O que se segue deve ser lido apenas como resposta às notas da Joana Meirim sobre aversão ao desporto. Normalmente, há duas respostas imediatas à aversão desportiva: a primeira consiste em enaltecer o desporto enquanto arte, argumentando-se que o Belo pode ser encontrado entre os melhores executantes de um desporto; a outra, em enaltecer as qualidades da prática desportiva, os benefícios que traz à saúde, e por aí fora. Ora, para mim, consumidor de qualquer desporto enquanto espectador, com excepção do ciclismo, do basquetebol e da ginástica rítmica, nenhuma destas respostas serve. A ideia de como responder à Joana ocorreu-me por acaso, como acontece quase sempre, quando procurava a origem da expressão inglesa «riff raff» («ralé») e deparei com um uso anómalo da mesma no poema «February Elegy», de Mary Jo Bang: «The mind makes its daily pilgrimage / Through riff-raff moments.» («O espírito cumpre a sua peregrinação diária / por situações ralé.») Nunca passei da mediania em qualquer dos desportos que pratiquei e só muito raramente me interessam mais os jogos entre os melhores do que os outros. Quando elogiamos práticas, sejam artísticas, sejam desportivas, é injusto esquecer a ralé, ou mesmo as «situações ralé».
1. O rinque
Foi a jogar à bola num rinque que tive o primeiro vislumbre da importância de ler. Nas traseiras da escola primária havia um rinque que de dia e de semana pertencia à escola, e à noite e aos fins-de-semana pertencia ao clube recreativo. O local, o «ringue», era basicamente um campo de futebol de cinco em cimento onde brincávamos durante o recreio. Quando havia bola, jogava-se à bola. Às vezes não jogávamos, mesmo havendo bola, porque as professoras embirravam com os meninos que corriam muito, transpiravam e depois ficavam doentes. Pensei honestamente que era um jogador acima da média até ao último ano, quando o meu melhor amigo ingressou no clube que era na altura o mais importante de Leiria (mas não o melhor!); em Novembro do ano anterior, pelo aniversário, o amigo tinha recebido do tio um livro que ensinava a jogar à bola: se rematarmos com a parte de fora do pé acontece X, se rematarmos com a parte de dentro segue-se Y, etc. Entre Novembro e Julho, o meu amigo tornou-se claramente o melhor jogador da escola e teria sido um jogador profissional não fosse uma lesão grave no joelho no final da adolescência; o azar dele não apaga a importância de ler.
2. Natação
A primeira actividade desportiva que pratiquei foi a natação. As aulas eram na Marinha Grande, à quarta-feira, e interferiam com o meu visionamento semanal do Bocas. Desisti passado pouco tempo e descobri, acidentalmente, quase duas décadas depois, que sabia nadar.
3. Sangue no nariz
Uma propensão a hemorragias nasais e um septo desviado (diagnosticado com quinze anos de atraso) tornavam-me o pior praticante daquilo que nos obrigavam a fazer nas aulas de Educação Física do 2.º ciclo: correr à volta dos campos de futebol e fazer ginástica, especialmente pinos, no pavilhão, sítio onde só éramos autorizados a entrar de sabrinas e para fazer ginástica, nunca para praticar qualquer outro desporto, porque podíamos estragar o piso. Mas há lições em tudo e esses dois anos de desporto miseráveis ensinaram-me muito sobre gestão pública: de que vale gastar dinheiro no chão de um pavilhão se depois não o podemos utilizar sem um livro de restrições à mão?
4. Campo de Férias
Como bem se sabe, Sartre tem razão pelo menos numa coisa: o inferno são os outros. Mas quem passou por campos de férias sabe que o ditto não passa de um eufemismo. Curiosamente, foi num desses campos, a driblar uma bola de basquetebol, que descobri ser capaz de passar por desportista e até, em certos momentos, elevar-me acima da média para não passar vergonhas; o contexto daquele sítio retirou-me todo o prazer de jogar ou ver basquetebol, mas ainda hoje me divirto a jogar voleibol.
5. Ténis
Foi o único desporto que pratiquei com regularidade e alguma seriedade. Também nunca passei da mediania, mas percebi pela primeira vez que um conjunto de pessoas que sabe muito sobre uma só coisa é, na maioria das vezes, muito chato.
6. Cicloturismo
Quando tinha treze anos, recebi uma bicicleta nova. Durante um ano andei para trás e para a frente nas imediações da casa dos meus pais. Depois, quando ganhei coragem para enfrentar o trânsito da Estrada Nacional, percorri os quatro quilómetros que separavam a minha casa do Estádio Magalhães Pessoa para ir ver o autocarro do Sporting chegar. Cheguei cedo e, aflito por poder atrasar-me no caminho de regresso a casa, não vi o autocarro chegar. Menos de três horas depois, regressaria ao estádio com familiares, de carro, para ver o jogo. O Sporting ganhou 3-0 e as minhas incursões no cicloturismo cessaram.
7. Companhias
Entre o 7.º e o 9.º ano, numa turma que tinha quinze rapazes, foi possível ir desenvolvendo algumas capacidades desportivas por causa da competitividade. No liceu, todo o interesse desportivo era reduzido e a maioria das aulas desperdiçavam-se a explicar regras a pessoas que não tinham interesse em desporto (afinal de contas, eram de Humanidades!). A alternativa foi inscrever-me no desporto escolar, onde estive uns meses no voleibol e no futebol. Desisti quando percebi que o sistema de escolha da equipa de voleibol era decidido em espaços que não estavam confinados pelos espaldares do pavilhão. Além de me permitir ocasionalmente faltar às aulas, o desporto escolar também serviu para perceber que o sistema de privilégios que continuamos a criticar se instala nas nossas vidas desde muito cedo. Ainda hoje choro as aulas de Latim a que deixei de ir.
8. Autodidactismo
Aprendi as regras do snooker a ver horas a fio de torneios transmitidos pela Eurosport. Também aprendi as regras do basebol a ver as transmissões fora de horas da saudosa ESPN europeia. Aprender é muito mais fácil quando temos alguém que nos ensina e a quem podemos dirigir perguntas; o autodidactismo tem um problema óbvio: podemos aprender o mesmo, mas por reacção às práticas e aos praticantes. A graça da maneira correcta de fazer coisas escapa normalmente ao autodidacta, para quem os resultados são mais importantes (no meu caso de observador, o resultado positivo consiste em perceber um movimento táctico num jogo cujas regras deslindei sozinho). Ninguém leva a sério os autodidactas (ou os profissionais que chegam tarde a um desporto), mas são eles, normalmente, que mais amor têm às práticas. O perfeccionismo não é o único caminho para a evolução.
9. Mudanças
Querem mudar as regras do ténis para que os jogos durem menos tempo. Já tinham alterado as regras da pontuação do voleibol, retirando grande parte do interesse de um espectador não praticante como eu. Fizeram-no também no snooker, onde jogos das primeiras fases dos torneios passaram a ser decididos à melhor de sete quando antes eram decididos à melhor de onze ou mais. Os responsáveis — que são quem mais sabe porque são peritos — acham que os jogos atrairiam mais público se fossem mais breves e mais dinâmicos. É incompreensível!
10. Sporting
Adoro futebol, desde que seja competitivo: a única coisa pior do que um jogo de futebol amigável é um jogo de futebol amigável entre selecções. Mesmo quando são jogos do Sporting, a inexistência de um objectivo competitivo diminui imediatamente o meu interesse. Mas não o destrói: ainda assim, é o Sporting!
11. Ecletismo
Muito do meu interesse por outras modalidades vem por via do Sporting. Não me imagino a gostar dos desportos colectivos que aprecio se não tivesse visto, quando criança, as várias equipas do Sporting a jogar. Desenvolvi por isso o sistema, ou criei o hábito, de ter sempre uma equipa para a qual o meu coração pende quando vejo um jogo em que não participa o Sporting. Se eu gostar de uma equipa, o meu interesse no jogo, qualquer que seja a modalidade, está garantido. É por isso que a ideia de uma super liga de clubes de futebol me incomoda: que interesse teria eu em ver um Bayern de Munique – Juventus?
12. Natação II
Quando a minha filha foi para o infantário, inscrevi-a na piscina. Ao fim de um ano já sabia nadar. Dizem que os atletas profissionais devem começar a praticar os respectivos desportos desde muito cedo e, por isso, enquanto pai, ao orgulho de ver a minha filha nadar poderia juntar as perspectivas de lhe antever uma carreira desportiva. No entanto, os meus desejos para a carreira da minha filha já se cumpriram nas férias, num dia quente em que ela me fez companhia nas filas para os escorregas de um parque aquático.