(Le Figaro, 1 de Fevereiro de 1907)
Quando, há alguns meses, o Sr. van Blarenberghe morreu, lembrei-me de que a minha mãe conhecia a sua mulher. Desde a morte dos meus pais, sou (por motivos que seria despropositado precisar aqui) menos eu mesmo e mais o seu filho. Sem me afastar dos meus amigos, com maior prazer me volto para os seus. E as cartas que agora escrevo são, na sua maioria, aquelas que acredito que escreveriam, aquelas que já não podem escrever e que escrevo eu em seu lugar, felicitações, condolências, sobretudo a amigos que frequentemente mal conheço. Assim, quando a Sra. van Blarenberghe perdeu o seu marido, quis fazer-lhe chegar um testemunho da tristeza que os meus pais teriam sentido. Recordei-me de que tinha, há já uns anos, jantado algumas vezes, em casa de amigos que tínhamos em comum, com o seu filho. Foi a ele que escrevi, por assim dizer mais do que em meu nome, em nome dos meus pais já desaparecidos. Recebi como resposta a encantadora carta que se segue, impregnada de um enorme amor filial. Pensei que um tal testemunho, com o significado que recebeu do drama que tão rapidamente o seguiu, sobretudo com o significado que este lhe confere, deveria ser tornado público. Eis a referida carta:
Les Timbrieux, via Josselin (Morbihan),
24 de Setembro de 1906
Lamento profundamente, caro senhor, não ter ainda podido agradecer-vos a simpatia que me testemunhou na minha dor. Queira desculpar-me, a dor foi tal que, a conselho dos médicos, durante quatro meses, viajei constantemente. Começo apenas agora, e a grande custo, a retomar a minha vida habitual.
Ainda que tardiamente, gostaria de vos dizer agora que fiquei extremamente sensibilizado pela fiel lembrança que guardou das nossas antigas e excelentes relações e profundamente tocado pelo sentimento que vos inspirou a falar-me, bem como à minha mãe, em nome dos seus pais, tão prematuramente desaparecidos. Pessoalmente, não tive a honra de os conhecer, excepto de forma muito breve, mas sei o quanto o meu pai admirava o vosso e sei o prazer que a minha mãe sempre tinha ao ver a Sra. Proust. Achei extremamente gentil que nos tivesse enviado, em seu nome, uma mensagem do outro mundo.
Regressarei muito em breve a Paris, e se conseguir até lá ultrapassar a necessidade de isolamento que me causou até agora o desaparecimento daquele a quem atribuía todo o interesse da minha vida, que era a fonte de toda a minha alegria, terei muito prazer em vos ir dar um aperto de mão e falar convosco do passado.
Saúdo-vos afectuosamente,
H. van Blarenberghe
Esta carta sensibilizou-me muito, tinha pena de quem sofria assim; tinha pena dele, invejava-o: tinha ainda a sua mãe para se consolar ao consolá-la. E se não pude atender às tentativas que fez para me ver, foi porque me foi materialmente impossível. Mas sobretudo esta carta tornou mais agradável a lembrança que tinha guardado dele. As boas relações a que fez alusão na sua carta foram na verdade relações mundanas bastante banais. Tive raramente a oportunidade de conversar com ele à mesa das poucas vezes em que jantámos juntos, mas a extrema distinção dos anfitriões dava-me, e ainda me dá, a garantia de que Henri van Blarenberghe, sob uma aparência pouco convencional e talvez mais representativa do meio em que vivia do que da sua própria personalidade, escondia uma natureza mais original e viva. De resto, entre as curiosas imagens da memória que o nosso cérebro, tão pequeno e tão vasto, armazena em número prodigioso, se procurar entre aquelas em que surge Henri van Blarenberghe, a imagem que me parece continuar mais nítida é sempre a de um rosto sorridente em que vejo, sorridente sobretudo do olhar que tinha singularmente elegante, a boca ainda entreaberta depois de ter dado uma réplica elegante. Simpático e algo distinto, é assim que o «revejo», como se diz com razão. Os nossos olhos têm um papel maior do que julgamos nessa exploração activa do passado a que chamamos lembrança. Se, no momento em que o seu pensamento vai buscar qualquer coisa do passado para o fixar, para o devolver por um momento à vida, observar os olhos daquele que faz um esforço para se lembrar, verá que estes se esvaziam das formas que os rodeiam e que reflectiam até há um instante. «Tem um olhar ausente, está distante», dizemos nós e ainda assim não vemos senão o inverso do fenómeno que se cumpre nesse mesmo momento no pensamento. Assim, os mais belos olhos do mundo não nos tocam mais pela sua beleza, são apenas, treslendo a expressão de Wells, «máquinas a explorar o Tempo», telescópios do invisível, que se tornam de mais longo alcance à medida que envelhecemos. Percebe-se bem, ao ver vendar-se pela lembrança o olhar, cansado de tantas adaptações a tempos tão diferentes, muitas vezes bastante distantes, o olhar enferrujado dos velhos, percebe-se bem que a sua trajectória, atravessando «a sombra dos dias» vividos, vai aterrar, alguns passos à sua frente, pelo que parece, na realidade, cinquenta ou sessenta anos para trás. Lembro-me do quanto os olhos encantadores da princesa Mathilde ganhavam uma nova beleza quando se fixavam nesta ou naquela imagem que tinham depositado na sua retina e na sua lembrança tão grandes homens, tão grandes espectáculos do início do século, e é essa mesma imagem, emanada deles, que ela via e que nós jamais veremos. Sentia sempre uma impressão sobrenatural nesses momentos em que o meu olhar encontrava o seu que, por uma linha curta e misteriosa, através de uma actividade de ressurreição, juntava o presente ao passado.
Simpático e algo distinto, dizia eu, é desta forma que revejo Henri van Blarenberghe numa das melhores imagens que a minha memória conservou dele. Mas depois de ter recebido esta carta, retoquei esta imagem na minha lembrança, ao interpretar, conferindo-lhe uma sensibilidade mais profunda, uma mentalidade menos mundana, alguns elementos do olhar ou dos traços que poderiam comportar uma descrição mais interessante e mais generosa do que aquela em que tinha ficado inicialmente. Finalmente, ao solicitar-lhe algumas informações acerca de um funcionário dos Caminhos-de-Ferro Orientais (o Sr. van Blarenberghe era presidente do Conselho de Administração) por quem um dos meus amigos se interessara, recebi dele a seguinte resposta que, escrita a 12 de Janeiro último, não me chegou, por causa de alterações na minha morada que ele ignorava, antes de 17 de Janeiro, há menos de quinze dias, menos de oito dias antes do drama:
48, Rua de la Bienfaisance,
12 de Janeiro de 1907
Caro Senhor,
Procurei informar-me junto da Companhia Oriental acerca da eventual presença nos quadros de X… e da sua possível morada. Não se descobriu nada. Se tiver a certeza do nome, aquele a quem se refere desapareceu da empresa sem deixar rasto; deve ter sido contratado de maneira bastante provisória e secundária.
Estou verdadeiramente preocupado com as notícias que me deu acerca do seu estado de saúde desde a morte prematura e cruel dos seus pais. Se vos trouxer alguma consolação, digo-vos que também tenho grandes dificuldades, fisicamente e moralmente, em regressar do abalo que me causou a morte do meu pai. É preciso manter sempre a esperança… Não sei o que me reserva o ano de 1907, mas desejo que nos traga a um e a outro quaisquer melhorias e que algures nos próximos meses nos possamos ver.
Queira aceitar, peço-lhe, os meus mais amigáveis cumprimentos,
H. Van Blarenberghe
Cinco ou seis dias depois de ter recebido esta carta, recordei-me, ao acordar, de que gostaria de lhe responder. Estava uma daquelas vagas de frio inesperadas que são como «grandes marés» do Céu, cobrindo todos os diques que as grandes cidades erguem entre nós e a natureza e que, vindo bater às nossas janelas fechadas, entram até aos nossos quartos, fazendo-nos sentir nos nossos ombros friorentos, através de um contacto vivificante, o regresso violento das forças dos elementos. Dias conturbados de bruscas mudanças barométricas, de abalos mais graves. Tanta força não trouxe, no entanto, nenhuma alegria. Lamentava-se por antecipação a neve que iria cair e as próprias coisas, como no bonito verso de André Rivoire, tinham o ar de «esperar a neve». Basta que uma depressão «avance para as Baleares», como dizem os jornais, que apenas a Jamaica comece a tremer, para, no mesmo instante em Paris, os que sofrem de enxaquecas, os reumáticos, os asmáticos, os loucos também certamente, tenham as suas crises, de tal forma os de temperamento nervoso estão unidos aos pontos mais distantes do universo por laços que muitas vezes desejariam menos estreitos. Se a influências dos astros, sobre pelo menos alguns de entre estes, vier a ser reconhecida (Framery, Pelletean, citados pelo Sr. Brissaud), a quem melhor aplicar do que a tais temperamentos os versos do poeta:
E por longos fios de seda se unem às estrelas.
Ao acordar, preparava-me para responder a Henri van Blarenberghe. Mas antes de o fazer, quis dar uma vista de olhos ao Figaro, executando esse acto abominável e voluptuoso que se chama ler o jornal e graças ao qual todos os infortúnios e cataclismos do universo ocorridos nas últimas vinte e quatro horas, as batalhas que custaram a vida a cinquenta mil homens, os crimes, as greves, as bancarrotas, os incêndios, os envenenamentos, os suicídios, os divórcios, as cruéis emoções do homem de Estado e do actor, transformados para nosso uso pessoal, para nós que não estamos envolvidos, num deleite matinal, se associam na perfeição, de forma particularmente excitante e revigorante, à ingestão prescrita de alguns goles de café com leite. Rompida com um gesto indolente a frágil banda do Figaro que por si só nos separa ainda de toda a miséria do globo e desde as primeiras notícias bombásticas em que a dor de tantos indivíduos «constitui um elemento», essas notícias bombásticas que nos daria tanto prazer comunicar imediatamente a quem não tenha ainda lido o jornal, sentimo-nos de súbito alegremente religados à existência a que, no instante em que acordávamos, nos parecera tão inútil regressar. E se por momentos alguma coisa parecida com uma lágrima humedeceu os nossos olhos satisfeitos foi ao ler uma frase como esta: «Um silêncio impressionante aperta todos os corações, os tambores batem nos campos, as tropas puxam das armas, um imenso clamor faz ressoar: “Viva Fallières!”» Eis o que nos arranca uma lágrima, uma lágrima que recusaríamos a um infortúnio próximo de nós. Maus actores que só se comovem com a dor de Hécuba ou com menos que isso, com a viagem do Presidente da República! Nessa manhã, no entanto, a leitura do Figaro não me trouxe qualquer satisfação. Tinha acabado de percorrer com um olhar deliciado as erupções vulcânicas, as crises ministeriais e as lutas entre criminosos e comecei tranquilamente a leitura de um fait divers cujo título, «Um Drama de Loucos», poderia ser particularmente adequado para estimular as energias matinais, quando de súbito vi que a vítima se tratava da Sra. van Blarenberghe e que o assassino, que se matara de seguida, se tratava do seu filho, Henri van Blarenberghe, cuja carta tinha ainda perto de mim, para lhe responder: «É preciso manter sempre a esperança… Não sei o que me reserva o ano de 1907, mas desejo que nos traga algum alívio», etc. É preciso manter sempre a esperança! Não sei o que me reserva 1907! A vida não demorou a responder-lhe. 1907 não tinha ainda deixado cair o seu primeiro mês no passado quando lhe trouxe o seu presente: arma, revólver e punhal, acompanhados, dentro de si, pela venda com que Atenas encobriu o espírito de Ajax para que ele massacrasse pastores e rebanhos nos campos dos Gregos sem saber o que fazia. «Fui eu que coloquei imagens enganadoras nos seus olhos. E ele avançou, atacando a torto e a direito enquanto julgava matar com as suas mãos os Átridas e lançando-se ora sobre um ora sobre outro. E era eu quem incitava o homem à demência furiosa e quem o encaminhava para as ciladas; e ele acaba de regressar, a testa embebida em suor e as mãos ensanguentadas.» Enquanto os loucos atacam, não sabem, passada a crise, a dor que os espera! Tekmessa, a mulher de Ajax, disse: «A sua demência acabou, o seu furor acalmou como o sopro de Noto. Mas, tendo caído em si, está agora atormentado por uma nova dor, uma vez que contemplar os seus próprios males quando ninguém os causou senão ele mesmo multiplica amargamente as dores. Desde que soube o que se passou, lamenta-se em gritos lúgubres, ele que tinha o hábito de dizer que era indigno de um homem chorar. Fica sentado, imóvel, aos berros, e tenho a certeza de que medita acerca de um qualquer negro desígnio contra si mesmo.» Mas quando o acesso lhe passou, no caso de Henri van Blarenberghe não eram rebanhos e pastores mortos que tinha diante de si. A dor não mata instantaneamente, visto que não morreu ao tomar consciência da sua mãe assassinada diante de si, visto que não morreu ao ouvir a sua mãe moribunda dizer-lhe, como a princesa Andrée em Tolstoi: «Henri, que me foste fazer! Que me foste fazer!» «Ao chegarem ao patamar que interrompe as escadas entre o primeiro e o segundo andar», diz o Matin, «eles (os empregados que neste relato, de resto talvez inexacto, aparecem sempre em fuga e a descer quatro escadas de cada vez) viram a Sra. van Blarenberghe, de rosto contorcido de terror, descer duas ou três escadas a gritar: “Henri! Henri! Que foste fazer!” De seguida a infeliz, coberta de sangue, ergueu os braços no ar e caiu de cara… Os empregados aterrorizados tornaram a descer para procurar socorro.» Pouco depois, quatro agentes que foram chamados forçaram as portas trancadas do quarto do assassino. «Além dos ferimentos que se tinha infligido com o seu punhal, tinha o lado esquerdo da cara ceifado por um tiro. O olho pendia sobre a almofada.» Aqui já não é em Ajax que pensamos. Nesse olho «que pende sobre a almofada» reconheço arrancado, no gesto mais terrível que a história do sofrimento humano nos legou, o olho do infeliz Édipo! «Édipo avança, dando grandes gritos, vai, vem, pede uma espada… Enquanto grita horrivelmente, lança-se contra as portas duplas, arranca os batentes das dobradiças, irrompe no quarto onde vê Jocasta pendurada na corda que a estrangula. E ao vê-la assim, o infeliz estremece de horror, desata a corda, o corpo da sua mãe, não estando mais suspenso, cai no chão. Então, arranca os colchetes de ouro das vestes de Jocasta, crava os seus olhos abertos, diz que estes não verão mais os males de que sofrera nem os infortúnios que tinha causado, e, praguejando, fere várias vezes os olhos de pálpebras bem levantadas, e as suas pupilas ensanguentadas correm pelas suas bochechas, numa chuva, num granizo de sangue preto. Suplica que se mostre a todos os habitantes de Cadmo o parricida. Quer ser afastado desta terra. Ah! A antiga felicidade recebe assim o seu verdadeiro nome. Mas a partir deste dia nada falta a todos os males que têm um nome, os gemidos, o desastre, a morte, a desonra.» E, considerando a dor de Henri van Blarenberghe quando viu a sua mãe morta, penso também num outro louco infeliz, penso em Lear a abraçar o cadáver da sua filha Cordelia. «Ah! Partiu para sempre! Está tão morta como a terra! Não, não, sem vida! Porque tem vida um cão, um cavalo, uma ratazana e tu já não respiras? Já não voltas nunca mais! Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais! Olhai! Olhai para os seus lábios! Olhai!»
Apesar dos ferimentos horríveis, Henri van Blarenberghe não morreu logo. E não posso deixar de achar bastante cruel (ainda que talvez tenha sido útil, temos mesmo a certeza do que motivou, na verdade, o drama? Recordem-se dos irmãos Karamazov) o gesto do comissário da polícia. «O infeliz não está morto. O comissário tomou-o pelos ombros e disse-lhe: “Consegue ouvir-me? Responda”. O assassino abriu o olho intacto, pestanejou por um instante e entrou em coma.» A esse cruel comissário tenho vontade de repetir as palavras com que Kent, na cena do Rei Lear, que citei ainda agora, detém Edgar, que desejava reanimar Lear: «Não! Não perturbeis a sua alma! Ah! Deixai-a partir! Ele odeia quem prolongar a sua vida neste mundo cruel.»
Se repeti com insistência estes grandes nomes da tragédia, sobretudo o de Ajax e de Édipo, o leitor deverá compreender porquê, porque é que publiquei estas cartas e escrevi esta página. Quis mostrar em que pura, em que religiosa atmosfera de beleza moral teve lugar esta explosão de loucura e de sangue que se espalha sem chegar a manchar. Quis trazer ao quarto do crime um sopro que vem do céu, quis mostrar que este fait divers foi exactamente um desses dramas gregos em que a representação era quase uma cerimónia religiosa, e que o pobre parricida não era um criminoso brutal, um ser fora da humanidade, mas um nobre exemplo de humanidade, um homem de espírito esclarecido, um filho ternurento e piedoso, que a mais inelutável fatalidade — digamos que patológica para usar o lugar-comum — projectou — ao mais infeliz dos mortais — para um crime e uma expiação dignas de se tornarem ilustres.
«Dificilmente acredito na morte», disse Michelet numa passagem admirável. É verdade que o disse a propósito de uma medusa, cuja morte, tão pouco diferente da sua vida, não tem nada de incrível, de modo que se pode questionar se Michelet não estará apenas a usar nesta frase uma dessas «receitas de recurso» a que recorrem muito rapidamente os grandes escritores e graças às quais asseguram que podem servir de improviso à sua clientela o regalo especial que ela deles reclama. Mas se acredito sem dificuldade na morte de uma medusa, não consigo acreditar facilmente na morte de uma pessoa, nem mesmo no simples eclipse, na simples degradação da sua razão. A nossa noção da continuidade da alma é forte demais. O quê! Este espírito que, ainda há pouco, dominava a vida, dominava a morte, nos inspirava tanto respeito, é agora dominado pela vida, pela morte, mais frágil do que o nosso espírito que, de qualquer forma, já não se pode inclinar diante deste que tão rapidamente se transformou em quase nada! Isto acontece devido à loucura, semelhante ao enfraquecimento das faculdades nos idosos, semelhante à morte. O quê! O homem que ontem escreveu a carta que citei ainda há pouco, tão elevada, tão sábia, esse homem hoje…? E até, para descer ao infinitamente pequeno que é tão importante neste caso, o homem que tão razoavelmente estava preso às pequenas coisas da existência, que respondia tão elegantemente a uma carta, que satisfazia tão rigorosamente um pedido, que tinha tão em conta a opinião dos outros, desejoso de parecer senão influente, pelo menos amável, que conduzia com tanta delicadeza e lealdade o seu jogo no xadrez social!... Digo que isso é muito importante neste caso, e se citei toda a primeira parte da segunda carta que, em boa verdade, aparentemente só a mim me dizia respeito, foi porque a razão prática que coloca em evidência parece ainda mais contraditória com aquilo que veio a acontecer do que a bela e profunda tristeza das últimas linhas. Frequentemente, num espírito já devastado, são os ramos mestres, o topo, que sobrevive mais tempo, quando todas as ramificações mais baixas estão já podadas pelo mal. Aqui, a planta espiritual está intacta. E agora, ao copiar estas cartas, gostaria de poder fazer sentir a extrema delicadeza, mais, a incrível firmeza da mão que traçou estes caracteres, tão claros, tão delicados…
«Que me foste fazer! Que me foste fazer!» Se pensarmos nisso, talvez não exista uma única mãe verdadeiramente devota que não pudesse, no seu último dia de vida, muitas vezes até bastante antes disso, endereçar esta censura ao seu filho. No fundo, envelhecemos, matamos todos os que nos amam através das preocupações que lhes infligimos, através da inquieta ternura que inspiramos e que os deixa incessantemente em alarme. Se soubéssemos ver, num corpo que amamos, o lento trabalho de destruição levado a cabo pela dolorosa ternura que o anima, ver os olhos murchos, os cabelos, que durante tanto tempo permaneceram indomavelmente pretos, agora vencidos como tudo o resto e embranquecidos, as artérias endurecidas, os rins obstruídos, o coração esgotado, vencida a coragem diante da vida, o andar demorado, pesado, o espírito que sabe que já não há nada a esperar, que dantes pululava incansavelmente em invencíveis esperanças, a própria alegria, a alegria inata e que parecia imortal, que fazia tão amável companhia à tristeza, apagada para sempre, talvez quem soubesse ver isto, nesse momento tardio de lucidez que até as vidas mais iludidas por quimeras podem perfeitamente ter, uma vez que também a de Dom Quixote teve o seu, tal como Henri van Blarenberghe quando acabara com a sua mãe à punhalada, recuaria diante do horror da sua vida e pegaria numa arma para morrer logo ali. Na maior parte dos homens, uma visão tão dolorosa (supondo que se conseguem elevar até ela) desaparece muito rapidamente com os primeiros raios da alegria de viver. Mas que alegria, que sentido para a vida, que vida pode resistir a esta visão? Entre esta e a alegria, qual é a verdadeira, qual é «a Verdade»?
Recordemos que para os Antigos não existia altar mais sagrado, envolto numa veneração, numa superstição mais profunda, garante de maior grandeza e glória para a terra que os detinha e que os disputara aguerridamente, do que o túmulo de Édipo em Colono e o túmulo de Orestes em Esparta, esse Orestes que as Fúrias tinham perseguido até aos pés do próprio Apolo e de Atenas, dizendo: «Afastamos para longe dos altares o filho parricida.»*
*Parágrafo suprimido em Le Figaro.