Os Romances Tolos de Senhoras Romancistas são um género com muitas categorias, classificadas de acordo com a qualidade particular de tolice que nelas predomina ― a vaporosa, a enfadonha, a piedosa e a pedante. Mas é uma mistura de todas estas ― uma ordem compósita de imbecilidade feminina, que distinguiremos como a categoria cabeça-para-chapéus. A heroína é habitualmente uma herdeira, provavelmente uma nobre por direito, com talvez um baronete mal-intencionado, um duque amistoso e um irresistível filho mais novo de um marquês como apaixonados em primeiro plano, um clérigo e um poeta a suspirar por ela em plano intermédio, e uma multidão de adoradores indistintos entrevistos em pano de fundo. Os seus olhos e a sua perspicácia são ambos estonteantes; o seu nariz e a sua moralidade são igualmente livres de qualquer tendência para a irregularidade; tem um contralto soberbo e um intelecto soberbo; é impecavelmente bem-posta e impecavelmente religiosa; dança como uma sílfide e lê a Bíblia nas línguas originais. Ou pode ser que a heroína não seja uma herdeira ― que o título e a riqueza sejam os únicos aspectos em que é deficitária; mas é infalivelmente admitida na alta sociedade, goza do triunfo de recusar muitos pretendentes e garantir o melhor, e usa estas ou aquelas jóias de família como uma espécie de coroa de probidade no final. Homens dissolutos tanto mordem a língua numa desorientação impotente com as suas respostas prontas, como se deixam comover até à penitência com as suas admoestações, que, nas ocasiões oportunas, atingem um alto grau de retórica; na verdade, há nela uma tendência generalizada para fazer discursos e declamar algo demoradamente quando se retira para o quarto. Nas conversas registadas é incrivelmente eloquente, e, nas não registadas, incrivelmente espirituosa. É tida como dona de um nível de perspicácia que penetra mais e mais além nas teorias superficiais dos filósofos, e os seus instintos superiores são uma espécie de mostrador pelo qual os homens têm apenas de acertar os seus relógios e tudo correrá bem. Os homens representam um papel deveras subordinado ao seu lado. Somos ocasionalmente reconfortadas pela insinuação de que eles têm assuntos a tratar, o que não nos deixa esquecer que o expediente azafamado do mundo lá vai continuando, embora evidentemente o propósito final da sua existência seja acompanhar a heroína no seu percurso «brilhante» pela vida. Vêem-na num baile e ficam deslumbrados; numa exposição de flores, e ficam fascinados; numa expedição a cavalo, e ficam enfeitiçados pela sua nobre destreza na equitação; na igreja, e ficam extasiados pela doce solenidade do seu porte. É a mulher ideal nos sentimentos, nos saberes e nos saracoteios. Pese embora tudo isto, é frequente começar logo por casar com a pessoa errada, e sofre terrivelmente com as tramas e intrigas do baronete mal-intencionado; mas até a morte tem um carinho especial por tal modelo de excelência, e remedeia todos os seus males mesmo no momento certo. É certo o baronete mal-intencionado morrer num duelo, e que o enfadonho marido morra no leito pedindo à mulher, em jeito de favor pessoal, que case com o homem que realmente ama, tendo já enviado uma missiva ao apaixonado a informá-lo do conveniente arranjo. Antes de os assuntos chegarem a este desfecho as nossas emoções são postas à prova por vermos a nobre, adorável e talentosa heroína passar por muitos mauvais moments [sic], mas temos a satisfação de saber que os seus desgostos são chorados para lenços bordados, que a sua forma desfalecida se reclina no melhor dos estofos, e que de qualquer vicissitude que tenha de sofrer, ser arrancada da sua carruagem ou raparem-lhe o cabelo à conta de uma febre, sairá com a compleição mais resplandecente e os caracóis mais abundantes que alguma vez teve.

Podemos fazer notar, a propósito, que fomos poupadas a graves escrúpulos ao descobrir que os romances tolos de senhoras romancistas raramente nos fazem admitir noutra que não uma deveras nobre e alta sociedade. Supúnhamos que mulheres desfavorecidas davam em romancistas, assim como davam em governantas, por não terem outros meios de ganhar a vida «próprios de uma senhora». Nesta suposição, uma sintaxe vacilante ou um incidente improvável carregavam um certo pathos, à semelhança das almofadas de alfinetes de dimensões extravagantes e das atabalhoadas toucas de dormir vendidas por um cego. O artigo era uma chatice, mas alegrava-nos pensar que o dinheiro serviria para ajudar os necessitados, e imaginávamos mulheres solitárias a lutar por meios de subsistência, ou esposas e filhas dedicadas à produção de «cópia» por puro heroísmo, talvez para pagar as dívidas do marido ou comprar mimos para um pai doente. Sob o efeito destas impressões, não nos atrevíamos a criticar o romance de uma senhora: o inglês dela pode ser imperfeito, mas, dizíamos a nós próprias, os seus motivos são irrepreensíveis; a sua imaginação pode ser de pobre engenho, mas a sua paciência é incansável. Uma escrita oca era desculpada por um estômago vazio, e a tolice tornava-se venerável à conta das lágrimas. Mas não! Esta nossa teoria, como muitas outras teorias aprazíveis, foi obrigada a ceder à observação. Estamos agora convencidas de que os romances tolos das mulheres são escritos em circunstâncias completamente diferentes. É óbvio que as escritoras formosas nunca dirigiram a palavra a um vendedor excepto a partir da janela de uma carruagem; a única noção que têm das classes trabalhadoras é a de «dependentes»; acham que quinhentos ao ano é um rendimento miserável; Belgravia[1] e os «átrios baroniais» compõem as suas primeiras verdades; e não lhes passa pela cabeça interessarem-se por um homem que não seja pelo menos um grande proprietário rural, se não mesmo um primeiro-ministro. É evidente que elas escrevem em elegantes boudoirs, com tinta cor de violeta e uma caneta de aparo de rubi; que são absolutamente indiferentes aos juízos dos editores e inexperientes em todas as formas de carência, com excepção da falta de cérebro. É verdade que somos constantemente surpreendidas pela falta de verosimilhança nas representações que fazem da alta sociedade em que parecem viver; por outro lado, não deixam entrever nenhuma relação de proximidade com qualquer outra forma de vida. Se os seus lordes e as suas ladies são improváveis, os seus homens literários, os comerciantes e os camponeses são impossíveis; e o seu intelecto parece dotado de uma imparcialidade peculiar que lhes permite reproduzir quer o que viram e ouviram, como o que não viram e ouviram, com a mesma imprecisão. Há muito poucas mulheres, presumimos, que não tenham alguma espécie de familiaridade com crianças com menos de cinco anos; contudo, em Compensação, um romance recente da categoria cabeça-para-chapéus, que se auto-intitula uma «história da vida real», há uma criança de quatro anos e meio que fala da seguinte maneira ossianesca:

⸻ Oh, estou tão feliz, querida avozinha. Acabei de ver, acabei de ver uma pessoa tão maravilhosa. Ele é como tudo o que é belo, como o aroma das doces flores e a vista de Ben Lomond. Ou, não, melhor que isso, ele é como aquilo em que penso e aquilo que vejo quando estou muito, muito feliz. E na verdade ele é como a mamã, também, quando ela canta; e a fronte dele é como aquele mar distante ⸻ continuou ela, apontando para o Mediterrâneo azul; ⸻ parece sem fim, sem fim. Ou como as constelações para que mais gosto de olhar numa bela noite quente… Não pareças tão… A tua fronte é como o lago Lomond, quando o vento sopra e o sol se esconde. Prefiro a luz do sol quando o lago está calmo… Por isso, agora, gosto mais dele do que nunca… fica ainda mais bonito com a nuvem escura que paira por cima dele, quando o sol ilumina subitamente todas as cores das florestas e das rochas púrpuras brilhantes, e fica tudo reflectido na água lá em baixo.

Não é uma surpresa saber que a mãe desta criança fenómeno, que revela sintomas tão assustadoramente semelhantes aos de uma adolescência reprimida à conta de gin, é ela mesma uma fénix. É-nos garantido, repetidamente, que era dona de uma mente deveras original, que era um génio, «consciente da sua originalidade», e que tivera a sorte de ter um apaixonado também ele um génio, e um homem com uma daquelas «cabeças muito originais».

Este apaixonado, lemos, embora «maravilhosamente semelhante» a ela em «poderes e capacidades», era-lhe «infinitamente superior em fé e desenvolvimento», e ela via nele o «“Ágape” ― tão raro de encontrar ― cujo significado tinha lido no seu Testamento Grego e ficado a admirar; tendo, dada a sua grande facilidade na aprendizagem de línguas, lido as Escrituras nas línguas originais.» É claro! Grego e hebraico são apenas uma brincadeira para a heroína; o sânscrito não mais do que o básico a b c; e fala com uma correcção exímia em todas as línguas com excepção do inglês. Ela é uma poliglota aos pinotes, um Creuzer[2] em crinolina. Pobres homens! Tão poucos de vós chegam sequer a saber hebraico; acham que é de se gabarem se, como Bolingbroke,[3] só «compreendem esse tipo de aprendizagem e o que sobre ela é escrito»; e talvez sejam admiradores de mulheres que conseguem menosprezar-vos sucessivamente em todas as línguas semíticas. Mas, então, como nos é quase sempre invariavelmente dito que uma heroína tem uma «cabeça formosamente pequena», e como o seu intelecto terá sido provavelmente desde cedo robustecido com uma atenção ao vestuário e à conduta, podemos concluir que ela é capaz de captar as línguas orientais, para já não falar dos seus dialectos, com a mesma destreza aérea com que a borboleta sorve o néctar. Além disso, não é de todo difícil imaginar a profundidade da erudição da heroína, quando a da autora é por demais evidente.            

Em Laura Gay, outro romance da mesma escola, a heroína mostra-se menos à vontade com o grego e o hebraico, mas compensa o defeito com uma familiaridade muito bem-disposta com os clássicos latinos ― com o «velho amigo Virgílio», «o gracioso Horácio, o bondoso Cícero, e o agradável Lívio»; na verdade, é tão natural para ela citar em latim que o faz num piquenique, na companhia mista de senhoras e cavalheiros, não fazendo, é-nos dito, «nenhuma ideia de que o sexo mais nobre seria capaz de invejar tal feito. E se, na verdade», continua a biógrafa de Laura Gay, «a porção mais nobre e sábia desse sexo estivesse em maioria, tal sentimento desapareceria; mas enquanto as Senhoritas Wyndhams e os Srs. Redfords abundarem, há que sacrificar muito à sua presença». Sacrifícios, presumimos, tais como abdicar de citações latinas, de interesse e aplicabilidade extremamente moderados, das quais a nobre e sábia minoria do outro sexo estaria mais do que predisposta a abdicar tanto quanto a ignóbil e tola maioria. É tão raro em homens de fina estirpe quanto em mulheres de fina estirpe o hábito de citar latim em grupos mistos; são capazes de domar a sua familiaridade com o «bondoso Cícero» sem permitir que ela extravase para uma conversa banal, e até referências ao «agradável Lívio» não serão absolutamente irrefreáveis. Mas o latim ciceroniano é a forma mais comedida do poder de conversação da Senhorita Gay. Encontrando-se no Palatino com os companheiros de excursão, ela lança-se no seguinte género de observação loquaz: «A verdade só é pura objectivamente, pois até nos credos onde predomina, sendo subjectiva, e dividida em partes, cada uma destas recebe necessariamente um laivo de idiossincrasia, isto é, uma mancha de superstição mais ou menos forte; em credos como o da Igreja Católica, a ignorância, o interesse, o preconceito das antigas idolatrias e a força da autoridade foram gradualmente acumulados sobre a verdade pura, transformando-a, por fim, numa massa de superstição para a maioria dos seus fiéis; e quão poucos há, desgraçadamente!, cujo zelo, coragem e energia intelectual bastem à análise desta acumulação, e à descoberta da pérola de grande valor que jaz escondida debaixo deste monte de lixo.» Damos frequentemente com mulheres muito mais originais e profundas nas suas observações do que Laura Gay, mas raramente com uma tão descabidamente verborreica. Um nobre clérigo, meio enamorado dela, alarma-se com as ousadas observações acima citadas, e começa a suspeitar que ela possa ser dada ao livre-pensamento. Mas engana-se; quando num momento de tristeza ele pede delicadamente autorização para lhe «trazer à memória um depósito de fortaleza e consolo na aflição, o qual, até sentirmos a dura pressão das provações da vida, estamos mais inclinados a esquecer», vemos que ela na verdade «recorre a esse depósito sagrado», tanto quanto ao pote de chá. Há um certo gosto a ortodoxia misturado com um desfile de fortunas e belas carruagens em Laura Gay, mas é uma ortodoxia mitigada pelo estudo do «bondoso Cícero», e por uma «disposição intelectual para a análise».

Compensação está muito mais saturado de doutrina, porém apresenta mundanidade snobeira e incidentes absurdos em dose tripla para fazer o gosto à frivolidade pia. Linda, a heroína, é ainda mais especulativa e espiritual do que Laura Gay, mas foi «apresentada», e tem mais, e mais sumptuosos, apaixonados; são dadas a conhecer mulheres deveras maléficas e fascinantes ― até mesmo uma lionne francesa; e não se olha a meios para arquitectar uma narrativa tão aliciante como as que encontramos nos romances mais imorais. Na verdade, é um pot pourri encantador feito dos Almack,[4] da Segunda Visão escocesa,[5] dos pequenos-almoços do Sr. Rogers, de salteadores italianos, de conversões no leito de morte, de autoras de excelência, de amantes italianas, e de tentativas de envenenar senhoras idosas, tudo servido com uma guarnição de conversa acerca de «fé e desenvolvimento» e «cabeças deveras originais». Até a Senhorita Susan Barton, a autora de excelência, cuja caneta se move «num gesto lesto e decidido quando está a compor», recusa as mais esplêndidas ofertas de casamento; e embora tenha idade para ser a mãe de Linda (uma vez que nos é dito que rejeitou o seu pai), vê-se pretendida por um jovem conde, o preterido apaixonado da heroína. Como não podia deixar de ser, o génio e a moralidade devem ser sustentados por propostas elegíveis, caso contrário degenerariam num tema deveras aborrecido; e a devoção, a par de outras coisas, para ser comme il faut, deve passar-se em «sociedade» e ter entrada nos melhores círculos.

Título e Beleza é uma variedade mais vaporosa e menos religiosa da espécie cabeça-para-chapéus. A heroína, é-nos dito, «se tinha herdado o orgulho de linhagem do pai e a beleza de pessoa da mãe, tinha de seu uma nota de entusiasmo que talvez seja próprio da idade mesmo nos de condição humilde, mas cujo refinamento que origina o elevado espírito do romance selvagem se dá apenas nos de antiga linhagem, que o sentem como a sua melhor herança». Esta senhorita entusiasta, à conta de ler o jornal ao pai, apaixona-se pelo primeiro-ministro, o qual, por meio dos editoriais e do «resumé dos debates», brilha na sua imaginação como uma singular estrela cintilante, sem paralaxe para ela, a viver no campo enquanto a simples Senhorita Wyndham. Mas sem demora se torna na baronesa Umfraville por mérito próprio, espanta o mundo com a sua beleza e os seus feitos quando irrompe por ele adentro a partir da sua mansão em Spring Gardens, e, como a leitora conseguirá prever, rapidamente entrará em contacto com o desconhecido objet aimé. Talvez as palavras «primeiro-ministro» lhe sugiram um sexagenário obeso ou engelhado; mas imploro-lhe que descarte tal imagem. O lorde Rupert Conway foi «ainda mal saído da puberdade chamado para o primeiro lugar que uma pessoa pode ocupar no universo», e nem mesmo os editoriais e um resumé dos debates foram capazes de criar um sonho que ultrapassasse a realidade.

A porta abriu-se novamente, e lorde Rupert Conway entrou. Evelyn olhou uma vez. Foi o suficiente; não se desiludiu. Era como se um quadro que admirara demoradamente tivesse sido subitamente imbuído de vida e dado um passo para fora da moldura diante de si. A sua figura alta, a distinta simplicidade do seu ar ― ele era um Vandyke em carne e osso, um cavaleiro, um dos nobres cavaleiros seus antepassados, ou então aquele ao qual a sua imaginação sempre o assemelhou, que outrora tinha, com um Umfraville, lutado contra os infiéis muito para lá do mar. Seria isto a realidade?

Muito pouco como ela, certamente.

A seu tempo, torna-se evidente que o coração ministerial se comove. Lady Umfraville está de visita à Rainha, em Windsor, quando:

Na última noite da sua estadia, ao regressarem do passeio a cavalo, o Sr. Wyndham levou-a a ela e a um grupo numeroso ao cimo da Torre, para apreciarem a vista. Inclinava-se sobre as ameias, contemplando daquela «nobre altura» o cenário abaixo dela, com lorde Rupert ao seu lado. «Que vista sem igual!», exclamou ela.

― Sim, teria sido um erro partir sem vir aqui acima. Está agradada com a sua visita?

― Encantada! Uma Rainha sob a qual viver e morrer, pela qual viver e morrer!

― Ah! ― clamou ele, com uma emoção repentina, e com uma expressão de eureka na fisionomia, como se tivesse realmente encontrado um coração em uníssono com o seu.

Na «expressão de eureka na fisionomia» reconhecerá de imediato o prenúncio de casamento no final do terceiro volume; mas, antes dessa consumação desejável, há mal-entendidos muito complicados, oriundos principalmente da conspiração vingativa de Sir Luttrell Wycherley, um génio, um poeta, e em todos os aspectos uma personagem de facto deveras extraordinária. É não só um poeta romântico como um dissoluto inveterado e um espírito cínico; porém a sua profunda paixão por Lady Umfraville empobreceu de tal modo o seu talento epigramático que faz uma paupérrima figura nas conversas. Quando ela o recusa, ele corre para os arbustos e rebola-se na terra; no recobro, dedica-se aos planos de vingança mais laboriosos e diabólicos, no decurso dos quais se disfarça de médico charlatão e se imiscui na prática de clínica geral, prevendo que Evelyn adoecerá e que ele será chamado a socorrê-la. Por fim, quando todos os seus planos saem frustrados, despede-se dela com uma longa carta, escrita, como perceberá pelo excerto seguinte, inteiramente ao estilo de um eminente homem das letras:

Oh, senhora, criada em pompa e prazer, dedicará alguma vez um só pensamento ao ser miserável que a si se dirige? Alguma vez, enquanto o seu galeão dourado navega o imperturbado leito da prosperidade, alguma vez, enquanto embalada pela mais doce música ― as suas próprias preces ― escutará o distante suspiro vindo do mundo para onde me encaminho?

De modo geral, no entanto, vaporoso que seja, preferimos sem dúvida Título e Beleza aos outros dois romances que referimos. O diálogo é mais natural e vigoroso; há alguma ignorância honesta, e nenhum pedantismo; e é-nos permitida a confiança cega no estonteante intelecto da heroína, sem nos ser imposta a leitura das suas refutações de salão de cépticos e filósofos, ou as suas soluções retóricas para os mistérios do universo.

As escritoras da escola cabeça-para-chapéus são extraordinariamente unânimes na escolha de dicção. Nos seus romances, há habitualmente uma senhora ou um cavalheiro que são uma espécie de árvore upas; o apaixonado tem um peito viril; as mentes são redolentes de coisas variadas; os corações são frívolos; os acontecimentos são postos a uso; amigos são confiados ao túmulo; a infância é uma época envolvente; o sol é uma luminária que se dirige ao seu repouso ocidental, ou que reúne as gotas de chuva no seu seio refulgente; a vida é uma dádiva melancólica; Albion e Scotia são epítetos de conversa. A semelhança é também fulgurante na natureza dos seus comentários morais, como, por exemplo, ser «um dado adquirido, não menos verdadeiro do que a melancolia, que todas as pessoas, para mais ou para menos, mais ricas ou mais pobres, são levadas pelos maus exemplos»; que «os livros, por banais que sejam, versam sobre alguns temas dos quais pode ser retirada informação útil»; que «o vício muito frequentemente toma de empréstimo a linguagem da virtude»; que «o mérito e a nobreza de carácter têm por força de existir, e serem aceites, pois o clamor e a pretensão não podem impor-se aos deveras bem versados na natureza humana para serem facilmente enganados»; e que «para que consigamos perdoar, temos primeiro de ser lesados». Existe, sem dúvida, uma categoria de leitores a quem estas observações soam particularmente afiadas e pungentes; pois é frequente encontrarmo-las sublinhadas a lápis duas e três vezes, e que finas mãos confiram a sua adesão convicta a estas novidades destemidas com um nítido très vrai, enfatizado por vários pontos de exclamação. O estilo coloquial destes romances é frequentemente marcado por uma inversão assaz inventiva, e por um desvio calculado daquela fraseologia barata que se ouve todos os dias. Jovens cavalheiros irados exclamam: «Assim sempre o foi, convencido estou»; e na meia hora que precede o jantar uma senhorinha informa o seu vizinho do lado que no primeiro dia em que leu Shakespeare «escapuliu-se para o parque e, debaixo da sombra da árvore verdejante, devorou em êxtase a inspirada página do grande mágico». Mas os esforços mais notáveis das escritoras cabeça-para-chapéus residem nas suas reflexões filosóficas. A autora de Laura Gay, por exemplo, tendo casado o herói e a heroína, aprimora o acontecimento observando que «se aqueles cépticos, cujos olhos tanto se fixaram na matéria que já nada mais conseguem ver no homem, entrassem uma vez que fosse de corpo e alma em tal júbilo como este, acabariam por afirmar que a alma do homem e o pólipo não têm a mesma origem, nem a mesma textura». As senhoras romancistas, ao que parece, são capazes de ver para além da matéria; não estão limitadas aos fenómenos, descansando a vista com relances esporádicos ao númeno, e estão, por isso, mais capacitadas do que qualquer outra pessoa para desconcertar os cépticos, mesmo os daquela ilustre escola, para nós desconhecida, que insiste que a alma do homem possui uma textura igual à do pólipo.

Os mais deploráveis de todos os romances tolos de senhoras romancistas são os da dita espécie oracular ― romances com o propósito de explicar as teorias filosóficas, religiosas ou morais da escritora. Parece ser uma ideia disseminada entre as mulheres, muito aparentada à superstição de que o discurso e as acções dos idiotas são inspirados, e de que o ser humano mais inteiramente desprovido de senso comum é o veículo de revelação mais adequado. A julgar pelo que escrevem, há certas senhoras que acham que uma ignorância extraordinária, quer da ciência quer da vida, é a melhor das habilitações para conceber uma opinião acerca dos mais intricados problemas morais e especulativos. Claramente, a receita que usam para resolver todas estas dificuldades vai mais ou menos assim: pegue numa cabeça de mulher, recheie-a com umas pitadas de filosofia e literatura finamente cortadas e com falsas noções da sociedade bem cozidas, pendure-a sob uma secretária algumas horas todos os dias e sirva quente num inglês débil, sempre que ninguém o solicitar. Raramente encontrará uma senhora romancista do tipo oracular que se mostre insegura das suas capacidades para resolver questões teológicas; que demonstre a mínima suspeita de não ser capaz de discriminar com a mais fina precisão entre o bem e o mal em todas as reuniões paroquiais; que não veja exactamente de que modo os homens estiveram tão enganados até agora; e que de modo geral se compadeça dos filósofos por não terem tido a oportunidade de a consultar. Aos grandes escritores, que modestamente se contentaram em trazer à ficção a sua experiência, elas lamentam-nos como deploravelmente deficitários na aplicação dos seus poderes. «Não solucionaram nenhuma das grandes questões» ― e prontifica-se a corrigir a sua omissão dispondo diante da leitora uma teoria absoluta da vida e um manual da divindade, numa história de amor, onde senhoras e cavalheiros de boas famílias sofrem vicissitudes corteses, para a total perplexidade de deístas, puseístas e ultra-protestantes, e para o estabelecimento perfeito daquela perspectiva singular da cristandade que tanto se condensa a si mesma numa curta frase em versaletes como explode numa aglomeração de estrelas na trecentésima décima-terceira página. Verdade, as senhoras e os cavalheiros parecer-lhe-ão a si muito pouco com alguém com quem já tenha tido a felicidade ou infelicidade de se cruzar, uma vez que, regra geral, a capacidade de uma senhora romancista para descrever a vida real e os seus semelhantes manifesta-se em proporção inversa à sua eloquência cheia de confiança acerca de Deus e do outro mundo, e os meios que ela habitualmente escolhe para a dirigir a ideias verdadeiras acerca do invisível é uma imagem absolutamente falsa do visível.

Um dos romances mais típicos da espécie oracular que podemos almejar encontrar é O Enigma: Uma Página das Crónicas da Casa Wolchorley. O «enigma» a ser resolvido por este romance é certamente do género que exige poderes não menos colossais do que os de uma senhora romancista, consistindo nada mais nada menos do que na existência do mal. O problema é exposto e a resposta vagamente anunciada logo na primeira página. A intrépida senhorinha, de cabelos pretos, diz: «Toda a vida é uma confusão inextricável»; e a mansa senhorinha, de cabelos acobreados, olha para a imagem da Virgem que está a copiar e: «Parece estar aqui a solução daquele grandioso enigma.» O estilo deste romance é tão elevado quanto o seu propósito; na verdade, alguns dos trechos a que dedicámos um aturado estudo revelaram-se muito além da nossa compreensão, apesar do auxílio gráfico de itálicos e versaletes; e somos obrigadas a aguardar um maior «desenvolvimento» de forma a conseguirmos compreendê-los. Acerca de Ernest, o jovem clérigo exemplar, que corrige toda a gente em todas as ocasiões, lemos que «não aprovava o casamento do tipo transaccional, em jeito de profanação social»; que, numa noite digna de nota, «o sono não visitou o seu coração dividido, onde tumultuavam, em várias formas e combinações, os sentimentos conjuntos da tristeza e da alegria»; e que, «para o artigo humano transaccionável, ele não tinha qualquer tolerância, fosse de que tipo fosse, independentemente do fim para que estivesse direcionado, a adoração ou a classe, a sua alma recta abominava-o, cujo ultimato, o auto-enganador, era para ele A grande mentira espiritual, “vivendo num espectáculo vão, enganando e sendo enganado”[6]; pois ele não considerava o filactério e a larga orla no manto como um mero truque social». (Os itálicos e versaletes são da autora, e esperamos que contribuam para a compreensão do leitor.) Sobre Sir Lionel, o velho cavalheiro exemplar, é-nos dito que «o ideal simples da Idade Média, tirando a anarquia e a decadência, parecia verdadeiramente voltar à vida nele, quando os laços que uniam os homens eram feitos de castas heroicas. As cores primogénitas da fé e verdade prístinas gravadas na alma comum do homem, e fundidas no extenso arco da irmandade, onde a primeva lei da ordem cresceu e se multiplicou, cada um perfeito de acordo com o seu tipo, e mutuamente interdependentes». Será claro para si, sem dúvida, o modo como as cores são primeiro gravadas numa alma, e depois fundidas num extenso arco, arco de cores no qual ― ao que tudo indica, um arco-íris ― a lei da ordem cresceu e se multiplicou, cada um ― ao que tudo indica, o arco e a ordem ― perfeito de acordo com o seu tipo? Se, depois disto, ainda achar que precisa de uma ajuda adicional para ficar a conhecer Sir Lionel, podemos dizer-lhe que na sua alma «as combinações científicas do pensamento não poderiam eduzir harmonias do bom e do verdadeiro mais plenas do que as encontradas nas pulsações primevas que flutuavam como uma atmosfera ao seu redor!», e que, quando estava a lacrar uma carta, «Vede! a palpitação reactiva no peito daquele bom homem ecoou numa simples verdade o testemunho honesto de um coração que não o condenou, à medida que o seu olhar, orvalhado de amor, pousou, também, com um tanto de orgulho ancestral, na resplandecente divisa da família ― “LOIAUTÉ”».

Os assuntos mais insignificantes são fumigados da sua vulgaridade pelo mesmo estilo elevado. As pessoas comuns diriam que um exemplar de Shakespeare estava na mesa da sala; mas a autora de O Enigma, comprometida com uma perífrase edificante, diz-lhe que ali na mesa jaz «aquele repositório de pensamento e sentimento humanos, que ensina o coração por meio do breve nome, “Shakespeare”». Um guarda-nocturno vê uma chama acesa numa janela do andar de cima até mais tarde do que é costume, e pensa que as pessoas são tolas em ficar acordadas até tarde quando lhes é dada a oportunidade de irem dormir; mas, para que este facto não pareça demasiado rasteiro e banal, é-nos apresentado da seguinte maneira impressiva e metafísica: «Ele admirou-se ― dado que um homem pensará sempre por outros numa personalidade necessariamente distinta, consequentemente (embora descartando-o) sob uma falsa premissa mental –, quão diversamente ele agiria, quão alegremente ele apreciaria o descanso tão pouco estimado ali dentro.» Um criado ― um Jeames[7] vulgar, de gémeos largos e vogais aspiradas ― vai abrir a porta, e aproveita-se a oportunidade para lhe dizer a si que ele era um «membro da vasta classe de domésticos mimados, que seguem a maldição de Caim ― “vagabundos” à face da Terra, cuja valorização do tipo humano varia numa escala de dinheiro e despesa… Estas, e outras como estas, Ó Inglaterra, são as falsas luzes da tua mórbida civilização!» Já nos tinham dado a conhecer várias «falsas luzes», do Dr. Cumming[8] a Robert Owen,[9] do Dr. Pusey[10] aos espiritistas, mas nunca tínhamos ouvido falar da falsa luz que emana do felpo e do pó de arroz.

Do mesmo modo os acontecimentos deveras triviais da vida civilizada ascendem às crises mais horrendas, e senhoras de saias compridas e manches à la Chinoise[11] comportam-se nos mesmos termos das heroínas de melodramas sanguinários. A Sra. Percy, uma mulher mundana fútil, deseja que o seu filho Horace case com a Grace de cabelos acobreados, visto ser ela uma herdeira; mas ele, como é apanágio dos filhos, apaixona-se pela Kate de cabelos pretos, a prima desvalida da herdeira; e, para mais, a própria Grace apresenta todos os sintomas de uma indiferença total a Horace. Em casos como este, os filhos costumam amuar ou desbaratar, as mães alternam entre a manipulação e o maldizer, e é hábito da senhorinha desvalida passar as noites em claro e chorar muito. Vamo-nos habituando a estas coisas, como nos habituámos aos eclipses lunares, que já não nos põem a uivar e a bater em tachos de lata. É impensável uma senhora de «aparência» respeitável comportar-se como a Sra. Percy nas mesmas circunstâncias. Acontecendo um dia ver Horace a falar com Grace a uma janela, sem saber sequer do que falavam, ou sem ter a mínima razão para acreditar que Grace, senhora da mansão e pessoa digna, aceitaria o seu filho caso ele se lhe propusesse, ela avança subitamente até eles e agarra-os a ambos, dizendo, «com a fronte afogueada e em tom de agitação»: «Pois é isto a felicidade!; pois não poderei eu chamar-te assim, Grace ― a minha Grace!, a Grace do meu Horace!, os meus queridos filhos!» O filho diz-lhe que está enganado, e que está noivo de Kate, o que nos dá a seguinte cena e quadro:

Endireitando-se até uma altura sem precedentes, (!) os seus olhos alumiados com o ardor da sua raiva:

― Rapaz desgraçado! ― disse ela, com voz cava e escarninha, e com a mão em punho. ― Acarreta então com a perdição que tu próprio escolheste! Inclina a tua cabeça miserável e deixa que a maternal…

― Não blasfeme! ― proferiu uma voz baixa e funda vinda de trás e a Sra. Percy deu um salto, assustada, como se tivesse visto um visitante celeste a abater-se sobre ela durante o seu acto pecaminoso.

Entretanto, Horace caíra de joelhos a seus pés, e escondera a cara nas mãos.

Quem, então, é ela ― quem! Era certo que o seu «espírito da guarda» interviera entre ele e as terríveis palavras, que, pouco merecidas que fossem, teriam pairado como uma mortalha sobre a sua existência futura; um feitiço que não poderia ser quebrado, que não poderia ser desdito.

De uma palidez terrena, mas calma daquela parada, inflexível, quietude da morte ― a única pessoa calma ali ― Katherine ali estava; e as suas palavras embateram nos ouvidos em tons cuja entoação tão pavorosamente lenta e cadenciada soou no coração como o bater arrepiante, solitário, de um dobre fatal.

― Ele ter-se-ia prometido a mim em casamento, mas eu não o aceitei; não pode, por isso, não ousará amaldiçoá-lo! E aqui ― continuou ela, erguendo a mão ao céu, na direcção do qual os seus grandes olhos escuros também se ergueram com um brilho casto, que, pela primeira vez, o sofrimento tinha ateado naquelas órbitas fervorosas ―, aqui prometo, venha a bonança, venha a tempestade, que eu e Horace Wolchorley nunca trocaremos votos sem a anuência de sua mãe, sem a bênção de sua mãe!                                  

Aqui, e ao longo de toda a narrativa, notamos aquela confusão de propósito tão característica dos romances tolos escritos por mulheres. Trata-se da narrativa de uma sociedade de salão bastante moderna ― uma sociedade em que se tocam polcas e se discute o puseísmo; porém são introduzidos personagens, incidentes e traços de carácter que não passam de uns quantos bocados tirados de uma miscelânea de romances de cavalaria. Há um harpista irlandês, «relíquia dos pitorescos bardos de outrora», a tomar-nos de assalto durante um festival de chá e bolos da catequese numa aldeia inglesa; há uma cigana doida, de capa escarlate, a cantar trechos de romanças, que revela um segredo no leito de morte, que, com o testemunho de um atarracado mercador avaro, que cumprimenta os desconhecidos com uma praga e um riso maléfico, prova que Ernest, o jovem clérigo exemplar, é irmão de Kate; e há um Barney irlandês ultra-virtuoso que descobre que um documento é falsificado quando compara a data da folha com a data da suposta assinatura, embora esse mesmo documento tenha passado por um tribunal e dado origem a uma decisão fatal. O «Solar» onde Sir Lionel vive é a respeitável residência rural de uma antiga família e tal facto, presumimos, lança a imaginação da autora para masmorras e ameias onde, «vede! a sentinela toca a trombeta»; visto que, enquanto os inquilinos estão nos seus quartos numa noite decerto bem lembrada por Pleaceman X,[12] e se levanta uma aragem, que a princípio nos é dito ser branda, e depois que fez com que os cedros dobrassem os ramos até ao relvado, ela desaba nesta descrição de veia medieval (itálicos nossos): «O estandarte desfraldou-o ao toque, e sacudiu a sua asa guardiã lá em cima, enquanto a coruja sobressaltada bateu-a na hera; o firmamento a olhar cá para baixo com os seus “olhos de Argo”,

                                    “Ministros das mudas melodias celestiais”

E vede! Duas badaladas soaram a partir da torre da sentinela, e “Duas horas” ecoou o seu intérprete lá em baixo.»

Histórias como a d’O Enigma trazem-nos à memória certos desenhos «da sua própria ideia» que as crianças espertas às vezes fazem, com uma povoação moderna à direita, dois cavaleiros com elmo a desafiarem-se em primeiro plano, e um tigre com os dentes todos à mostra numa selva à esquerda, a junção dos vários elementos devendo-se ao facto de o artista achar cada um bonito, ou mais provavelmente porque se lembra de os ter visto noutros desenhos.

Mas sem dúvida que preferimos as andas medievais da autora às oraculares ― quando ela fala do Ich e do «objectivo» e «subjectivo» e traça a linha exacta da verdade cristã, entre «os excessos da mão direita e as declinações da mão esquerda». As pessoas que se extraviam deste caminho são apresentadas com um tom de caridade condescendente. De uma tal Senhorita Inshquine ela informa-nos, com toda a clareza dos itálicos e versaletes, que «a função, não a forma, ENQUANTO a inevitável expressão manifesta do espírito nesta era corpórea, cativava-a pouco». E à propos da Senhorita Mayjar, uma senhora evangélica com um bocadinho de propensão a mais para falar das suas visitas a mulheres enfermas e do estado das suas almas, é-nos dito que o clérigo exemplar não será «um daqueles que negue, para lá da super crosta, uma corrente subterrânea em direcção ao bem no sujeito, ou os benefícios positivos, contudo, para o objecto». Imagine-se o sotaque duplamente requintado e a protuberância do queixo debilmente representados pelos itálicos nas frases desta senhora! Abstemo-nos de citar qualquer um dos seus trechos doutrinais oraculares, visto que se referem a assuntos demasiados sérios para as nossas linhas, de momento.

O epíteto «tolo» pode parecer impertinente, aplicado a um romance que indica tantas leituras e actividade intelectual como O Enigma; mas usamos este epíteto com conhecimento de causa. Se, como há muito é de comum acordo no mundo, não é uma grande quantidade de conhecimento que faz de um homem sábio, uma quantidade medíocre de conhecimento ainda menos fará de uma mulher sábia. E a forma mais prejudicial de tolice feminina é a forma literária, visto que tende a confirmar o preconceito generalizado contra uma educação mais sólida para as mulheres. Quando os homens vêem as raparigas a desperdiçar o seu tempo em conversas sobre chapéus e vestidos de baile, e em risinhos e confidências de amor sentimentais, ou mulheres de meia-idade a desgovernarem os filhos e a consolarem-se com coscuvilhice amarga, não podem senão dizer: «Por amor de Deus, façam com que as raparigas tenham uma educação melhor, dêem-lhes melhores coisas em que pensar ― ocupações com mais substância.» Mas depois de algumas horas de conversa com uma mulher literária oracular, ou de umas poucas horas a ler um dos seus livros, é mais provável que digam: «Afinal de contas, quando uma mulher adquire algum conhecimento, vejam como o põe a uso! O seu conhecimento permanece uma aquisição, em vez de se tornar cultura; em vez de se subjugar à modéstia e à simplicidade por uma maior noção dos conceitos e dos factos, desenvolve uma consciência exaltada dos seus feitos; passa a andar com uma espécie de espelhinho de bolso mental, no qual mira continuamente a sua própria “intelectualidade”; estraga o prazer do queque dos outros com questões metafísicas; “arrasa” os homens à mesa do jantar com a sua informação superior; e agarra a oportunidade de uma soirée para nos doutrinar sobre o problema vital da relação entre o espírito e a matéria. E depois, olhai para o que escreve! Confunde vagueza com profundidade, pretensão com eloquência, e afectação com originalidade; pavoneia-se numa página, revira os olhos noutra, desdenha na terceira e fica histérica numa quarta. É capaz de ter lido muitas obras de grandes homens, e umas quantas de grandes mulheres; mas é incapaz de reconhecer a diferença entre o seu próprio estilo e o deles tanto quanto um yorkshiriano o é de reconhecer a diferença entre o seu próprio inglês e o de um londrino: a bazófia é o sotaque nativo do seu intelecto. Não ― a natureza geral das mulheres é um solo demasiado raso e pobre para aguentar farto cultivo; é somente apropriado para colheitas pouco exigentes.»

É verdade que os homens que chegam a tal conclusão com base numa observação de tal forma superficial e imperfeita talvez não contem entre os mais sábios do mundo; mas não nos cabe agora contestar a sua opinião ― estamos apenas a chamar a atenção para o modo como é inconscientemente encorajada por muitas mulheres que se voluntariaram como representantes do intelecto feminino. Não acreditamos que um homem tenha alguma vez saído com esta opinião reforçada do convívio com uma mulher verdadeiramente culta, cuja mente tenha absorvido o conhecimento em vez de ser absorvida por ele. Uma mulher verdadeiramente culta, tal como um homem verdadeiramente culto, é tanto mais simples e menos intrusiva à conta do seu conhecimento; tal fê-la tomar-se a si e às suas opiniões nas devidas proporções, digamos; não faz dele um pedestal do cimo do qual se gaba de dominar um panorama absoluto dos homens e das coisas, mas faz dele um posto de observação a partir do qual conceber uma noção correcta de si própria. Ela nem declama poesia nem cita Cícero à mínima provocação; não porque pense que deve fazer concessões aos preconceitos dos homens, mas porque esse modo de exibir a sua memória e a sua latinidade não se lhe apresenta como edificante ou gracioso. Ela não escreve livros para desconcertar os filósofos, talvez porque seja capaz de escrever livros que os encantem. Em conversa, é a mulher menos formidável, visto que a compreende sem querer dar-lhe a entender que você não a compreende a ela. Ela não lhe dá informação, a matéria-prima da cultura ― ela dá-lhe simpatia, a sua essência mais subtil.

Há uma categoria de romances tolos mais numerosa do que a oracular (geralmente inspirada por uma das expressões da Igreja Alta ou pelo cristianismo transcendental) a que podemos chamar o género plastrão branco, que representa o tom de pensamento e sentimento na congregação evangélica. Este género é um tipo de tratado de boa educação em larga escala, destinado a ser uma espécie de guloseima medicinal para senhorinhas da Igreja Baixa; um substituto evangélico para o romance popular, na mesma medida em que os Encontros de Maio[13] são um substituto da ópera. Nem às crianças quacres, presume-se, terá sido negada a indulgência de uma boneca; mas terá de ser uma boneca de vestido comprido e desengraçado e com um chapéu de balde ― nem pensar numa boneca mundana, com organdi e brilhantes. E não há senhorinhas, imaginamos nós ― com excepção das que pertencem à Igreja dos Irmãos Unidos, em que as pessoas casam sem se fazerem a corte –, que passem sem histórias de amor. Assim, para senhorinhas evangélicas há histórias de amor evangélicas, nas quais as vicissitudes da tenra paixão são consagradas por visões salvíficas da regeneração e da expiação. Estes romances distinguem-se dos oraculares na mesma medida em que uma mulher da Igreja Baixa se distingue de uma mulher da Igreja Alta: são um pouco menos arrogantes e muito mais ignorantes, um pouco menos correctos na sintaxe e muito mais vulgares.

O Orlando[14] da literatura evangélica é o jovem cura, visto da perspectiva da classe média, em que tiras de cambraia são tidas como provocadoras de um efeito tão arrebatador nos corações das senhorinhas como o das dragonas nas classes acima e abaixo delas. No tipo mais comum destes romances, é mais do que certo o herói ser um jovem cura, olhado com desaprovação, talvez, pelas mãezinhas mundanas, mas possuindo cativos os corações das suas filhas, que «nunca esquecerão aquele sermão»; cativam-se olhares ternos nas escadas do púlpito, não nos camarotes da ópera; tête-à-têtes são condimentados com citações das Escrituras, não com citações de poetas; e reflexões acerca do estado dos afectos da heroína confundem-se com ansiedades acerca do estado da sua alma. O jovem cura é sempre oriundo de um meio bem-posto e rico, quando não mesmo de alta sociedade ― isto porque a tolice evangélica é tão snobeira como qualquer outra espécie de tolice; e a senhora romancista evangélica, enquanto lhe explica as características do bode expiatório numa página, ambiciona noutra representar as maneiras e a conversa da gente aristocrática. Os seus quadros da alta sociedade são as mais das vezes estudos minuciosos tidos como proezas da imaginação evangélica; mas há um pormenor em que os romances da Escola do Plastrão Branco são realistas de modo meritório: o seu herói preferido, o jovem cura evangélico, é sempre uma personagem assaz insípida.

O romance mais recente deste género com que calha depararmos é A Velha Igreja Cinzenta. É absolutamente manso e débil; não há nenhum conjunto de elementos que a autora pareça dominar melhor do que qualquer outro; e seria impossível tentarmos perceber em que alturas da vida adquiriu tais experiências, não fossem certos vulgarismos de estilo suficientes para mostrar que ela teve o privilégio, embora não tenha sido capaz de o aproveitar, de conviver principalmente com homens e mulheres cujas maneiras e temperamentos não tiveram todas as suas bossas e arestas limadas pelo convencionalismo requintado. A uma romancista evangélica desculpa-se menos do que a qualquer outra que procure gratuitamente os seus temas entre títulos e carruagens. O verdadeiro drama do evangelismo ― e há aí drama do melhor em abundância para quem tiver génio o bastante para o discernir e reproduzir ― encontra-se nas classes média e baixa; não são as opiniões evangélicas tidas como especialmente interessadas nas coisas fracas da Terra, mais do que nas fortes?[15] Então por que não podem as nossas senhoras romancistas evangélicas mostrar-nos o funcionamento das suas opiniões religiosas entre pessoas (que as há realmente em abundância no mundo) sem carruagem, «sem sequer um cabriolé de capota rígida», que até conseguem comer o seu jantar sem um garfo de prata, e em cujas bocas o inglês duvidoso da autora seria rigorosamente coerente? Por que não podemos ter quadros da vida religiosa nas classes industriais em Inglaterra tão interessantes como os quadros da Sra. Stowe[16] sobre a vida religiosa dos negros? Em vez disto, senhoras devotas provocam-nos náuseas com romances que fazem lembrar o que por vezes vemos numa mulher mundana recentemente «convertida»: aprecia tanto como antes uma bela mesa de jantar, mas passa a convidar clérigos em vez de pretendentes; preocupa-se tanto como antes com o vestido, mas adopta uma escolha mais sóbria de cores e padrões; o que diz é tão banal como antes, mas a banalidade é polvilhada com o evangelho em vez da coscuvilhice. Em A Velha Igreja Cinzenta temos o mesmo tipo de paródia evangélica do romance da alta sociedade, e claro que não falta o baronete maldoso e intriguista. Vale a pena partilhar uma amostra do estilo de conversação atribuído a este dissoluto de berço nobre ― um estilo que nos seus itálicos abundantes e insinuações palpáveis está ao nível de uma Senhorita Squeers.[17] Numa visita de final de tarde às ruínas do Coliseu, Eustace, o jovem clérigo, tem mantido a heroína, a Senhorita Lushington, à parte do resto do grupo, em benefício de um tête-a-tête. O baronete fica com ciúmes, e expressa o seu ressentimento deste modo:

Ali estão eles, e a Senhorita Lushington, sem dúvida, bem a salvo; pois está sob a sagrada orientação do Papa Eustace I, que, evidentemente, lhe tem estado a ministrar uma homilia edificante sobre a malvadez dos pagãos de outrora, que, segundo o que nos conta a tradição, neste mesmo lugar soltaram as bestesas selvagens ao pobre São Paulo! ― Oh, não! a propósito, penso que estou em erro, e a dar mostras da minha falta de clericato, e que não foi de todo com São Paulo nem aqui que se passou. Mas adiante, daria na mesma uma história para pregar, e para divergir dos degenerados cristãos pagãos dos dias de hoje e de todas as suas práticas maldosas, e assim terminar com uma exortação a «sair do meio deles e separarem-se»[18]; e estou certo, Senhorita Lushington, de que esta noite cumpriu escrupulosamente tal injunção, pois não lhe pusemos a vista em cima desde que chegámos. Mas toda a gente parece concordar que se tratou de uma encantadora excursão de lazer, e estou certo de que estamos todos muito gratos ao Sr. Grey por a ter sugerido; e visto que ele se mostrou um cicerone exemplar, espero que pense noutra proposta igualmente do agrado de todos.

Esta espécie de diálogo ababosado, e esta narrativa igualmente ababosada, que, à semelhança de um mau desenho, não representa nada, e mal indica o que é suposto representar, está por todo o livro; e não nos restam dúvidas de que a amável autora o considera um romance instrutivo, que as mães cristãs farão bem em pôr nas mãos das suas filhas. Mas tudo é relativo; já conhecemos vegetarianos americanos cuja dieta normal consistia em refeições enxutas e que, quando o apetite exigia alguma estimulação, o titilavam com refeições ensopadas; conseguimos assim imaginar que há meios evangélicos em que A Velha Igreja Cinzenta é devorada como se se tratasse de ficção poderosa e interessante.

Mas talvez os romances de senhoras tolas menos legíveis sejam os da categoria antiguidade-moderna, que nos desvelam a vida doméstica de Janes e Jambres,[19] as relações secretas de Senaqueribe,[20] ou os conflitos internos e a conversão definitiva de Demétrio,[21] o ourives. A maior parte dos romances tolos consegue arrancar-nos uma gargalhada; mas os da escola da antiguidade-moderna possuem uma imbecilidade de tal modo grave e densa que nos faz soçobrar e gemer. O que pode ser mais demonstrativo da incapacidade das mulheres literárias para avaliarem os seus próprios poderes do que a frequência com que se encarregam de uma tarefa justificada apenas pela mais rara concomitância de conhecimento e génio? O mais bem-sucedido esforço para reavivar o passado é evidentemente apenas aproximativo ― é sempre em maior ou menor medida uma infusão do espírito moderno na forma antiga:

Was ihr den Geist der Zeiten heisst,
Das ist im Grund der Herren eigner Geist,
In dem die Zeiten sich bespiegeln.[22]        

Admitindo que o génio que se familiarizou com todas as relíquias de uma era passada consegue por vezes, por via do poder da sua adivinhação empática, recuperar as notas em falta na «música da humanidade»[23] e reconstruir os fragmentos num todo que trará de facto o passado remoto para mais perto de nós, e interpretá-lo em benefício da nossa compreensão embotada ― esta forma de poder imaginativo permanecerá das mais raras, dado que exige tanto de conhecimento preciso e detalhado como de vigor criativo. Porém, vemos senhoras que procuram sucessivamente tornar flagrante a sua mediocridade intelectual, enfeitando-a de nomes antigos; pondo a sua sentimentalidade débil nas bocas de vestais romanas ou princesas egípcias, e atribuindo os seus argumentos retóricos a sumo-sacerdotes judeus e a filósofos gregos. Um exemplo recente desta imbecilidade gravosa é Adonias[24] ― Um Conto da Diáspora Judaica, parte integrante de uma colecção que «reúne», é-nos dito, «bom gosto, humor, e bons princípios». Presume-se então que Adonias incarne o conto de «bons princípios»; o bom gosto e o humor serão encontrados noutros volumes da colecção. Na capa lemos que os acontecimentos deste conto estão «repletos de um interesse invulgar», e o prefácio é assim arrematado: «Aos interessados nos exilados de Israel e de Judá, estas páginas podem fornecer, talvez, informação acerca de um tema importante, assim como entretenimento.» Dado que o «tema importante» sobre o qual este livro é suposto fornecer informação não é especificado, é bem possível que se trate de algo com um significado esotérico para o qual não dispomos da chave; mas se estiver relacionado com os exilados de Israel e da Judá em qualquer época da sua história, uma aluna razoavelmente bem informada terá já mais conhecimento acerca do assunto do que aquele que encontrará neste Conto da Diáspora Judaica. Adonias trata-se simplesmente da mais débil história de amor, presume-se que pretensamente educativa porque o herói é um cativo judeu e a heroína uma vestal romana; porque eles e os seus amigos são convertidos ao cristianismo pelo método mais rápido e fácil aprovado pela «Sociedade para Promover a Conversão dos Judeus»; e porque, em vez de estar escrito numa linguagem acessível, está adornado com aquele estilo peculiar de grandiloquência a que algumas senhoras romancistas recorrem para dar um colorido antigo, imediatamente reconhecível em frases como: «os esplêndidos talentos régios possuídos pelo Imperador Nero»; «o  rebento[25] moribundo de uma nobre haste»; «o parceiro virtuoso do seu sofá»; «Ah, por amor a Vesta!»; e «escutai de mim, Romano». Entre as citações que na capa deste volume servem o duplo propósito da educação e do adorno encontramos uma da Senhorita Sinclair,[26] que nos informa que «as obras da imaginação são assumidamente lidas por homens de ciência, de sabedoria e de piedade»; do que entendemos que o leitor deverá chegar à dedução animadora de que o Dr. Daubeny,[27] o Sr. Mill[28] ou o Sr. Maurice[29] poderá comprazer-se abertamente com o folhear de Adonias sem ser obrigado a escondê-lo atrás das almofadas do sofá ou a lê-lo aos bochechos debaixo da mesa de jantar.

 

«Não sejas pasteleiro se tens a cabeça feita de manteiga», como diz um provérbio singelo, que, a ser interpretado, pode querer dizer algo como: que nenhuma mulher se apresse a ser publicada sem estar preparada para as consequências. Temos consciência de que as nossas observações são feitas num tom muito diferente do dos críticos, que, com o eterno recurso a emoções minuciosamente semelhantes, comparáveis apenas, imaginamos, à experiência das doulas, dizem a uma senhora romancista a seguir à outra que «saúdam» as suas obras «com regozijo». Temos consciência de que as senhoras a quem as nossas críticas são dirigidas estão habituadas a que lhes digam, na mais requintada fraseologia da adulação, que os seus quadros da vida são esplêndidos, as suas personagens bem compostas, o seu estilo fascinante e os seus sentimentos elevados. Se a sua tendência é ficarem ofendidas com a frontalidade das nossas palavras, pedimos-lhes que reflictam por um momento no parco elogio, e na não rara censura capciosa, que os seus panegiristas atribuem aos escritores em vias de se tornarem clássicos. Assim que uma mulher dá mostras de ter génio ou talento efectivo, passa a ter a honra de ser comedidamente elogiada e severamente criticada. Por via de uma compensação termométrica peculiar, quando o talento de uma mulher é zero, a aprovação jornalística chega ao ponto de ebulição; quando atinge a mediocridade, não ultrapassa o calor de Verão; e se alguma vez ascende à excelência, o entusiasmo crítico baixa a temperaturas negativas. Harriet Martineau,[30] Currer Bell[31] e a Sra. Gaskell[32] têm sido alvo de tal sobranceria como se de homens se tratassem. E qualquer crítico que tenha em elevada consideração o lugar que as mulheres poderão finalmente ocupar na literatura abster-se-á, por regra, de conceder qualquer favor especial às obras das mulheres literárias. Será evidente para todos os que olham de modo imparcial e abrangente para a literatura feminina que as suas maiores falhas dificilmente se devem à falta de capacidade intelectual mas antes à falta daquelas qualidades morais que contribuem para a excelência literária ― diligência paciente, noção da responsabilidade que a publicação implica e reconhecimento do carácter sagrado da arte do escritor. Na maior parte dos livros de mulheres vemos aquela espécie de destreza que nasce da ausência de padrões exigentes; a prodigalidade nas combinações imbecis e nas fracas imitações, que o mínimo de auto-crítica debelaria e reduziria à esterilidade; o mesmo se passa com alguém com uma completa falta de ouvido que canta fora de tom, quando bastaria só mais um pouco de sensibilidade musical para que se calasse. A vaidade insensata de querer ser publicada, em vez de ser contrabalançada por um rasgo de consciência do enfraquecimento intelectual e moral trazido pela autoria fútil, parece ser encorajada pela ideia absolutamente falsa de que basta escrever para uma mulher ser considerada superior. Por este motivo, acreditamos que a média intelectual das mulheres é injustamente representada pela generalidade da literatura feminina, e que enquanto as poucas mulheres que escrevem bem estão muito acima do nível intelectual habitual do seu sexo, as muitas mulheres que escrevem mal estão muito abaixo dele. Visto isto, afinal, os críticos mais severos cumprem um dever cavalheiresco ao privar o simples facto da autoria feminina de um falso prestígio que lhe possa conferir um deslumbramento ilusório, e ao recomendar às mulheres de capacidades medíocres ― será pelo menos um favor pela negativa que poderão prestar ao seu sexo ― que se abstenham de escrever.        

A desculpa vigente para as mulheres que se tornam escritoras sem nenhuma qualificação especial é a de que a sociedade lhes nega o acesso a outras esferas de ocupação. A sociedade é uma entidade muito repreensível, e tem de responder pelo fabrico de muitos artigos prejudiciais, por pickles estragados e por poesia estragada. Mas a sociedade, tal como a «matéria» e o Governo de Sua Majestade e outras abstracções grandiosas, tem o seu quinhão de culpa exagerada tanto quanto de louvor exagerado. Por cada mulher que escreve por necessidade, acreditamos que há três mulheres que escrevem por vaidade; e, além disso, há algo de tão antisséptico no simples acto salutar de trabalhar para comer, que o género mais desprezível e corrupto da literatura feminina não pode ter sido produzido em tais circunstâncias. «Em todo o trabalho há proveito»,[33] mas os romances tolos das senhoras, presume-se, são menos consequência do trabalho do que do ócio azafamado.

Felizmente, não dependemos de argumentos para provar que a ficção é um departamento da literatura no qual as mulheres, de acordo com a sua espécie, igualam por completo os homens. Um conjunto de grandes nomes, vivos e já idos, acorrem-nos à memória como prova de que as mulheres são capazes de produzir romances não apenas bons, mas dos melhores ― romances, além disso, de uma especialidade preciosa, posicionando-se a uma distância significativa das capacidades e experiências masculinas. Não há nenhuma restrição educacional que negue às mulheres o acesso aos materiais da ficção, e nenhum tipo de arte é mais livre de requisitos inflexíveis. Tal como os sólidos cristalinos, pode adquirir qualquer forma e ainda assim permanecer bela; temos apenas de lá colocar os elementos certos: observação genuína, humor e paixão. Mas é precisamente esta ausência de requisitos inflexíveis que torna fatal a sedução que a escrita de romances exerce sobre mulheres incompetentes. As senhoras não têm por hábito deixarem-se enganar obtusamente acerca da sua capacidade de tocar piano; neste caso, existem determinadas dificuldades de execução concretas que têm de ser dominadas, e a incompetência inevitavelmente cede. Toda a arte que possui a sua técnica intrínseca encontra-se, até certo ponto, salvaguardada das intromissões da imbecilidade canhestra. Mas na escrita de romances não existem barreiras contra as quais a imbecilidade esbarrar, não há critérios externos que impeçam uma escritora de confundir facilidade tola com mestria. E assim temos uma e outra vez a velha história do burro de La Fontaine, que encosta o nariz à flauta e, notando que provoca um som, exclama: «Moi, aussi, je joue de la flute»; uma fábula que recomendamos vivamente, na despedida, a qualquer leitora que se sinta em perigo de aumentar o número de «romances tolos de senhoras romancistas».

 

[1] Área da baixa londrina.

[2] Georg Friedrich Creuzer (1771-1858), filólogo e arqueologista alemão.

[3] Henry Saint John, 1.º visconde de Bolingbroke (1678 – 1751), político inglês, líder do partido Tory.

[4] Almack’s, no original, era o nome de vários estabelecimentos e clubes sociais em Londres, entre 1765 e 1863.

[5] Referência à crença escocesa na capacidade psíquica de ter visões proféticas.

[6] 2 Timóteo 3:13.

[7] Nome de uma personagem de William Makepeace Thackeray (1811-1863), romancista inglês, que se tornou uma designação genérica de criado doméstico.

[8] John Cumming (1807-1881), clérigo escocês e autor religioso, anti-católico.

[9] Robert Owen (1771-1858), fabricante de têxteis escocês, reformista social, fundador do socialismo utópico e do movimento cooperativo.

[10] Edward Bouverie Pusey (1800-1882), clérigo anglicano inglês, professor de hebraico na Universidade de Oxford, um dos protagonistas do Movimento de Oxford. Fundou o puseísmo, movimento que defendia uma aproximação entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana.

[11] Em francês, no original: mangas à chinesa.

[12] Narrador do poema «The Three Christmas Waits», de William Makepeace Thackeray.

[13] Referência aos encontros realizados em Exeter Hall, local especificamente construído para acolher assembleias de um grande número de pessoas. Aqui realizavam-se encontros para discutir questões de natureza religiosa, filantrópica e política.  

[14] Referência à personagem de As You Like It, de William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo inglês.

[15] 1 Coríntios 1:27.

[16] Harriet Beecher Stowe (1811-1896), escritora norte-americana abolicionista.

[17] Fanny Squeers, personagem do romance Nicholas Nickleby, de Charles Dickens (1812-1870).

[18] 2 Coríntios 6:17.

[19] Personagens bíblicas que se opuseram a Moisés. 2 Timóteo 3:8

[20] Rei da Assíria entre 705 a 681 a.C., invasor do reino de Judá. Referido no Antigo Testamento em: 2 Reis 18, 2 Crónicas 32 e Isaías 36.

[21] Personagem bíblica (Atos 19:24), ourives que fabricava miniaturas de prata do templo de Diana.

[22] Fala da personagem Fausto, na obra homónima de Goethe. Em alemão, no original: «O espírito dos tempos que se acende / Em vós é só a vossa própria mente, / Onde os tempos se mostram como em espelhos.» [Tradução de João Barrento em Fausto, Relógio D’Água, Lisboa: 1999.]   

[23] Referência a um verso do poema «Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey, On Revisiting the Banks of the Wye during a Tour. July 13, 1798», de William Wordsworth (1770-1850).

[24] Personagem da Bíblia, filho do rei David, referido em 2 Samuel e 1 Reis.

[25] No original, a palavra usada é «scion», que em inglês designa tanto o mais jovem descendente de uma família nobre como um rebento de uma planta, resultando num jogo de palavras.

[26] Catherine Sinclair (1800-1864), escocesa, escritora de romances e de livros infantis.

[27] Charles Daubeny (1795-1867), químico, geólogo e botânico inglês.

[28] John Stuart Mill (1806-1873), filósofo e economista político inglês, conhecido pela sua defesa do liberalismo e do utilitarismo.

[29] Frederick Denison Maurice (1805-1872), teólogo inglês e fundador do socialismo cristão.

[30] Harriet Martineau (1802-1876), teórica social inglesa, considerada a primeira socióloga.

[31] Pseudónimo de Charlotte Brönte (1816-1855), poetisa e romancista inglesa.

[32] Elizabeth Gaskell (1810-1865), romancista inglesa.

[33] Provérbios 14:23.

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