Le Fumoir é um café de esquina do lado oposto a uma das entradas laterais do Louvre. Nas manhãs frias de Dezembro, nos dias de semana, há só alguns turistas, normalmente nunca mais de cinco ou seis, que ali param para um café rápido antes de seguirem para a fila de entrada no museu; as suas horas hão-de encher-se de tesouros que ninguém poderia enumerar na sua totalidade. Mas do que ela se lembrava melhor acerca do Louvre era do que tinha visto em algumas visitas muito breves, de uma hora ou duas no máximo, e quase nada das visitas massivas de várias horas, isso e uma impressão de ter cultivado uma proximidade quase intolerável com uma certa cacofonia do belo, possível apenas exactamente em lugares como o Louvre, onde Ramsés II, a Victória de Samotrácia e a Mona Lisa co-existem no mesmo espaço que se enche constantemente de ondas e ondas de gente. Ondas e ondas de gente marulham todos os dias por estas salas e os instantes de silêncio e revelação exigem uma grande capacidade de abstracção que ela não possuía, porque tudo a distraía constantemente. E exigem ainda, para lá disso, uma certa solidão. Não a solidão total, mas quase.

Mas houve um dia em que voltou ao café ao entardecer, e ao entardecer o que acontece é outra coisa. O tráfego pontua as ruas de luzes amarelas, vermelhas e azuis e ela era capaz de sentir o desconforto dos poucos ciclistas que pedalavam no frio. Depois de ter pedido um copo de vinho, lembrou-se, sem motivo, de uma loja de vinhos algumas ruas mais abaixo, sem conseguir precisar ao certo onde. A memória errou por rótulos deixados em garrafas de regiões menos conhecidas, lugares de França bem distantes de Paris, até concluir que não se recordava da última vez que se tinha embriagado.

Tinha-se sentado numa das mesas do canto, ao fundo do salão principal, longe do balcão, perto das escadas que desciam para a cave. Enquanto esperava para pedir um café, a sua atenção recaiu no casal sentado do seu lado esquerdo, perto da janela. Bem vestidos de um modo desarmonioso, excessivamente bem vestidos, com roupa e acessórios demasiado caros, não de todo os dos millenials hipster, embora na mesma geração, mas não aquelas pessoas que trabalham em sítios como escritórios editoriais ou empresas de publicidade, sobretudo não ele, mas também não aquela aura de tecnocrata educado na École Normale Superieur, advogado ou funcionário público ou economista ou académico. Algo menos civilizado e menos acomodado, algo um pouco mais violento. Ela vestia um casaco branco, que nunca tirou apesar do salão excessivamente aquecido. Por baixo do casaco vestia um vestido preto que se colava ao corpo, e um rosto excessivamente maquilhado. Ele envergava um fato azul escuro e uma camisa azul clara, um contraste desinteressante, fácil de obter, com dois ou três botões de camisa a mais abertos, e uns botões de punho excessivamente barrocos, que a ela por qualquer motivo lhe fizeram pensar na opulência dos Medici, mas não em Cosimo ou Lorenzo, não a energia da força fundadora ou a promessa do apogeu, antes algo como a falsa opulência do crepúsculo. A conversa era banal, decepcionante. Entrelaçavam os dedos enquanto falavam do quão cara a conta do restaurante onde iam jantar naquela noite ia ser. A combinação de metafísica, tédio e drama que seria de prever, foi o que ela pensou.

Estudou a mulher durante um longo tempo, bem mais de dez minutos, trinta e poucos, completamente absorta na nulidade da conversa, sem se deter por um instante, nem entendendo sequer que era observada há tanto tempo. A jovem mulher estava tão confortável que bastava olhar para ela de relance para entender sem qualquer dúvida que ela sabia que o mundo à volta é um cenário anestesiado ali posto para que as suas acções se desenrolem. Deteve-se então no rosto dele, ao fim de uns minutos, quando tornou a olhar para eles, ele devolveu-lhe o olhar e ela desviou os olhos. Ao fim de alguns instantes foi ela que se sentiu observada e levantou os olhos e lá estava ele de novo, com dois dedos pousados sobre os lábios, o olhar descaindo do rosto para as pernas, claro, tinha de ser, e claro, tinha também de ser, ela baixou instintivamente a saia para o joelho, pôs de novo os óculos, que entretanto tinha tirado, e devolveu-lhe um olhar abertamente irritado. Ele sorriu ligeiramente, um sorriso quase satisfeito, de quem tinha acabado de confirmar algo, e levou a mão ao queixo impecavelmente barbeado. Ela olhou em frente, não para ele mas através dele, e por qualquer motivo apanhou-se a pensar que não podia ter sido muito longe dali que, poucos meses depois do final de um longo Inverno, Paul Celan se tinha atirado ao Sena, que era Kundera, se não lhe falhava a memória, o autor de um conto bizarro em que uma mulher grávida se atirava ao Sena e matava por acidente o adolescente que, com o heroísmo estúpido dos inocentes e bem-intencionados, a tentara salvar, sobrevivendo antes ela por um golpe do mais puro azar.

Lembrou-se, enquanto o outro continuava a olhar para ela e a mulher em frente dele não parava de falar, que não havia uma data certa para a morte de Celan, o que provavelmente queria dizer que não tinham recuperado o corpo logo. Apanhou-se a pensar como teriam sido aquelas primeiras horas, quando toda a gente achava que estava tudo normal, que estava tudo bem. Ia puxar da mochila o caderno onde costumava tirar notas, mas o Medici na luz crepuscular do café tornou a distraí-la, o olhar agarrava-se a ela, cercava-a de um modo aborrecido e previsível, o olhar dela atentou-lhe no corte de cabelo recente, nas unhas impecavelmente arranjadas. Era um daqueles homens atléticos mas não demasiado atléticos, corridas diárias mas não ginásio, e não todos os dias, uma tez quase cor de laranja, difícil de dizer de onde era ao certo.

Distraiu-se de novo e olhou em redor da sala do café. Duas raparigas discutiam qualquer coisa de trabalho duas mesas à frente, uma mulher na meia idade bebia um cocktail complicado e tinha um ar cansado. Não muito diferente de mim. Pensou que não era, no entanto, provável que o leitor de alemão Paul Antschel tivesse sido imediatamente reconhecido como o poeta Paul Celan quando o resgataram do Sena, não reconhecido pelo rosto, isto é. Devia ter os documentos de identificação com ele. Um oficial de polícia ou o médico legista deve ter tacteado no bolso da camisa ou das calças ou então não, nada disso. Era Abril, devia fazer frio, os documentos que identificariam o leitor de alemão cuidadosamente fechados no bolso interior do casaco, desses bolsos interiores de casaco de homem que se fecham com fecho, óbvios do lado esquerdo, ao nível do coração, que são convenientes também para as mulheres guardarem qualquer coisa sua, quando homens e mulheres saem juntos, sobretudo se eram desleixadas como ela e tudo o que tinham por mala era uma velha mochila azul a desfazer-se, inconveniente para encontros como jantares a dois ou copos de vinho ao entardecer em cafés literários, excessivamente frequentados por gente de caderno em punho ou computador aberto sobre a mesa, tão mais fácil a solidão dela aqui e agora, ela pensou se haveria alguma coisa de Gisele que Paul tivesse carregado com ele naquele dia, foi quando tornou a atentar de novo no Medici, agora distraído a ouvir a mulher que discorria sobre ourivesarias, a combinação da cor de certas pedras preciosas e certos batons (finalmente algo um pouco mais colorido, menos abertamente desinteressante, Vénus de Samotrácia afinal, ainda que banalizada pela proximidade da Mona Lisa), e ela imaginou que notava nele uma ponta de melancolia a que a mulher, enterrada no casaco branco e falando sem parar, era imune, algo como uma réstia de impaciência, um acidente de luz na obscuridade de qualquer que fosse a rotina opressiva daqueles dois. Aquilo para que Paul tinha cegado naquelas últimas horas. A certeza de a promessa do inesperado ter deixado de ser possível.

Os olhos dele tornaram a procurá-la e ela procurou a caneta que trazia sempre com ela no bolso da camisa, ao nível do seio, enquanto um olhar indiscreto lhe seguia a mão agora com um interesse súbito, ela pensou antes um pouco mais alto, o que é ao certo o resgaste de um corpo, a corrente de um rio da Europa no fim de um Inverno. Escurecia depressa e tinha começado a chover violentamente. O empregado veio, deixou a conta sobre a mesa. Ela pagou a conta, deixou algumas moedas no pequeno prato de metal, pôs a carteira na camisa, o telefone no bolso da saia. Também ela podia ser identificada. Se nada se perdesse. Se nada se perdesse no caminho. Levantou-se e desceu a escada em direcção à casa de banho. Pensou que tinha deixado de ser óbvia para ela própria e que isso tornava tudo um pouco mais perigoso. Pensou que noutro tempo qualquer, um pouco mais de tempo, um pouco mais de concentração, aquele era o erro que não ia cometer. Paul devia afinal ter encerrado todas as linhas vitais ou talvez que tivesse sido num assomo de estoicismo, como um escritor imperial romano, um Séneca ou um Tácito. Com a precisão impessoal de um acerto de contas num livro de cálculo. Mas algo lhe dizia que não, Celan não era romano nenhum (na casa vive um homem, era o que ele tinha escrito algures, que brinca com serpentes e escreve, escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete, os teus cabelos de cinza, Sulamith). Ela sentou-se no sofá na cave imensa, um pouco afastado das portas dos lavabos, homens e mulheres cuidadosamente separados entravam e saíam, e olhou para o seu próprio rosto, à distância na amplitude da cave um rosto pequeno no espelho imenso que estava ao fundo, virado para a escada. Cuidado agora, foi o que ela pensou. Paul sem dúvida devia conhecer aquilo, aquilo que ela via agora, certos momentos, que nascem mais ou menos de instantes onde nada está a acontecer e damos connosco em lado nenhum, em que se nos olharmos com toda a atenção ao espelho, deixamos de nos ver para nos vermos como um outro ou como um rosto anónimo de alguém que não se conhece. Não durou muito. Mas ainda assim o início estava lá, fuga da morte era o que ele lhe tinha chamado, um homem vivo na casa, ao alto, bem no início do verso, como um aviso. Um homem que sabia o que precisava de ser dito, que é o que estar demasiado vivo deve querer dizer. Pelo espelho ela viu-o descer a escada. O sorriso satisfeito apenas uma aparência sem profundidade, um pouco complacente, algo que mascara uma vulnerabilidade, uma falha. Nada daquilo era sequer inesperado, exceptuando aquele estranho desinteressante ser um pouco mais parecido com ela do que aquilo que ela tinha imaginado. Ele sentou-se ao lado dela. Sem lhe dizer nada pousou-lhe a mão sobre o joelho sem a urgência que ela tinha previsto, como aconteceria entre dois amantes que se conhecessem há muito tempo, que estivessem há muito tempo juntos. Muito lentamente mas sem calma, ela virou-se para ele, apoiou o cotovelo nas costas do sofá e a mão na testa, ele olhou para ela com uma antecipação quase divertida, sem qualquer traço do sorriso anterior. Ela pensou, e podia bem estar errada, que talvez não soubesse ainda tudo.

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