«Os desejos dos sentidos arrastam-nos para cá e para lá, mas, passado esse instante, o que ganhais? Remorsos de consciência e dissipação de espírito. Parte-se em alegria e muitas vezes regressa-se em tristeza, e os prazeres da noite entristecem a manhã. Assim, a alegria dos sentidos adula-vos pela manhã, mas acaba por vos ferir e matar.»
Imitação de Cristo, Livro I, capítulo XVIII
I
Entre a falsa alegria e o esquecimento, Virginal, entre o fumo do inebriamento, Regressa o doce e triste aroma do lilás.
Henri de Régnier
Eis que, por fim, a libertação está próxima. Fui por certo desastrada, não soube disparar, quase não acertava em mim própria. Teria, por certo, sido melhor morrer à primeira, mas não foi possível extrair a bala e começaram os problemas com o meu coração. Já não há-de demorar muito. Oito dias, todavia! Ainda pode durar oito dias! Durante os quais não poderei fazer outra coisa senão tentar reconstituir a terrível cadeia dos acontecimentos. Se não estivesse tão fraca, se tivesse força de vontade suficiente para me levantar, para sair, gostaria de morrer em Les Oublis, no parque onde passei todos os meus verões até aos quinze anos. Nenhum outro lugar está tão pleno de minha mãe, de tal modo a sua presença o impregnou, e ainda mais a sua ausência. Para aquele que ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais viva, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças?
Minha mãe levava-me para Les Oublis no fim de Abril, partia passados dois dias, passava lá outros dois a meio de Maio e regressava para me levar de volta na última semana de Junho. As suas visitas tão breves eram a coisa mais doce e a mais cruel. Durante esses dois dias, cobria-me de mimos, com os quais normalmente, para me enrijecer e acalmar a minha sensibilidade doentia, se mostrava muito avara. Nas duas noites que passava em Les Oublis, ia dar-me as boas-noites à cama, um velho hábito que entretanto deixara porque me dava muito prazer e também muita dor, pois não adormecia de tanto a chamar de volta para me dar novamente as boas-noites, até já não me atrever a fazê-lo, embora sentisse ainda mais essa necessidade apaixonada, inventando sempre novos pretextos: o meu travesseiro estava tão quente que tinha de ser virado, os meus pés estavam gelados e só ela os podia aquecer com as suas mãos... Muitos momentos doces eram ainda mais doces porque eu sentia que era neles que minha mãe se mostrava realmente ela mesma e que a sua frieza habitual lhe devia ser muito penosa. No dia em que se ia embora, dia de desespero em que eu me agarrava ao seu vestido até chegar ao comboio, implorando-lhe que me levasse para Paris com ela, era-me fácil destrinçar a verdade por entre as simulações, a tristeza que se infiltrava nas suas repreensões animadas e exasperadas com a minha tristeza «estúpida, ridícula», que ela queria ensinar-me a dominar, mas que partilhava. Ainda sou capaz de sentir a minha emoção num desses dias de partida (apenas essa emoção intacta, não alterada pela dolorosa recordação de agora), em que fiz a doce descoberta da sua ternura, tão semelhante e tão superior à minha. Como todas as descobertas, ela fora pressentida, adivinhada, mas os factos pareciam tantas vezes contradizê-la! As minhas impressões mais doces são aquelas dos anos em que ela voltou a Les Oublis, de regresso porque eu estava doente. Não só me fez mais uma visita, com a qual eu não contava, como me revelou uma maior doçura e ternura, demonstrando-as demoradamente sem ocultação nem constrangimento. Mesmo naqueles tempos em que ainda não eram adoçadas e suavizadas pela ideia de que um dia me haviam de fazer falta, aquela doçura e aquela ternura representavam tanto para mim que o encanto da convalescença assumia uma tristeza mortal: aproximava-se o dia em que eu estaria suficientemente restabelecida para que minha mãe pudesse voltar a partir, e até lá eu já não estaria tão doente que a impedisse de retomar a severidade, a justiça sem indulgência de antes.
Um dia, os tios com quem eu morava em Les Oublis tinham-me escondido que minha mãe estava para chegar: um primo em segundo grau aparecera para passar umas horascomigo e eu não lhe daria a merecida atenção, tal seria a ânsia radiante daquela espera. Este secretismo foi talvez a primeira das circunstâncias que, alheias à minha vontade, se tornaram cúmplices de todas as inclinações para o mal que, como todas as crianças da minha idade, e não mais do que elas, eu tinha dentro de mim. O primo em questão, que tinha quinze anos (eu tinha catorze), já era muito depravado e ensinou-me coisas que logo me fizeram estremecer de remorso e de prazer. Escutando-o, deixando as suas mãos acariciarem as minhas, eu sentia uma alegria envenenada na sua própria fonte; não demorei a encontrar forças para o deixar, e fugi para o parque com uma ânsia desvairada de minha mãe, que eu sabia, infelizmente, estar em Paris, o que não me impediu de a chamar por tudo o que era caminho. De repente, ao passar por um caramanchão, vi-a num banco, a sorrir de braços abertos. Ela levantou o véu para me beijar e corri ao encontro das suas faces, desfeita em lágrimas; chorei durante muito tempo enquanto lhe contava todas aquelas coisas feias que só a ignorância da minha idade me permitia repetir, e ela soube ouvi-las divinamente, sem que as compreendesse, reduzindo-lhes a importância com uma bondade que aliviava o peso da minha consciência. Esse peso ia-se tornando cada vez mais leve; a minha alma, esmagada e humilhada, ficava cada vez mais leve e poderosa, transbordava, toda eu era alma. Uma doçura divina emanava de minha mãe e da minha inocência recuperada. Senti então nas minhas narinas um odor com tanto de puro como de fresco. Vinha de um lilás, no qual um ramo escondido pela sombrinha de minha mãe já estava em flor e que, invisível, espalhava o seu perfume. No alto das árvores, os pássaros cantavam a plenos pulmões. Mais alto ainda, por entre as copas verdes, o céu era de um azul tão profundo que quase parecia a entrada de um céu onde se poderia subir sem fim. Beijei minha mãe. Nunca reencontrei a doçura daquele beijo. Ela partiu no dia seguinte e essa partida foi mais cruel do que todas as que a haviam precedido. Tendo pecado uma vez, parecia-me ter sido abandonada, não só pela alegria, como pela força e pelo amparo que me eram necessários.
Todas estas separações me preparavam, quer o quisesse quer não, para o que irremediavelmente havia de chegar um dia, embora nunca naquela altura eu levasse a sério a possibilidade de sobreviver a minha mãe. Estava decidida a matar-me em menos de um minuto após a sua morte. Mais tarde, a ausência ensinou-me lições ainda mais amargas: que nos acostumamos à ausência, que o maior apoucamento de nós mesmos, o tormento mais humilhante, é sentirmos que a ausência já não nos atormenta. Todavia, estas lições seriam refutadas mais tarde. Penso agora, especialmente, no jardinzinho onde tomava com minha mãe o pequeno-almoço entre inúmeros amores-perfeitos. Estes sempre me pareciam um pouco tristes, graves como brasões, mas macios e aveludados, muitos deles malva, por vezes violeta, quase pretos, com graciosos e misteriosos desenhos amarelos, alguns de uma inocência toda ela branca e frágil. Colho-os agora todos na minha memória, esses amores-perfeitos, a sua tristeza acrescida por ter sido entendida, a doçura do seu aveludado perdida para sempre.
II
Como pôde toda esta água fresca de lembranças jorrar de novo e fluir na minha alma impura de hoje sem se sujar? Que virtude possui este odor matinal de lilás que lhe permite atravessar tantos vapores fétidos sem se misturar e enfraquecer? Ai! A minha alma de catorze anos desperta, não só em mim, mas em simultâneo longe de mim, fora de mim. Sei que já não é a minha alma e que de mim já não depende que o volte a ser. Todavia, nunca pensei que chegasse o dia em que eu havia de a lamentar. Ela não era senão pura e eu tinha de a tornar forte e capaz das mais nobres tarefas no futuro. Em Les Oublis, depois de ter estado com minha mãe à beira do lago cheio de lampejos de sol e de peixes, durante as horas quentes do dia, ou em passeios matinais e vespertinos com ela nos campos, muitas vezes sonhava confiantemente um futuro, cuja beleza nunca estava à altura do amor dela, nem do meu desejo de lhe agradar, e as forças, se não da vontade, pelo menos da imaginação e do sentimento, que se agitavam em mim, convocavam tumultuosamente o destino onde seriam concretizadas e batiam repetidamente na parede do meu coração como se o quisessem abrir e sair de mim, para a vida. Se, então, eu saltava com todas as minhas forças, se beijava minha mãe mil vezes, correndo bem à frente como um cachorrinho ou deixando-me ficar indefinidamente para trás a colher papoilas e centáureas, que depois lhe levava com gritinhos de entusiasmo, era menos pela alegria do passeio em si e daquelas florzinhas do que para extravasar a felicidade de sentir em mim toda aquela vida prestes a jorrar, a estender-se até ao infinito, em perspectivas mais amplas e encantadoras do que o horizonte distante dos bosques e do céu que eu ansiava alcançar com um único salto. Ramos de centáureas, de trevos e de papoilas, se eu vos levava comigo com tanto enlevo, de olhos brilhantes, toda eu a palpitar, se me faziam rir e chorar, era porque vos juntava com todas as minhas esperanças de então, que agora, como vós, secaram, apodreceram e, sem terem florescido como vós, regressaram ao pó.
O que deixava minha mãe desolada era a minha falta de vontade. Eu fazia tudo no impulso do momento. Desde que esse impulso me viesse da mente ou do coração, a minha vida, embora não fosse perfeita, não era realmente má. A realização de todos os meus belos projectos de trabalho, de calma, de reflexão, era o que mais nos preocupava, a minha mãe e a mim, porque sentíamos, ela com mais clareza, eu confusamente mas com muita intensidade, que essa realização seria apenas uma imagem projectada na minha vida, a imagem da criação, por mim e em mim, da vontade que ela concebera e alimentara.
Mas eu deixava-a sempre para o dia seguinte. Dava-me tempo, por vezes pesava-me vê-lo passar, mas ainda era tanto o tempo que tinha pela frente! No entanto, sentia-me um pouco receosa e, vagamente, percebia que o hábito de prescindir da vontade começava a pesar-me cada vez mais com o passar dos anos, duvidando tristemente que as coisas haviam de mudar de repente, e que eu não devia contar com um milagre que nada me teria custado para transformar a minha vida e criar a minha vontade. Querer ter força de vontade não basta. Teria sido preciso exactamente aquilo que sem força de vontade eu não tinha: querer.
III
E o vento furibundo da concupiscência
Faz-vos estalar a carne como uma velha bandeira.
Baudelaire
Durante o meu décimo sexto ano, passei por uma crise que me deixou enfermiça. Para me distrair, a minha família apresentou-me à sociedade. Os jovens ganharam o hábito de me visitar. Um deles era perverso e malvado. Tinha maneiras gentis e arrojadas. Foi por ele que me apaixonei. Meus pais ficaram a saber, mas não interferiram para não me fazerem sofrer. Passando todo o meu tempo a pensar nele quando não o via, acabei por me rebaixar ao imitá-lo tanto quanto me era possível. Ele levou-me quase que de surpresa a portar-me mal e depois acostumou-me a despertar em mim maus pensamentos, aos quais não tinha vontade de me opor, sendo a força de vontade a única capaz de os rechaçar para as trevas infernais de onde saíam. Quando o amor acabou, o hábito tomou-lhe o lugar e não havia falta de jovens imorais para o explorar. Cúmplices das minhas faltas, também o justificavam perante a minha consciência. A princípio, tive remorsos atrozes, fiz confissões que não foram compreendidas. Estes meus amigos persuadiram-me a não falar do assunto com meu pai. Lentamente, convenceram-me de que todas as raparigas faziam o mesmo e os pais apenas fingiam ignorá-lo. As mentiras que eu constantemente me obrigava a dizer, a minha imaginação logo as coloria com a aparência de um silêncio que devia ser mantido a respeito de uma inevitável necessidade. Naquela altura, eu realmente já não vivia; ainda sonhava, ainda pensava, ainda sentia.
Para afastar e expulsar todos aqueles maus desejos, comecei a frequentar bastante a sociedade. Os seus prazeres insensibilizadores acostumaram-me a viver em perpétua companhia, e perdi com o apreço pela solidão o segredo das alegrias que a Natureza e a arte me haviam dado até então. Nunca assisti a tantos concertos como durante aqueles anos. Nunca, tão absorvida que estava pelo desejo de ser admirada num camarote elegante, senti menos profundamente a música. Eu ouvia e não escutava nada. Se por acaso escutava, já deixara de ver tudo o que a música pode revelar. Também os meus passeios eram a modos que tingidos de esterilidade. As coisas que antes bastavam para me fazer feliz durante todo o dia – um pouco de sol que amarelava a erva, o perfume que as folhas molhadas libertavam com as últimas gotas de chuva – tinham como eu perdido a sua doçura e alegria. Os bosques, o céu, a água, tudo parecia afastar-se de mim e se, sozinha com eles cara-a-cara, eu os interrogava ansiosamente, já não me murmuravam as vagas respostas que antes me deleitavam. Os hóspedes divinos anunciados pelas vozes das águas, da folhagem e do céu apenas se dignam visitar os corações que, habitando em si mesmos, se purificaram.
Foi então que em busca de um remédio oposto e porque não tinha coragem de querer o verdadeiro, tão próximo e, infelizmente, tão longe de mim, em mim, me entreguei novamente a prazeres culposos, pensando assim reavivar a chama extinta pela vida em sociedade. Foi em vão. Refreada pelo prazer de agradar, continuava a adiar de dia para dia a decisão final, a escolha, o acto verdadeiramente livre, a opção pela solidão. Não renunciava a nenhum vício em favor de outro. Eu unia-os. Que digo eu? Cada um deles se encarregava de desfazer todos os obstáculos de pensamento e sentimento que pudessem impedir outro, parecendo até que o invocava. Frequentava a sociedade para me acalmar depois de uma falta, e cometia outra assim que me acalmava. Foi neste momento terrível, após a perda da inocência e antes do remorso de hoje, neste momento em que menos valor tinha do que em todos os momentos da minha vida, que fui a mais apreciada por todos. Até então era tida como uma menina tonta e pretensiosa; agora, pelo contrário, as cinzas da minha imaginação estavam ao gosto da sociedade, que se deliciava nelas. Ainda que cometesse o maior crime em relação a minha mãe, era vista como uma filha modelo graças aos meus modos ternos e respeitosos para com ela. Depois do suicídio dos meus pensamentos, admiravam a minha inteligência e perdiam-se pela minha mente. A minha imaginação ressequida, a minha sensibilidade dessecada, eram suficientes para a sede daqueles que mais ansiavam por uma vida espiritual, a sua sede tão falsa e mendaz como a fonte onde criam dessedentá-la! Mas ninguém suspeitava do crime secreto da minha vida e todos me viam como a ideal. Quantos pais disseram então a minha mãe que, se a minha posição social não fosse tão elevada, e se eles pudessem atrever-se a pensar em mim, não teriam querido outra mulher para o seu filho! No fundo da minha consciência obliterada, porém, eu sentia uma vergonha desesperada perante aqueles elogios imerecidos; mas ela nunca alcançava a superfície, e eu descera tão baixo que tinha a indignidade de os contar entre gargalhadas aos cúmplices dos meus crimes.
IV
«A alguém que perdeu o que o tempo não traz
Nunca mais, nunca mais!»
Baudelaire
No Inverno do meu vigésimo ano, a saúde de minha mãe, que nunca fora vigorosa, foi muito abalada. Fiquei a saber que seu coração estava doente, ainda que sem gravidade, mas que devia evitar quaisquer contrariedades. Um dos meus tios disse-me que minha mãe queria que eu me casasse. Apresentava-se-me um dever específico, importante. Eu poderia provar a minha mãe o quanto lhe queria. Aceitei o primeiro pedido que ela me transmitiu com a sua aprovação, mudando assim de vida por necessidade e não por vontade. O meu noivo era exactamente o género de jovem que, por sua extrema inteligência, gentileza e energia, poderia ter a melhor influência sobre mim. Além disso, estava decidido a viver connosco. Eu não teria de me separar de minha mãe, o que para mim teria sido o mais cruel castigo.
Então, tive a coragem de contar todas as minhas faltas ao meu confessor. Perguntei-lhe se devia fazer igual confissão ao meu noivo. Ele teve a compaixão de me dissuadir, mas fez-me jurar que não voltaria a cair nos meus erros e deu-me a absolvição. As flores serôdias que a alegria fez florescer no meu coração, que eu pensava para sempre estéril, deram fruto. A graça de Deus, a graça da juventude — em que vemos tantas feridas sararem graças ao viço desta idade — curou-me.
Se, como disse São Agostinho, é mais difícil tornar-se casto do que tê-lo sido, então, conheci uma virtude difícil. Ninguém suspeitava que eu era agora uma pessoa infinitamente melhor do que antes e, sem saber que ela se regenerara, todos os dias minha mãe beijava-me a testa que nunca deixara de supor pura. Além disso, fui injustamente censurada pela minha atitude ausente, pelo meu silêncio e pela minha melancolia em sociedade. Mas eu não me zangava: o segredo que existia entre mim e a minha consciência satisfeita dava-me imenso prazer. A convalescença da minha alma (que agora me sorria constantemente com um rosto como o de minha mãe e me fitava com um olhar de terna censura através de lágrimas que iam secando) revestia-se de um encanto e langor infinitos. Sim, a minha alma renascia para a vida. Eu não compreendia como a podia ter maltratado, feito sofrer, quase matado. E agradecia efusivamente a Deus por tê-la salvado a tempo.
Era a harmonia dessa profunda e pura alegria com a fresca serenidade do céu que eu sentia na noite em que tudo se consumou. A ausência do meu noivo, que fora passar dois dias com a irmã, a presença ao jantar do jovem que tinha a maior responsabilidade nos meus erros do passado, não projectavam naquela noite límpida de Maio a menor tristeza. Não havia no céu uma nuvem que se reflectisse exactamente no meu coração. Minha mãe, todavia, como se houvesse entre ela e minha alma uma solidariedade misteriosa, não obstante um total desconhecimento das minhas faltas, estava praticamente curada. «Deve ser tratada com cuidado durante duas semanas», dissera o médico, «e depois disso não haverá risco de uma recaída!» Estas palavras foram para mim a promessa de um futuro de felicidade cuja doçura me fazia desfazer em lágrimas. Minha mãe tinha naquela noite um vestido mais elegante do que de costume e, pela primeira vez desde a morte de meu pai, há já dez anos, juntara um pouco de malva ao habitual vestido preto. Muito embaraçada por se vestir como quando era mais nova, estava triste e feliz por ter violado a sua dor e luto para me agradar e celebrar a minha alegria. Levei-lhe ao corpete um cravo cor-de-rosa, que ela primeiro afastou, depois prendeu, porque vinha de mim, com uma mão algo hesitante e constrangida. Quando nos íamos sentar à mesa, puxei-a para junto da janela e beijei-lhe com paixão o rosto delicadamente recomposto dos sofrimentos passados. Enganei-me ao dizer que nunca tinha reencontrado o doce beijo de Les Oublis. O beijo daquela noite foi mais doce do que qualquer outro. Ou melhor, foi o próprio beijo de Les Oublis que, evocado pelo fascínio daquele momento, deslizou suavemente das profundezas do passado e foi poisar entre as faces ainda um pouco pálidas de minha mãe e os meus lábios.
Brindámos ao meu casamento próximo. Eu nunca bebia nada senão água porque o vinho me desassossegava os nervos. Meu tio disse que, num momento como aquele, eu podia abrir uma excepção. Ainda vejo perfeitamente a sua cara alegre ao dizer estas palavras estúpidas... Meu Deus! Meu Deus! Confessei tudo com tanta calma, serei forçada a parar por aqui? Já não vejo nada! Sim... meu tio disse que eu podia abrir uma excepção numa ocasião como aquela. Olhava para mim com um sorriso quando o disse, e eu bebi rapidamente antes de olhar para minha mãe, com receio de que ela me impedisse. Ela disse brandamente: «Nunca se deve dar espaço ao mal, por mais pequeno que seja.» Mas o vinho de Champanhe estava tão fresco que bebi mais duas taças. A minha cabeça ficou muito pesada; eu tanto precisava de descansar como de acalmar os nervos. Levantámo-nos da mesa: Jacques aproximou-se de mim e, olhando-me fixamente, disse:
— Porque não vem comigo? Gostaria de lhe mostrar unsversos que escrevi.
Os seus bonitos olhos brilhavam suavemente acima daquelas faces frescas; revirou lentamente os bigodes com os dedos. Percebi que estava perdida e não tinha forças para resistir. Trémula, respondi:
— Sim, gostaria de os ver.
Foi ao dizer estas palavras, antes mesmo talvez, ao beber a segunda taça de champanhe, que cometi o acto verdadeiramente responsável, o acto abominável. Depois, limitei-me a deixar-me ir. Tínhamos fechado ambas as portas à chave e ele, com o seu hálito nas minhas faces, abraçou-me, com as mãos a percorrer-me o corpo. Então, cada vez mais dominada pelo prazer, senti despertar no fundo do meu coração uma tristeza e desolação infinitas; parecia-me que fazia chorar a alma de minha mãe, a alma do meu anjo da guarda, a alma de Deus. Nunca fora capaz de ler sem um horror tremendo as história das torturas que os vilões infligiam aos animais, às suas próprias mulheres, aos seus filhos; vagamente, parecia-me agora que, em todos os actos lascivos e culposos, existe tanta ferocidade no corpo que se entrega ao prazer quantas as boas intenções, quantos os anjos puros que em nós choram e são martirizados.
Os meus tios não tardariam a terminar o seu jogo de cartas e estariam de volta. Tínhamos de nos antecipar; eu não voltaria a pecar, era a última vez... Então, acima da lareira, vi-me reflectida no espelho. Toda aquela vaga angústia da minha alma não estava patente no meu rosto, que todo ele deixava transparecer, desde os olhos brilhantes às faces coradas e à boca oferecida, uma alegria sensual, estúpida e brutal. Pensei então no horror de quem, tendo acabado de me ver beijar minha mãe com uma ternura melancólica, me visse assim transfigurada como um animal. Mas logo no espelho a boca de Jacques, ávida sob o seu bigode, procurou o meu rosto. Abalada no mais profundo de mim mesma, aproximava a minha cabeça da dele quando vi à minha frente (sim, estou a descrever o que aconteceu – oiçam-me, porque o posso dizer) na varanda, diante da janela, vi minha mãe a olhar para mim, atónita. Não sei se gritou, não ouvi nada; mas ela tombou para trás e ali ficou, com a cabeça presa entre dois balaústres da varanda...
Esta não é a última vez que vos conto isto; já vos disse: quase falhei, embora tivesse feito boa pontaria, o tiro saiu-me mal. Todavia, não foi possível extrair a bala e os problemas com o meu coração começaram. Mas pode ser que ainda fique assim mais oito dias e não serei capaz de deixar de reconsiderar o início e de ver o fim. Preferia que minha mãe me tivesse visto cometer outros crimes, e aquele também, mas que não tivesse visto aquela expressão de felicidade que o meu rosto tinha no espelho. Não, ela não viu... foi uma coincidência... foi atingida por uma apoplexia um minuto antes de me ver... Ela não viu... não pode ser! Deus, que tudo sabia, não o teria permitido.