual a manutenção da menoridade ontológica e social das fêmeas humanas e de todos os seres que se representam como femininos[1] é central e indispensável ― são os três grandes sistemas de dominação e exploração contemporâneos. Eles criam e mantêm um sistema de privilégios, hierarquicamente constituídos, diligentemente vigiados que, entre outras coisas, equaliza mulher e natureza, transformando ambas em objectos de exploração, naturalizando ainda a ideia de que lhes cabe a obrigação de cuidar em diferentes esferas sociais: doméstica, comunitária e institucional. Esta forma de entender o que é cuidar e o que são os cuidados, não apenas encobre todos os trabalhos implicados neles, como os inferioriza, desqualifica e estigmatiza, pelo que passam a ser considerados subsidiários, residuais e improdutivos. Esta visão dos cuidados, vivida no dia-a-dia de quase todas as mulheres do planeta, é aquilo que Amaia Orozco (2014) designa de ética reacionária do cuidado e que tem servido para justificar a subalternidade das fêmeas-mulheres, da sua agência e conhecimentos, legitimar a acumulação de dinheiro, poder e autoridade por parte de uma pequena elite composta especialmente por homens brancos, e manter o desprezo pela vida na sua diversidade. Esta distorção da realidade dos cuidados fica muito evidente na força hegemónica da ética reacionária do cuidado que habita a resposta da minha irmã quando alguém lhe perguntou o que fazia ― ou seja, que profissão tinha. O seguinte excerto faz parte da auto-etnografia sobre os cuidados das nossas mães.
― Eu sou cuidadora informal. Eu não trabalho. Eu cuido delas, limpo, cozinho, preparo as papinhas, estendo a roupa, passo a ferro, dou-lhe os medicamentos, mudo-lhes as fraldas quatro vezes por dia, vou às compras para casa, vejo o que há para comer e decido o que cozinhar. Há cinco anos que não durmo fora de casa porque elas não podem ficar sozinhas.
Este mito da obrigação natural das mulheres para cuidar é tão poderoso que prescindir dele para dar sentido ao cuidado que optamos por prestar aos nossos seres amados parece desmontar a nossa identidade de boas e abnegadas mulheres. Assim, não só se expurga a política dos cuidados ― porque, afinal, isso é coisa do privado onde a presença de uma leitura política é uma intrusão ou uma limitação da sacralizada liberdade individual ― como se expulsa todo esse trabalho da economia produtiva. O resultado é a redução dos conhecimentos e competências imaginados, construídos e transmitidos a partir das experiências e práticas diversas das cuidadoras ― e alguns cuidadores ― à impertinência e irrelevância. O desprezo a que foram votados os conhecimentos gerados pelos cuidados, ridicularizados e remetidos para «coisas de mulheres», tem permitido criar uma hierarquia epistemológica que acompanha a desvalorização política do cuidado tanto nas suas dimensões sociais quanto ecológicas e ontológicas.
No entanto, a simples observação quotidiana da vida mostra, sem lugar a dúvidas, que cuidar é um trabalho absolutamente necessário, ininterrupto e exigente, que obriga a uma resistência permanente à frustração; um trabalho que requer concentração, criatividade, força, coragem, paciência, persistência e amorosidade. Cuidar, afinal de contas, é um trabalho sem o qual a vida não se mantém, em qualquer das suas formas e, por isso, é um trabalho de todas/os por todas/os.
Por esta razão, a narrativa criada nos meios de comunicação social que prevaleceu ao longo do período mais severo da pandemia de COVID-19, proclamando que a economia havia parado, necessita de ser questionada profundamente. Tendo por base a minha experiência pessoal de cuidadora, mas também a observação atenta da realidade e as trocas de conhecimentos que se foram realizando durantes esses dois anos mais difíceis, defendo que, pelo contrário, as economias que produzem a vida incessantemente, i.e. as economias do cuidado, sempre estiveram e estão a funcionar na sua máxima capacidade. A real e gigantesca economia dos cuidados nunca parou de proteger, alimentar, abrigar, curar, produzir alimentos, limpar, apoiar e amar. Contra-a-corrente da ideia de mais uma recessão económica global, entendo que há que afirmar que as economias do cuidado estão em marcha, ainda que muitas vezes silenciadas, desprezadas e fragilizadas. Apesar de tudo, elas permanecem, acintosamente, presentes nos nossos dias criando alternativas e dando-nos os sinais de que precisamos para buscar as alternativas que nos podem salvar agora e no futuro.
Cuidar e ser cuidada/o e a racionalidade feminista artesanal
As epistemologias do Sul chamam-nos à atenção para a necessidade do fim do império cognitivo (Santos 2018) da modernidade ocidental europeia. Elas convocam-nos ainda a desaprender para poder aprender, a desejar o inesperado e a silenciar a nossa arrogante razão abstracta para poder ver os muitos mundos (Escobar 2020) que vivem e prosperam para além das nossas mentes estreitamente treinadas em conceitos e ideias preguiçosas. Neste sentido, faz muito sentido para mim pensar que cuidar e os cuidados podem ser tematizados e compreendidos a partir daquilo que, nas sociedades Macuas do centro e norte de Moçambique, se designa como Wunnuwana. Wunnuwana significa «crescer com»: tanto no sentido que empregamos quotidianamente como no sentido de uma relação tridimensional de reciprocidades entre as pessoas, os seres que estão para lá dos humanos e o sagrado (Cunha e Silva 2021). Só se é e só se cresce, isto é só florescemos e nos humanizamos, participando na vida da comunidade que envolve sempre as criaturas de todos os tempos: as que estão, as que estiveram, mas continuam a estar de outra maneira, as que ainda não estão, mas já estão. A plenitude dos seres só se atinge no cuidado que essas relações sofisticadas e permanentes exigem e promovem.
Defendo vigorosamente que não cabem às fêmeas-mulheres os trabalhos do cuidado nem pela sua natureza nem por qualquer obrigação. No entanto, ao longo dos séculos, talvez milénios, e em muitos lugares do mundo, fomos nós que assumimos essas tarefas e responsabilidades. Tal responsabilização milenar pelo cuidado ― trabalho muito mais complexo do que as tarefas domésticas do dia-a-dia a que uma certa visão do cuidado o reduziu ― deram-nos a possibilidade de reunir um acervo de poderes e conhecimentos ― práticos, analíticos, teóricos e metodológicos ― fundamentais, que podem ser colocados ao serviço da nossa insurgência e emancipação. Partindo desse acervo, escolho o conceito de artesania das epistemologias do Sul para pensar uma ética feminista do cuidado contra-a-corrente capitalista, colonial e patriarcal.
A artesania é quase sempre pensada como uma espécie de sobrevivência do arcaico, do derivativo, da impossibilidade e da micro-escala. Considero que existem duas formas dominantes de pensar o que pode ser uma artesã e o trabalho que produz dentro da lógica da artesania. A artesã é a pessoa que não consegue entrar no mercado de trabalho assalariado ou no nexo do trabalho industrial e/ou tecnológico, pelo que tem um défice de capacidade ou de oportunidade. Neste sentido a artesã é uma personagem falha no que respeita à racionalidade capitalista. A artesã é também aquela que escolhe um estilo de vida diferente, mas subsidiário do que é principal. Isso significa que a artesania que pratica é um desvio ou uma inconformidade relativamente à norma, tanto em termos de processos como de resultados. Desde que não sejam insurgentes, essas práticas de artesania são toleradas e podem ser consideradas uma válvula de escape social para pessoas ou grupos que não têm aptidão ou desejo de se adaptar à modernidade hegemónica. Em qualquer dos casos, a artesania é vista e compreendida como uma deficiência e/ou uma privação. Pretendo contrariar e discutir estes entendimentos do senso comum sobre a artesania para avançar nesta reflexão.
Defendo que a artesania é a acção criativa e imaginativa sobre o mundo. Trata-se de um conjunto de práticas não-segmentadas que buscam resolver problemas ou reinventar contextos e lugares onde a vida acontece e tem lugar. A artesania é um modo complexo de aprender e ensinar, onde a repetição e a inovação são partes integrantes do processo e não uma dicotomia. O conceito de repetição, tão presente nos trabalhos do cuidado que se repetem vezes sem fim, tem virtualidades importantes pois é com a repetição que se consegue afinar e criar precisão nos gestos e nas tecnologias que são inventadas e usadas. Neste sentido, a repetição não serve para eliminar as singularidades que cada processo de criação exige. Trata-se de uma outra economia do rigor que é obtida pela cuidadosa e permanente consideração da contingência dos materiais, na perseverança do impulso criativo de quem pratica, tendo em conta os contextos, bem como os recursos de tempo e espaço disponíveis. Por outro lado, a inovação não é o outro lado da repetição: é o mais além, o imprescritível que a imaginação garante. É uma forma de sentir-pensar-fazer que realiza a cada momento novas teias de sentidos, usos, formas, horizontes, conhecimentos e tecnologias.
O trabalho e o pensamento artesanais estão intimamente ligados e um não se compreende nem existe sem o outro. Sabemos que a acumulação capitalista, a exploração colonial e o poder patriarcal implicam a separação entre o trabalho e a vida e entre trabalho produtivo e reprodutivo/improdutivo. Contra essa corrente que flui pela sociedade, ao mesmo tempo que nos prende ao mito das nossas obrigações naturais enquanto fêmeas humanas, o trabalho-pensamento artesanal constitui-se de continuidades, articulações e co-responsabilidades entre actividades e entre as pessoas que as desenvolvem. A fragmentação (da lógica industrial) e a razão binária (da lógica digital) deixam de fazer sentido porque a complexidade prevalece desde o acto de pensar, conceber, criar e devolver à comunidade o que é produzido a partir do esforço e do envolvimento que todos estes processos geram. Por outro lado, tal trabalho-pensamento é ainda mais complexo e mais sofisticado pois a artesania implica uma organicidade que vai mais além do saber e do fazer. Trata-se, pois, de um sentir-saber-fazer que não se pensa a partir de princípios abstractos e generalizantes ou desencarnados dos corpos-territórios que o materializam. Sentir-saber-fazer, cuja ordem é criativa, dinâmica e contextual, são agregados de habilidades e competências racionais, emocionais e pragmáticas que produzem significados da mesma forma que são produzidos por significados diversos.
A artesania impõe, por isso, uma relação diferente com o tempo em que o que vem de longe, e que a razão moderna classifica de tradição, é a segurança do que já se sabe e já se tem e que permite avançar com alguma confiança para o que ainda está por vir e por fazer. Pode dizer-se que o tempo para o sentir-fazer-saber artesanal é um permanente enlace entre passado, presente e futuro, que se enriquece com novas apropriações e interpretações. Daí que a artesania envolva, não um tempo lento, mas um tempo com tempo no qual várias gerações de protagonistas, saberes e tecnologias são integrados num processo de co-criação e onde a assunção das raízes não limita as suas escolhas. Ao contrário dos imperativos criados pela divisão sexual do trabalho capitalista, colonial e patriarcal que separa os tempos, os lugares e as escalas, criando redutos de dominação e onde é difícil resistir ao e pelo isolamento, este conceito de artesania enfrenta essa lógica. Nesse sentido, propõe-se a unir e elaborar continuidades, que não são permanências, mas sim transformações contextualizadas, e onde as reciprocidades não são nem mecânicas nem simétricas, mas atendem às lógicas do bem comum.
Esta racionalidade artesanal que aqui enuncio é uma forma daquilo que Silvia Cusicanquí (2018) designa de entidades ch'ixis: entidades que não são pretas nem brancas, mas as duas ao mesmo tempo. Nestas entidades ch’ixis, o múltiplo constitutivo de cada uma/um não é inerte ou estático, senão um conjunto de relações orientadas para produzir luz, calor, afectos, laços, encontros. Nesse sentido, as micro-políticas do quotidiano, onde o pensamento artesanal de sentir-saber-fazer tem lugar e é valorizado, são redes e práticas construídas através de diversas comunalidades onde tanto as afinidades como as conflitualidades inspiram outras epistemes feministas. Por isso, além de ser uma entidade ch’ixi, o pensamento artesanal convida-nos a repensar o político para além do dilema, às vezes angustiante, entre o micro e o macro, precisamente porque se realiza através de relações de tensão, mas não antagónicas.
São duas as consequências principais que retiro desta perspectiva feminista do saber-sentir-fazer artesanal para uma visão feminista dos cuidados. A primeira é que permite narrativas autorais de quem sempre foi visto e considerado inferior, residual e subalterno, como ocorre com a maioria das mulheres do mundo. Tematizar de modo próprio os corpos, os mundos onde se vive e os conhecimentos que se têm, através de múltiplas linguagens, é uma questão de autoria e de autoridade; é o poder de definir o poder como energia, vitalidade e vigor. A razão artesã abre esse vasto campo de pronunciamento, de enunciação, de comunicação através da sua economia de abundância. Por outras palavras, devolve às pessoas a abundância inesgotável e diversa do saber-sentir-fazer no e do mundo. A autoria e autoridade deixam de ser uma eterna disputa, a partir de um lugar de subalternidade para aceder a um qualquer lugar de elite, para serem um campo de realizações recíprocas. Por outro lado, permite apropriar práticas de diálogo e de identidades que se estimam a si mesmas, valorizam as suas ideias e argumentos e exercem uma soberania própria sobre o âmbito, os conteúdos e o carácter performativo das suas discussões e decisões. Essa soberania das subjectividades dá-se através do pressuposto da radical dignidade de cada e todas as pessoas envolvidas e dos múltiplos que as constituem, o que significa que a autoridade é partilhada e que o individual não se deve subsumir no colectivo, nem o colectivo deve subverter a identidade em uma abstracção.
A segunda consequência tem a ver com a capacidade de pensar as práticas artesanais, e assim os cuidados, como economias de troca que se organizam a partir de sectores sociais oprimidos que o mais das vezes são populares; que almejam a transformação social através da sua conscientização sobre os sistemas materiais e simbólicos que as oprimem; que buscam a auto-determinação dos corpos e dos territórios; que atendem ao primado do bem comum; e que utilizam pedagogias a que chamo de pele-com-pele ou a disciplina das ternas reciprocidades (Cunha e Reis, 2007; Cunha, 2008).
Não se trata de romantizar as dificuldades ― pelo contrário. A artesania torna-as dolorosa e perpetuamente presentes para aprendermos a constituir resistências e a vislumbrar alternativas, por mais distantes e difíceis que nos pareçam. Não pretendo fazer a apologia da pobreza ou, melhor dizendo, do empobrecimento a que a maioria das mulheres estão sujeitas, mas sim reconhecer as forças emancipatórias que acompanham todas as suas dores e infortúnios, mas que têm sido negligenciadas. Pensar numa economia dos cuidados, nestes termos, implica reconhecer os movimentos subterrâneos que as micro-políticas do quotidiano mantêm activos e que são aquilo que permite resistir, de forma eficaz e prolongada, ao poderoso braço destruidor da razão capitalista, colonial e patriarcal dos nossos tempos.
É com base nestas reflexões sobre o saber-sentir-fazer artesanal e tudo o que aí está implicado que situo a minha análise sobre os trabalhos do cuidado. Os trabalhos das mulheres, realizados permanente e incansavelmente para produzir incessantemente a vida de muitas formas, no espaço doméstico, da comunidade e das instituições, escapam radicalmente às lógicas mercantilistas da acumulação do lucro e dos benefícios individuais. Tal trabalho trata-se do próprio cuidado de si, das outras pessoas e demais criaturas, da Terra e da vida. Uma vez colocada a vida no centro, entende-se melhor porque cuidar é difícil, esgotante, interminável, mas absolutamente necessário. No exercício dos cuidados, que é responsabilidade de todas e de todos, sem excepção, está ainda inscrita a nossa capacidade de ir além dos nossos próprios limites. Essa competência, num mundo em que a lógica do ready to consume prevalece, é não só insurgente como revolucionária.
Termino aplicando a este ensaio a razão do desejo: é indispensável mudar tudo para que nada fique como dantes e colocar no centro a vida em todas as suas formas. Isso significa transformar radicalmente as nossas sociedades. Significa recusar ideias estreitas e tecnocráticas sobre os cuidados, tanto como denunciar os privilégios e a exploração que tem obrigado as mulheres a serem as (quase) únicas cuidadoras e a mostrarem-se, reverencialmente, gratas por isso. É afirmar que aquilo a que a biopolítica dominante chama de amor é, na verdade, trabalho não-pago (Federici, 2018). O cuidado trata-se, afinal, do trabalho mais produtivo de todos. É necessário imaginar o mundo de uma maneira totalmente nova e criar um contrato social onde o cuidado, nas suas diversas vertentes, é a forma mais sublime de manter e alimentar uma vida que valha a pena ser vivida.
Entre a minha casa e a casa das minhas mães são 973 passos.
Eu vivo num apartamento com duas varandas: uma orientada a nascente e a outra a poente. Em redor tenho árvores que são pinheiros e sobreiros na sua maioria. Há silvas e outros arbustos de que não sei o nome. Muitas flores silvestres. Não as sei nomear, mas são todas lindas.
Nas minhas varandas tenho muitos vasos com os vivos ― assim chamam as pessoas lá da Serra da Estrela às vidas que cuidam sem fazer distinção entre espécies. Cuidam e por isso não saem de casa sem dar de comer ao vivo ou sem regar o vivo. Tenho dois pinheiros, um loureiro, uma figueira ― cujas sementes vieram com a nortada que todos os dias chega e habita a varanda a poente ― uma nespereira, um limoeiro e ainda plantei uma ginkgo biloba. Já tive uma oliveira, mas para cuidar dela mudei-a para o quintal da mãe Armanda onde ela tem terra com fartura. Este Outono farei o mesmo com a ginkgo biloba que enterrarei num quintal de um amigo. Eu não posso nem quero sair de casa sem cuidar do meu vivo ou então cuidar das minhas redes que cuidam do meu vivo. E assim vou secando as folhas da minha erva-príncipe e do meu limonete e preparo infusões para quem, da minha rede que cuida do meu vivo, possa ter em casa nos saquinhos de capulana que costuro quando a minha cabeça não suporta mais os computadores ou os livros. Sigo então pelos caminhos das flores lindas dos meus passos, os tais 973 para lá mais os 973 para cá. Não me esqueço da rainha da noite que quando floresce ― só de noite e só uma noite ― lança um perfume inigualável na varanda. E é aí que convoco os meus espíritos e as minhas pessoas para nos cuidarmos com esses aromas, sem cheques nem cartões de débito. São cuidados, que vão e vêm todos os dias, mostrando tanto os caminhos difíceis como os passos rodeados pelas flores.
[1] Tendo consciência dos enormes debates sobre o assunto, assim como das imprecisões que esta escolha pode gerar, deste ponto em diante neste ensaio utilizarei o conceito «mulher» para designar não apenas as fêmeas humanas, mas também todos os seres que por sua escolha e decisão se representam como femininos.
* Na escrita deste ensaio utilizo a Norma Ortográfica de Moçambique.
Referências
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