«O modo de viver do poeta deveria ser tão simples que as influências comuns o pudessem deliciar. A sua alegria deveria ser o dom da luz solar; o ar dever-lhe-ia bastar para respirar, e a água deveria ser o suficiente para o embriagar.»
Emerson
I
Tulherias
Esta manhã, no Jardim das Tulherias, o sol foi-se deixando dormir em cada um dos degraus de pedra, como um adolescente loiro cujo sono leve logo é interrompido pela passagem de uma sombra. Jovens rebentos verdejam contra as paredes do velho palácio. O bafo do vento encantado mistura com o perfume do passado o fresco aroma dos lilás. As estátuas que nas nossas praças públicas são tão assustadoras como loucos, sonham aqui em caramanchões como sábios sob a vegetação luminosa que lhes protege a brancura. As bacias no fundo das quais o céu azul se estende brilham como olhares. Pode-se ver do terraço à borda-d’água, saindo do velho bairro do Quai d’Orsay, na outra margem e como que noutro século, um hussardo que passa. Desvairadas, as corriolas transbordam de vasos coroados de gerânios. Ardente de sol, o heliotrópio queima os seus perfumes. Diante do Louvre, as malvas-rosas erguem-se quais mastros, nobres e graciosas como colunas, corando como donzelas. Irisados de sol e suspirando de amor, os repuxos elevam-se para o céu. No fundo do Terraço, um cavaleiro de pedra que se lança num galope sem sair do mesmo sítio, os seus lábios colados a uma alegre trombeta, encarna todo o ardor da Primavera.
Mas o céu escureceu: vai chover. Os tanques, onde nenhum azul já brilha, parecem olhos vazios de olhares ou vasos cheios de lágrimas. O repuxo absurdo, fustigado pela brisa, eleva cada vez mais depressa para o céu o seu hino agora irónico. A inútil doçura dos lilases é de uma tristeza infinita. E ali ao fundo, de freio caído, os seus pés de mármore incitando com um movimento imóvel e furioso o galope fixo e vertiginoso do seu cavalo, o inconsciente cavaleiro toca sem fim a sua trombeta contra o céu negro.
II
Versalhes
«Um canal que faz sonhar os maiores tagarelas assim que dele se aproximam e onde sou sempre feliz, quer esteja alegre, quer esteja triste.»
(Carta de Balzac para o Sr. Lamothe-Aigron)
Esgotado, já nem sequer aquecido pelo sol escasso, o Outono perde uma a uma as suas últimas cores. O ardor extremo da sua folhagem, tão inflamada que toda a tarde e a própria manhã transmitiam a gloriosa ilusão do pôr-do-sol, extinguiu-se. Apenas as dálias, calêndulas e crisântemos amarelos, roxos, brancos e cor-de-rosa resplandecem ainda no rosto escuro e desolado do Outono. Às seis da tarde, quando se passa pelas Tulherias no seu cinzento uniforme e nu sob o céu igualmente sombrio, onde árvores negras desenham, ramo a ramo, o seu intenso e subtil desespero, vemos de súbito um canteiro destas flores outonais que se ilumina generosamente na escuridão, infligindo uma voluptuosa violência nos nossos olhos acostumados àqueles horizontes em cinzas. As horas da manhã são mais doces. O sol ainda brilha por vezes, e, quando deixo o terraço à borda d’água, ainda consigo ver ao longo da grande escadaria de pedra a minha sombra, que desce um a um os degraus que se estendem à minha frente. Depois de tantos outros(*), eu não gostaria de pronunciar o teu nome, Versalhes, nome grandioso, enferrujado e doce, cemitério real de folhagem, de vastas águas e mármores, um lugar verdadeiramente aristocrático e desmoralizante, onde nem sequer nos incomoda o remorso de a vida de tantos trabalhadores apenas ter servido para refinar e ampliar menos as alegrias de outros tempos do que a melancolia do nosso. Não gostaria de pronunciar o teu nome depois de tantos outros, e, no entanto, quantas vezes da taça enrubescida dos teus tanques de mármore rosa bebi até às borras, bebi até ao delírio a inebriante e amarga doçura destes últimos dias de Outono. Ao longe, a terra misturada com folhas descoradas e folhas pútridas assemelhava-se a um mosaico manchado de amarelo e violeta. Passando perto do Hameau de la Reine, com a gola do meu sobretudo levantada contra o vento, ouvia o arrulhar de pombas. Por todo o lado, o cheiro do buxo, como no Domingo de Ramos, inebriava. Como fui eu ainda capaz de colher um pequeno ramo de Primavera nesses jardins saqueados pelo Outono? Na água, o vento agitava as pétalas de uma rosa trémula. Nesta imensa desfolhada do Trianon, apenas o arco de uma pequena ponte de gerânios brancos erguia acima da água gelada as suas flores vergadas ao de leve pelo vento. Sem dúvida, desde que respirei a brisa do mar e o sal nos caminhos trilhados da Normandia, desde que vi cintilar o mar por entre os ramos dos rododendros em flor, sei tudo o que a proximidade da água pode acrescentar às graças vegetais. Mas quanta pureza virginal neste doce gerânio branco, debruçado com graciosa contenção sobre as águas frias entre as suas margens de folhas mortas. Ó velhice argêntea de bosques ainda verdes, de ramos chorosos, lagos e tanques que um gesto piedoso depositou aqui e ali, como urnas oferecidas à melancolia das árvores!
(*) E em especial depois dos Srs. Maurice Barrès, Henri de Régnier, Robert de Montesquiou-Fezensac.
XXVI
Debaixo das árvores
Nada temos a recear e antes muito a aprender com essa tribo pacífica e vigorosa das árvores que constantemente produzem para nós essências tónicas, bálsamos calmantes e em cuja companhia graciosa passamos tantas horas frescas, silenciosas e confortáveis. Nessas tardes ardentes em que, de tão excessiva, a luz escapa ao nosso olhar, desçamos a um desses «recônditos» normandos, dos quais se elevam com flexibilidade as faias altas e densas cuja folhagem, qual praia estreita, mas resistente, afasta aquele oceano de luz, retendo apenas algumas gotas que tilintam melodiosamente no silêncio sob as árvores. Ao contrário do que acontece à beira do mar, nas planícies, nas montanhas, o nosso espírito não conhece aqui a alegria de se estender sobre o mundo, mas sim a felicidade de se isolar dele; e, por todos os lados limitado por troncos que não podem ser arrancados, eleva-se nas alturas como as árvores. Deitados de costas, com a cabeça poisada nas folhas secas e profundamente repousados, seguimos a alegre agilidade do nosso espírito que ascende, sem agitar as frondes, às ramagens mais altas onde se acomoda na orla do céu suave, perto de um pássaro que canta. Aqui e ali, um pouco de sol estagna aos pés das árvores, que por vezes nele mergulham sonhadoramente e assim bronzeiam as folhas extremas dos seus galhos. Descontraído e inerte, tudo o resto se cala numa felicidade de sombra. De pé e alongando-se na vasta oferenda dos seus ramos, mas repousadas e tranquilas, as árvores murmuram graciosas na sua postura estranha e natural, convidando-nos a participar numa vida tão antiga e tão nova, tão diferente da nossa e da qual parece ser a reserva obscura e inesgotável.
Por um instante, um vento ligeiro perturba a sua imobilidade escura e cintilante, e as árvores estremecem ao de leve, equilibrando a luz nas suas copas e revolvendo as sombras a seus pés.
Petit-Abbeville (Dieppe), Agosto de 1895
XXIX
Marinha
Quanto às palavras cujo significado perdi, talvez mas devesse fazer repetir por todas as coisas que há tanto tempo vêm dar a mim, seguindo um caminho há muitos anos negligenciado, mas que pode ser retomado e que, tenho essa fé, não está fechado para sempre. Teria de regressar à Normandia, sem grandes esforços, ir simplesmente para junto do mar. Ou melhor, seguiria pelos caminhos arborizados onde de vez em quando ele se torna visível e onde a brisa mistura o cheiro do sal, das folhas húmidas e do leite. Não pediria nada a nenhuma destas coisas da infância. São generosas com a criança que viram nascer; de motu proprio lhe haviam de relembrar as coisas esquecidas. Tudo, e acima de tudo a sua fragrância, me havia de anunciar o mar, mas eu ainda não o teria visto. Escutá-lo-ia debilmente. Seguiria um caminho de espinheiros, em tempos bem conhecido, com ternura mas também com receio de que uma falha repentina numa sebe me desse a ver o amigo invisível mas presente, esse louco que sempre se lamenta, qual velho monarca melancólico — o mar. De repente, daria com ele: seria num daqueles dias de sonolência sob um sol ofuscante, em que o mar reflecte o céu tão azul como ele, só que mais pálido. Velas brancas como borboletas estariam poisadas na água imóvel, sem se quererem mexer, como que desfalecidas de calor. Ou então o mar estaria picado, amarelo ao sol como um vasto campo de lama, com grandes ondas que, vista de tão longe, pareceriam imóveis, coroadas de uma neve deslumbrante.