A protagonista da série de televisão The Queen’s Gambit, Beth, não é alguém que se gostasse de ter como amigo. Pede dinheiro emprestado ao seu mentor (um velho contínuo que a ensinou a jogar xadrez em pequena) sem pagar de volta, nunca o visita ou sequer agradece por este tê-la ajudado a começar a sua carreira. O grupo de rapazes que a ajuda a treinar — e que acaba por se transformar na sua claque — é tratado de forma semelhante. De tal maneira está concentrada em ganhar os torneios que praticamente não se mostra preocupada com a mãe adoptiva, enquanto esta se afunda numa espiral fatal de alcoolismo. Ao contrário dos seus adversários, que perdem graciosamente, Beth é arrogante e infantil. Já adulta, revela-se cruel e manipuladora ao jogar contra um rapazinho russo talentoso, compadecendo-se apenas depois de o ter vencido.
Beth não parece gostar realmente de ninguém e, ainda assim, os espectadores gostam dela e admiram a absoluta força do seu génio, mesmo que a maioria destes não saiba jogar xadrez. As cenas em que aparece a jogar deixam-nos fixados nos seus olhos arregalados deslumbrantes, na sua figura perfeita e unhas arranjadas, como se admirar o seu corpo fosse uma maneira simbólica de reconhecer um qualquer poder misterioso do seu cérebro. Ficamos a conhecer o seu génio por outras pessoas, quando as ouvimos dizer que é «espantosa» e pela vontade de a ajudar que estas demonstram.
Na minha área também existem génios. Uma vez, depois de ter dado uma palestra, um Génio fez-me uma pergunta e saiu da sala antes de ouvir a resposta. Durante uma conferência, um Génio não saiu do lugar para atender o telefone, enquanto estava sentado ao lado orador. Num jantar depois de uma outra conferência, estava a discutir com um Génio que começou a ficar frustrado com a minha relutância em aceitar o seu argumento. Começou a tocar-me — não de forma sexual ou violenta, mas um misto dos dois — na mão, no braço, chegando até ao pescoço, como forma de provar o seu ponto. Fez isto à frente de toda a gente. Ninguém o impediu, nem mesmo eu.
Uma vez convidei um Génio para jantar em minha casa. Chegou uma hora atrasado, acompanhado por um séquito de pessoas, e deu-me de presente um pacote de pipocas meio comido. Quando a conversa se começou a tornar mais filosófica, mandou sossegar o grupo com quem tinha vindo, fazendo notar que aquela parte do serão não lhes dizia respeito. Tal como muitas das pessoas na vida da Beth, o grupo mostrou-se grato por poder ser útil ao Génio, da maneira que o Génio achasse melhor. Estas não são quatro histórias sobre a mesma pessoa; são quatro Génios diferentes.
Provavelmente já estarão com vontade de condenar o comportamento destes Génios e dos grupos que os aceitam, mas é preciso ter em conta que nada fiz para que o génio destas pessoas vos impressionasse; ao contrário do que The Queen’s Gambit fez com Beth, eu não tornei os seus talentos apelativos.
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Ao longo da minha infância estive convencida de que era um prodígio em potência. O único desafio seria encontrar o campo em que os meus talentos se destacariam. Experimentei vários instrumentos e composição musical; tentei o ballet, a ginástica e a patinagem no gelo; perdi em torneios de matemática, em competições de debate e simulações da ONU; escrevi má poesia, fiz teatro, pintura e artes plásticas de toda a espécie. Houve vezes em que o meu excesso de confiança e motivação tiveram resultados cómicos, como quando as minhas fantasias de excelência no ski aquático me fizeram aguentar dois meses durante os quais nem sequer me consegui pôr de pé (basicamente, passei um Verão inteiro a ser arrastada por um barco). Acho que a minha última tentativa foi um curso de Verão de arquitectura: uma obsessão tardia com Legos e a oportuna leitura do romance da Ayn Rand, The Fountainhead, levaram-me a suspeitar da existência de talentos arquitectónicos escondidos. Os meus professores não encontraram nenhum. Por mais vezes que falhasse, estava certa de que a próxima coisa seria a derradeira; e só o fim da infância é que acabou com a minha busca por glória.
Eu era uma criança complicada: mandona, obsessiva, egoísta e difícil de aturar. Apesar de ser mais nova, a minha irmã tinha maior facilidade em fazer amigos e, quando éramos pequenas, os nossos pais obrigavam-na a levar-me com ela para os seus programas. Ainda me lembro do olhar horrorizado de uma mãe quando descobriu as marcas dos meus dentes no chapéu branco de plástico de um dos bonecos Smurf da filha (eu sabia que não era um marshmallow, mas parecia mesmo um). O meu génio podia ser falso, mas a minha estranheza não era.
Já tinha lido livros suficientes para perceber que «Génio» é um esquema de «lavagem de personalidade», e suspeito que a minha convicção de que o possuía era sustentada por esta ideia: se eu fosse um prodígio, as outras pessoas fariam fila para me ajudar, da maneira que eu quisesse, e de repente o meu «mau» feitio passaria a ser visto como excentricidade fascinante.
Há não muito tempo, uma pessoa disse-me com desdém que eu era «malcriada e ignorante». Por experiência, sei que, noutros contextos, pessoas como esta costumam aceitar e aplaudir as minhas «idiossincrasias». O que agora consigo reconhecer, e que não conseguia em criança, é o pouco que separa estas duas reacções.
Admiramos as pessoas que insistem em ser corajosas e independentes, a não ser quando as culpamos de serem egoístas e narcisistas. Da mesma maneira que existe uma palavra positiva para classificar as pessoas que seguem as regras — «obedientes» — mas também uma palavra negativa, para quando não gostamos disso: «conformistas». A linha que separa a obediência do conformismo é muitas vezes ténue e, no entanto, o peso que estas palavras têm é muitíssimo diferente. Isto cria uma ilusão verbal: porque temos de escolher uma palavra, corremos o risco de exagerar — especialmente para nós próprios — a certeza que temos relativamente ao lado da linha em que pomos essa pessoa. O fosso ético que separa o «apoio» do círculo de xadrez de Beth da «conivência» do círculo de filosofia do Génio é mais pequeno do que achamos.
Se as minhas idiossincrasias vos incomodam de alguma maneira, se estas vos deixam irritados ou interferem com a vossa vida, são vocês que têm alguma coisa contra mim por ser tão egoísta, ou sou eu que deveria ter alguma coisa contra vocês, por serem tão tacanhos? A melhor coisa de se ser estranho é que se aprende que pode não existir resposta a esta pergunta — aprendemos que nem sempre é possível localizar a «verdadeira vítima».
A pior coisa de se ser estranho é a solidão. A solidão não nasce só, ou sequer, maioritariamente da rejeição. Isto era o que eu ingenuamente pensava quando era criança e por isso é que achava que a tolerância que me seria concedida por ser um «génio» me faria feliz. Quando o interruptor muda para «corajosa e independente» e as regras deixam de ser tão duras, não quer dizer que se fique magicamente rodeado de pessoas com as quais partilhamos uma verdadeira ligação. Uma verdadeira ligação implica uma comunidade ética e uma comunidade ética implica um conjunto de regras que é partilhado — e não a isenção destas.
O problema da tolerância é que esta nunca foi suposta ser um fim em si mesmo. A tolerância e a flexibilidade servem como compensações pela rejeição; são maneiras de lidar com o primeiro embate com a diferença. Se algumas pessoas sentem como arbitrários, coercivos ou simplesmente confusos — e sim, alguns de nós são assim — as normas e os hábitos que para outros são fáceis ou naturais de seguir, a solução não é deixarem-nos fazer o que quisermos. Isto não é bondade, é apenas uma outra forma de ostracismo. Pessoas como nós não querem ficar por sua conta. Não queremos que nos deixem sozinhos. Ninguém quer ficar sozinho.
O problema é que qualquer gesto que vá além da tolerância será frustrante e desagradável porque somos, de facto, pessoas difíceis de suportar. Estas tentativas irão revelar a questão de fundo, que nada tem a ver com más intenções nem com más pessoas que precisam de ser corrigidas. O problema que levou desde logo a resumirmo-nos à tolerância não resulta de uma tacanhez que possa eventualmente ser «desligada», nem de uma obediência que possa ser «ligada». Existe uma coisa, um obstáculo, que é de facto decisiva no nosso esforço por nos relacionarmos. Certas diferenças que se constituem como obstáculos à integração de alguém numa comunidade ética não são culpa de ninguém, não se tratam de uma questão de vontade, nem existe fórmula para as resolver. É mais fácil tolerar pessoas do que admitir isto; e é mais fácil aceitar a tolerância e o apoio do que se esforçar por uma relação verdadeira. A tolerância é um ponto de equilíbrio que nasce do cansaço e de expectativas diminuídas.
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Ser um Génio é muito mais do que ser-se muito bom em alguma coisa. É característico do Génio permitir esta hiper-tolerância — e completo isolamento — que vem com ser-se posto num pedestal e estar-se rodeado por um grupo de súbditos prestáveis. É costume do Génio, tal como Beth, não ter amigos verdadeiros. Quem vê a série não nota que o fascínio que sente por Beth contorna a questão sobre que tipo de amiga esta seria. Aquilo que as pessoas admiram é precisamente o facto de esta se conseguir manter isolada no topo, como se a falta de amigos fosse uma espécie de super-poder. Mas será que existe alguém assim tão alienado, que prospera quando é «libertado» das expectativas e convenções que a pertença a uma comunidade implica e que são exigidas aos outros?
É revelador perceber que «génio» é virtualmente um sinónimo de «génio atormentado». É também difícil imaginar uma história como a de Beth sem o álcool, as drogas, a profunda solidão e sentimentos auto-destrutivos. O mito reside nesta ideia do génio «atormentado» por uma qualquer luta interna que o resto das pessoas não é capaz de compreender e que, por isso, o melhor que há a fazer é sair do seu caminho. A verdadeira «tortura» é aquela que infligimos ao rotular certas pessoas como génios, em prol das nossas fantasias de independência. Os Génios são monstros criados por nós.