No espaço de aconselhamento online reservado no The Guardian a Eleanor Gordon-Smith, filósofa e especialista em ética, uma leitora escreveu este queixume profundo: «Há duas lobas dentro de mim. Uma é feminista. A outra quer ser magra e atraente. Estou tão farta de estar presa entre as duas» (Gordon-Smith 2021).

Este sentimento não é incomum a mulheres que aderem a padrões convencionais de beleza e sentem que tais padrões são profundamente problemáticos. Eu sou uma dessas mulheres (a selecção das minhas fotografias de perfil diz tudo). Agrada-me ter uma aparência que seja atraente para os outros. Sinto satisfação quando elogiam o risco bem delineado dos meus olhos e o batom que uso. Gosto de me arranjar e passo muito tempo a embelezar-me diante do espelho. Desperdiço o meu dinheiro, arduamente ganho, em coisas bonitas, caras e frequentemente inúteis. Naturalmente, o prazer que tenho com os meus hábitos de beleza e bem-estar faz-me sentir perplexa. Por que razão é que me exibo como um manequim, quando o objectivo do feminismo é derrubar a montra aperaltada da loja? Porque é que me ornamento e adoro todos os «gostos» desencadeados pela minha fotografia de perfil, quando devia antes ajudar a destruir a indústria patriarcal, que trata as mulheres como objectos? Sou menos feminista por ter prazer em coisas por muitos vistas como frívolas e superficiais e por perpetuar padrões que rebaixam a auto-confiança de mulheres como eu no mundo inteiro?

Por outras palavras: porque me submeto a esses padrões, e porque gosto de o fazer?

Ler We Are Not Born Submissive de Manon Garcia (2021b) ajudou-me a reflectir de maneira filosófica e pessoal sobre este tema. Recentemente traduzido do francês, este livro entusiasmante ― um tributo e um vivo alerta para relermos a grande Simone de Beauvoir ― desenvolve filosoficamente o tópico da submissão das mulheres. Tendo em atenção as observações de Beauvoir sobre a aparente cumplicidade das mulheres na sua própria opressão, Garcia explica que a nossa submissão ao regime patriarcal pode ser vista como racional e agradável para as mulheres. Neste contexto, submeter-se significa aquiescer, não resistir nem combater as regras, os padrões e os interesses patriarcais, que são antagónicos ou prejudiciais aos próprios interesses femininos.

Mas esta submissão não é passiva nem descomprometida; quando as mulheres aceitam as exigências e os desígnios insidiosos do patriarcado contemporâneo ― quando, por exemplo, dão por elas a desejar e a adoptar padrões de beleza e de tamanho corporal socialmente admitidos, ainda que à custa da sua saúde física ou correndo o risco de serem objectificadas pelos homens ―, elas mostram estar a agir e a participar num modo de vida que promove a sua opressão. Mas retratar as mulheres como moralmente censuráveis pela sua submissão, e entender esta aquiescência como uma escolha livre e activa, não faz justiça ao funcionamento das dinâmicas de género opressivas. Garcia sustenta que os hábitos de submissão femininos revelam a escassez de boas escolhas e oportunidades para o auto-desenvolvimento das mulheres nas sociedades patriarcais contemporâneas. Como destaca, com razão, Clare Chambers:

Podemos agir apenas no âmbito das opções que estão disponíveis e que são consideradas como apropriadas para nós. E queremos agir de forma a estarmos favoravelmente inseridas num contexto social. Ademais, é racional fazermos escolhas que são compatíveis com as opções que se nos apresentam e com as expectativas que têm para connosco, pois tais escolhas permitem-nos ter êxito dentro do nosso contexto. Por isso, dar destaque aos constrangimentos das nossas escolhas não implica que sejamos más a escolher. (Chambers 2013, 575)

Quando as mães dizem às filhas para tolerarem a infidelidade do marido, ou para desistirem das suas ambições em prol dos filhos, ou para terem cuidado com a imagem, elas aprovam pontos de vista que são prejudiciais aos interesses pessoais das filhas. Mas elas podem também acreditar sinceramente que estas são as melhores escolhas que estão ao dispor das filhas, uma vez que tais escolhas impedem outros danos e crueldades advindos de uma sociedade machista, que se compadece do destino das mulheres solteiras, sem filhos ou corpulentas. Desta perspectiva, a existência social das mulheres nas sociedades patriarcais contemporâneas está condicionada por opções limitadas e inferiores de busca da felicidade ou da auto-realização. As suas escolhas são, ainda hoje, determinadas pela superioridade dos interesses masculinos e restringidas pela posição subalterna que ocupam. Como afirma Garcia no seu ensaio sobre a submissão: «as mulheres não escolhem activamente a submissão, mas consentem naquela que lhes é prescrita pelas normas sociais, ainda que esta as possa prejudicar seriamente» (Garcia 2021a).

É interessante que Garcia também dê conta de que a anuência ao patriarcado não é apenas razoável para as mulheres: pode ser também, para elas, uma fonte de prazer e de poder. No livro pioneiro O Segundo Sexo, primeiramente publicado como Le Deuxième Sexe em 1949, Beauvoir argumenta que a mulher, «muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro» (Beauvoir 2009a, 22) e que, particularmente «[n]as classes superiores, as mulheres fazem-se ardentemente cúmplices dos seus senhores porque desejam aproveitar-se dos benefícios que eles lhes asseguram» (Beauvoir 2009b, 439). Mas de onde pode vir este prazer na submissão? Não vem da natureza essencial das mulheres, é certo. Segundo Garcia, Beauvoir defende que o patriarcado é responsável por impor um significado social nos corpos femininos, significado esse que é fundamentalmente baseado na objectificação (sexual). Definido de diversas formas como um objecto de desejo, amor, uso e propriedade masculina, o corpo social de uma mulher existe antes de ela realmente existir, representando e registando as normas e práticas que definem o que é uma mulher no mundo. Em suma, o caminho da infância para a idade adulta feminina é uma narrativa de mulheres que se relacionam com os seus corpos como objectos, um processo que representa «a transformação da mulher oprimida num outro que é irredutivelmente diferente de si mesma» (Garcia 2021b, 85).

As mulheres encontram-se, assim, alienadas de si próprias, pois ficam socialmente condicionadas a encararem-se como objectos sexuais, um mero reflexo daquilo que Laura Mulvey designou por olhar masculino (male gaze), em vez de (como os homens) saberem e compreenderem que são fundamentalmente sujeitos livres e iguais. Assim, as mulheres começam a desejar serem desejadas e a adoptar normas e práticas patriarcais antes de terem sequer a hipótese de sentirem os seus corpos como sendo inteiramente delas; como Beauvoir famosamente descreve, «[n]inguém nasce mulher: torna-se mulher» (Beauvoir 2009a, 13). Pior do que isto, a vida e a inserção nas dinâmicas de uma sociedade patriarcal perpetuam a existência alienada das mulheres, que são recompensadas quando se relacionam com os seus corpos como objectos e alvo de violência quando se recusam a fazê-lo. A inevitabilidade e o poder do olhar patriarcal podem explicar de que forma a submissão consegue manter-se como fonte irónica de gratificação e de auto-estima para as mulheres. Mas devemos também reconhecer que este olhar não é monolítico nem imutável; o patriarcado muda e adapta as suas normas e expectativas em relação às mulheres tendo em conta as suas multifárias intersecções com as realidades da raça, classe e história. Eu fiquei surpreendida e horrorizada quando descobri a minha própria ingenuidade neste aspecto. Tendo crescido nas Filipinas, onde a pele branca é valorizada, todos os dias esfregava a minha pele naturalmente morena para parecer uma mestiça chinesa; quando me mudei para a Austrália nos meus vinte anos, comecei, estranhamente, a pôr óleo na minha pele para lhe dar um bronzeado de tom dourado, a receita colonial para a evasão e o exotismo. Com efeito, os nossos desejos embebidos no patriarcado podem assumir diversas formas. Embora possam ser perniciosas, algumas delas podem ser também estranhas e inesperadamente cómicas (para mais sobre o Global Filipina Body, veja-se Velasco, 2020). 

A análise beauvoiriana da submissão feminina feita por Garcia ajuda a entender o sentimento de culpa que as feministas e as mulheres socialmente progressistas sentem por gostarem do prazer advindo da submissão, isto é, do gosto e da competição pela atenção masculina. Tal análise certamente explica o motivo pelo qual, mesmo quando sabemos que somos feministas saudáveis e confiantes, e que devemos amar o nosso corpo independentemente da sua forma e tamanho, ainda estremeçamos instintivamente quando descobrimos uma nova ruga a formar-se na testa ou quando nos apercebemos de que a nossa saia preferida de há cinco anos já não nos serve. Nesta sua análise, Garcia também racionaliza o modo como a submissão ao patriarcado pode servir como fonte de poder sobre os homens e os outros. Por exemplo, quanto mais bonita uma mulher é, mais valiosa se torna enquanto objecto sexual, adquirindo assim uma série de vantagens nas sociedades patriarcais. Mas, como muitas feministas defenderam exaustivamente, o preço que pagamos quando cedemos ao olhar masculino é muito elevado.

É a consciência deste grande custo que deve integrar as reflexões sobre a ambivalência e o atrito das experiências de submissão vividas por nós, mulheres. É uma conversa que precisamos de ter connosco mesmas e com outras mulheres que, sem dúvida, continuarão a viver em condição de alienação. O trabalho nunca está terminado.

 

 

Referências

Beauvoir, Simone de. 2009a. O Segundo Sexo, vol. I, trad. Sérgio Milliet. Lisboa: Quetzal.

Beauvoir, Simone de. 2009b. O Segundo Sexo, vol. II, trad. Sérgio Milliet. Lisboa: Quetzal.

Chambers, Clare. 2013. «Feminism». In The Oxford Handbook of Political Ideologies, ed. Michael Freeden, Lyman Tower Sargent, and Marc Stears. Oxford University Press.

Garcia, Manon. 2021a. «It’s Time to Talk about Women’s Submission». Blog of the American Philosophical Association (APA), Apr 28. https://blog.apaonline.org/2021/04/28/submission-is-womens-destiny-but-we-can-change-that/

Garcia, Manon. 2021b. We Are Not Born Submissive. New Jersey: Princeton University Press.

Gordon-Smith, Eleanor. 2021. «There are two wolves inside me. One is a feminist. The other wants to be thin and beautiful. Leading Questions.» The Guardian, May 26. https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2021/may/27/there-are-two-wolves-inside-me-one-is-a-feminist-the-other-wants-to-be-thin-and-beautiful

Velasco, Gina. 2020. Queering the Global Filipina Body: Contested Nationalisms in the Filipina/o Diaspora. University of Illinois Press.

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