Na apresentação do meu último romance, Vista Chinesa, a crítica brasileira Beatriz Resende comentou que encontra na produção literária das mulheres contemporâneas a preferência por narrativas em primeira pessoa, e me perguntou se eu tinha algum palpite do porquê. Eu vinha pensando no assunto havia um tempo ― afinal a escrita autobiográfica está no cerne do pensamento feminista ― e falar sobre isso pela primeira vez deu corpo às minhas ideias. Acreditei que meu caminho fazia sentido quando, no fim da apresentação, algumas mulheres vieram falar comigo sobre os seus diários de infância e adolescência ― a matéria que constituiu a base da minha resposta e que é o fio deste texto.
Quase todas as meninas da minha geração ganharam na infância diários, em sua maioria, com cadeados, para garantir que ninguém teria acesso ao que lá estivesse escrito. Coloridos, pequenos, médios, grandes, com ou sem adesivos, com ou sem cheiro, com ou sem ilustração, com ou sem frases espalhadas pelas páginas, havia para todos os gostos. Neles, escrevíamos nossos pensamentos e atos mais íntimos, nossas pequenas subversões, os segredos que não ousávamos dizer nem à nossa melhor amiga, confiando no poder daquela simples fechadura. Aprendemos, desde cedo, que nossos sentimentos são só nossos ― e devem ser ditos em primeira pessoa para um ser inanimado: «Querido Diário...» E assim aprendemos, desde cedo, a esconder nossas ideias, nossas sensações e, também, nossos corpos.
Até que um dia crescemos, largamos o diário e deixamos corpos e escrita trancados. Talvez por isso, quando uma mulher escreve, ela deixe reverberar essa escrita da sua infância, da sua adolescência, que se construiu na intimidade e no segredo; que se construiu com um corpo que, como a palavra, também foi obrigado a se retrair, a se recolher. «Nesta sala, não há espaço para você, para as excentricidades do seu corpo, ou para o fulgor da sua escrita», dizia a voz do lado de fora do quarto onde escrevíamos ― isto é, quando tínhamos um quarto só nosso.
Com os diários, aprendíamos ― todas as meninas, as que continuariam a escrever e as que nunca mais tocariam numa caneta ― que a escrita dizia respeito à intimidade, ao segredo. Não escrevíamos para os outros, mas para nós mesmas. Não escrevíamos para sermos lidas; muito pelo contrário, escrevíamos para não sermos lidas. E deveríamos seguir assim, escondendo, vivendo em segredo, em sussurros, contando apenas a nós próprias, trancando com cadeado o que nos acontecia ― o menino de quem gostávamos, o primeiro beijo, as brigas com os pais, a incompreensão do mundo...
Apesar da tese que levanto aqui ― a da relação entre a escrita de diários na infância e na adolescência com a predominância de uma escrita em primeira pessoa na literatura contemporânea feita por mulheres ―, a minha relação com diários é bastante peculiar. Pequeno, vermelho, com o desenho de uma Hello Kitty segurando uma taça de chá na capa, o convite, Would you be free for a cup of tea?, e um cadeado hoje enferrujado, meu primeiro diário, recebido aos nove anos de idade, tem poucas páginas preenchidas. Algumas, no próprio ano em que o ganhei, outras, no ano seguinte; depois, há uma única entrada em 1990, quando eu tinha onze anos; duas em 1993 e algumas em 1994. Em 1989, peço desculpas ao diário por ficar tanto tempo sem escrever. Em 1993, me auto revelo uma péssima escritora de diários. Abandono-o com frequência, porque, na verdade, nunca gostei de escrever diários. Gosto dos cortes, dos tempos que vão e voltam, e o diário exige uma linearidade que não me atrai. Nunca me senti confortável escrevendo nos dias certos ― é claro que eu poderia driblá-los, falsificá-los, brincar com o diário, mas aos dez ou aos quinze anos, apenas me pareceu que o formato não me interessava, não era o meu jeito de escrever.
Em 1998, fiz uma viagem com a minha mãe e a minha irmã à Turquia e à Grécia. Minha mãe estava bastante doente, tinha acabado de fazer uma quimioterapia, havia perdido o cabelo, e não conseguia pensar em organizar uma viagem como essa. Mas era uma coisa que eu queria muito, ir à Turquia com ela, em busca dos rastros da nossa família; ir à Grécia com ela, porque ela, Helena, tinha me feito amar os gregos. Então, fui a uma agência de viagens ― naquela época era assim que se fazia ―, reservei as passagens, peguei indicações e esbocei uma rota. Insisti tanto que minha mãe acabou cedendo. Sou teimosa. Ela também era, minha irmã também é. Não sei se teimosia se herda ou se aprende, mas sei que, dessa, não me arrependo nem um pouco. Um ano e meio depois, minha mãe morreria. Sete anos depois, desta viagem e desta morte, nasceria meu primeiro romance, A chave de casa.
Antes da partida, ganhei de presente meu segundo diário ― desta vez sem cadeado. Capa verde, uma menina com roupa de balé, de costas, o rosto de perfil, as mãos sobre uma barra de dança, o cabelo amarrado em coque; por cima, em letras amarelas, os dizeres: Inesquecíveis momentos. Acreditei que escrever um diário de viagem seria mais fácil ― teria mais sentido ― do que escrever um diário qualquer. A cada dia, muitas novidades, tanto o que contar. No início, levei a sério a missão, mas com o passar do tempo, torna-se claro que a missão era de fato uma missão, e que contar nem sempre tem a ver com escrever. Logo me mostrei uma escritora de diário de viagem igualmente fracassada. No dia 15 de fevereiro de 1998, anoto: «Há nove dias que não escrevo; sinto que não consegui fazer um diário de viagem.»
Depois disso, nunca mais tive um diário. No total, escrevi apenas dois diários fracassados, que não chegaram a ocupar nem um terço de seus volumes. No entanto, acabei por ter quatro, pois me apropriei de outros dois, que não haviam sido escritos por mim, mas por uma menina que tinha vivido a sua adolescência na década de 60 e, anos mais tarde, se tornaria a minha mãe.
Numa tarde em que havia voltado mais cedo do trabalho, a minha mãe entrou no meu quarto e me deu de presente seus diários de juventude. Um deles, um caderno comum, pautado, em espiral, com uma mansão na capa e o escrito «Vencedor», narrava, da primeira à última página, o dia a dia de uma menina rica de 13 e 14 anos no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, respeitando a linearidade do tempo, a narrativa dos fatos diários, os segredos mais íntimos; o outro, acolchoado, trazia na capa o título Meu Diário em letra cursiva e dourada. Era o relato de uma viagem de navio pela Europa, que ela havia feito aos 17 anos, no qual contava em detalhes o que havia visto, sentido e pensado.
Algumas semanas antes, eu, que nunca dizia nada sobre o que escrevia, tinha lhe dito, quase por distração, que estava pensando em voltar a escrever um diário, mas achava que não iria dar certo, porque no fundo eu não gostava de escrever diários, não sabia escrever diários. Lembro-me de ter dito que eu queria tentar de novo, uma espécie de treino, para ver se eu pegava o jeito, se eu aprendia a escrever diários como as outras meninas. Afinal, era isso o que eu queria fazer da vida, escrever, mas se eu não conseguia dar conta nem de um diário, enquanto as minhas amigas preenchiam páginas e mais páginas, como eu faria para escrever contos, poemas, romances?
Então, a minha mãe apareceu naquela tarde e me deu os seus diários. Preenchidos da primeira à última página. Nos dias que se seguiram, nos meses, nos anos, eu me debrucei incontáveis vezes sobre aquelas palavras ― que não tinham sido escritas por mim, mas poderiam: os diários que herdei da minha mãe, os diários que mastiguei, devorei, engoli e que se tornaram os meus diários.
Quando contei a uma amiga que tinha decidido escrever sobre esses diários, ela comentou, Que ideia da sua mãe te dar esses diários quando você era adolescente! Eu tinha com ela uma relação tão umbilical, tão próxima e confusa, que nunca a tinha questionado por tal gesto. Pelo contrário, eu quase me sentia agradecida por ela ter escrito os diários que eu não conseguia escrever; os nomes eram outros, mas o que ela dizia era o que eu queria dizer; o que ela sentia era o que eu sentia. A parte secreta da minha mãe era igual à minha. Quando li os seus diários, tive a certeza disso. Me senti ainda mais ligada a ela do que já era, quase a mesma pessoa.
Acho que era isso mesmo o que ela queria. Me dizer que eu não era a única a me sentir a mais feia da escola; a única a não ter namorado enquanto todas as amigas tinham; a única a passar as tardes enfiada nos livros; a única a sentir tanta angústia diante da existência; a única a chorar antecipadamente a morte das pessoas mais amadas; que eu não era a única a me apaixonar por histórias impossíveis; a única a querer ser livre antes de entender exatamente o que isso significava. A minha mãe escrevia igual a mim. Ou melhor, eu escrevia igual a ela. Aqueles diários eram exatamente os diários que eu escreveria, se escrevesse diários.
Tomei os diários da minha mãe como meus, apropriei-me deles e só voltei a escrever na viagem para a Turquia. Se eu quisesse acessar a minha intimidade, bastava abrir uma página qualquer do diário dela. Se um dia eu tivesse a minha filha, quando ela se tornasse adolescente, eu lhe passaria o diário da minha mãe como sendo o meu diário, e talvez ela sentisse o mesmo que eu, e assim o diário passaria de geração em geração, as partes secretas das meninas da família se repetindo sem precisarem ser reescritas. Seríamos todas simbióticas, sentiríamos todas o mesmo espanto, seríamos todas inteligentes, livres e amantes da literatura e, apesar de tudo isso, ou talvez por isso mesmo, sofreríamos todas por amores impossíveis.
Mas como nem tudo na vida, ou quase nada, acontece conforme planejado, não foi bem assim que as coisas aconteceram. Alguns anos depois de eu ter herdado esses diários, a minha mãe morreu, no dia 24 de agosto de 1999, exatos trinta dias após a morte da minha tia e madrinha, Gilda. Três anos e meio depois da minha irmã mais velha, Djamila. Aos vinte anos, eu, que tinha crescido no meio de tantas mulheres mais velhas, de repente me vi apenas com a minha irmã mais nova, e um vazio enorme, uma dor enorme ― quando penso nesse tempo, sinto algum alívio por já não morar nele.
Muito cedo, havia colocado na cabeça que para ser escritora eu tinha que sofrer; quanto mais triste fosse a minha vida, mais legítima seria a minha trajetória. Uma ideia fora de moda nos anos 90, mas que absorvi por conta das leituras que realizei naquela época, das biografias que li de alguns escritores, e que depois se tornou muito difícil de se desfazer. Na medida em que os desastres iam acontecendo, e eles foram acontecendo cedo, eu os interpretava como um sinal de que era aquilo mesmo: eu podia continuar escrevendo.
Lembro que, tanto no enterro da minha irmã quanto no da minha mãe, me sentia profundamente dentro ― chorava, chorava e chorava, até o meu corpo não aguentar ―, mas também me sentia fora, como se eu fosse uma espectadora, observando o enterro, observando a dor dos outros e observando a minha própria dor. Eu sofria e eu observava. Eu sofria e eu escrevia. Eu vivia e eu escrevia ao mesmo tempo. Havia uma espécie de inversão perversa e autocentrada das coisas, como se tivesse predestinado que aquelas mulheres precisassem morrer, que eu precisasse sofrer, para poder escrever; sem aquela dor eu jamais poderia escrever, então tudo aquilo estava acontecendo de alguma forma para eu poder escrever, ou porque eu iria escrever; então eu observava, muito dentro e muito fora, presente e ausente, enterrada junto com elas e suspensa no espaço; a escrita só existiria a partir da perda, depois da perda, com a perda, sobre a perda, uma loucura que não me largava porque tinha se arraigado muito cedo na minha cabeça, no meu corpo.
Durante algum tempo, depois dessas mortes, relutei em deitar num divã, porque tinha medo de ficar curada da dor. Se eu me curasse, como escreveria? Quando li Nietzsche pela primeira vez, quando li Deleuze pela primeira vez, lembro de ter pensado: Afinal, não preciso desse sofrimento todo. Não preciso sofrer para escrever. As mulheres da minha vida não precisavam ter morrido para eu escrever. Afinal, a literatura não tem a ver comigo, não tem a ver com a vida de quem escreve; portanto, posso ser alegre e escrever. Mas as coisas que a gente coloca na cabeça quando a gente está se formando são muito difíceis de serem revertidas. Eu podia ler Nietzsche inteirinho. Deleuze inteirinho. E mais um monte de filósofos, de teóricos da literatura e da alegria. Eu podia até mesmo me deitar no divã durante anos. Aquele ser que tinha se formado aos quinze anos não iria embora assim tão facilmente.
Em certa medida, escrever ficou, para mim, eternamente associado à ideia da dor. Da mesma forma que a ideia de uma mulher bem-sucedida, realizada, uma mulher que fala o que pensa, que usa seu corpo e sua cabeça de forma livre, ficou associada à ideia de fracasso amoroso. Uma mulher só poderia ser isso tudo se fosse infeliz no amor. E, muito cedo, eu entendi que queria ser tudo isso.
Quando a minha irmã mais velha morreu, quando a minha tia morreu, quando a minha mãe morreu, o que mais ouvi foram palavras de consolo que se resumem na famosa expressão: «O tempo cura tudo». Eu baixava a cabeça em sinal de concordância, as lágrimas caindo, porque eu não ia discordar de quem estava ali para me dar a mão, para me dar um pouco do colo que eu tinha perdido, mas por dentro eu tinha tanta raiva desse consolo, tanta raiva do tempo que já tinha passado, que ia passar, e que eu não queria que passasse. Eu não queria que ele andasse senão para trás, para junto das minhas mulheres, das mulheres que tomavam conta de mim, das mulheres que tinham me tornado a mulher mais velha tão cedo, tão antes do tempo, que estava todo errado, embaralhado na sua linearidade estúpida. O tempo, que só fazia andar para frente no mesmo ritmo, o tempo que eu queria atrás ou na frente, perto delas ou longe da dor. E eu só me dizia: Tempo nenhum vai tapar esse buraco. Tempo nenhum vai trazer a minha irmã de volta, a minha tia de volta, a minha mãe de volta. Tempo nenhum vai amenizar a dor, foi o que encontrei no verso da Emily Dickinson que tomei emprestado para a epígrafe do meu primeiro romance. Escrever A chave de casa foi, sem que eu soubesse, parte do processo de luto que eu julgava sem fim. Digo que eu não sabia, porque ter escrito sobre a doença e a morte da minha mãe não fez com que doesse menos. Continuei, depois disso, pensando nela todos os dias. Continuei, depois disso, chorando a sua morte todos os dias.
Escrevo isto agora e parece que escrevo sobre outra pessoa ― tenho dificuldade em acreditar: Eu chorava mesmo todos os dias? E quando foi que isso parou? Quando foi que deixei de chorar? Quando foi que o tempo passou?
Porque foi exatamente isso: de repente, o tempo havia passado. Faz vinte e três anos que a minha mãe morreu. Foram mais anos sem ela do que com ela, embora essa frase esteja equivocada do princípio ao fim. Tanto pelo fato óbvio de que o tempo é experimentado de forma relativa e subjetiva ― o tempo da infância, por exemplo, é infinitamente mais lento do que o tempo de quando nos tornamos mães ― quanto pela constatação de que fazer o luto não é apenas aprender a viver sem os mortos, mas também, e talvez sobretudo, viver com eles.
Aprendi a viver com a minha mãe de várias formas: em silêncio, em voz alta, falando dela para os meus filhos, nos sonhos, na escrita, relendo suas cartas e seus livros, nas fotografias, transformando em meus amigos muitos dos seus, dando gargalhadas infinitas. No entanto, há uma forma que me foi arrancada pouco depois da sua morte.
Um acidente doméstico, na mudança da casa do meu pai para o apartamento onde eu e minha irmã viveríamos juntas por sete anos, fez desaparecerem caixas com memórias das nossas vidas: todos os álbuns de fotografia da minha irmã mais velha; os álbuns de juventude de minha mãe; cartas da minha mãe, papeladas minhas e da minha irmã mais nova, que não consigo mais dizer o que eram, uma linda e enorme fotografia original do Manuel Bandeira com a Elizeth Cardoso, que eu deixava pendurada na minha parede, as fotografias da minha mãe entre soldados egípcios na guerra do Yom Kippur e, sem dúvida, o que mais me dói, os seus diários de adolescência, que eu havia tornado meus.
Foi uma morte dentro da morte. Perder aqueles diários foi como perder a minha mãe uma segunda vez; foi como me perder a mim própria; foi como perder o legado que eu deixaria para a minha filha: a linhagem das mulheres fortes, livres, escritoras e infelizes no amor. Nunca aceitei essa perda por completo. Por nunca ter visto o corpo morto ― os diários não foram rasgados, não foram queimados ― passei os últimos vinte anos na esperança de encontrá-los. Todas as vezes que decido arrumar os armários da minha casa no Rio de Janeiro, sou invadida pela esperança de dar de cara com eles, Quem sabe não sobreviveram ao acidente? Quem sabe um dia não vou abrir suas páginas, sentir seu cheiro de folhas velhas, deixar os olhos deslizar pela letra cursiva e quase incompreensível da minha mãe? Quem sabe um dia não vou reencontrá-la, a minha mãe, abraçá-la, deitar no seu colo e, numa tarde, resumir o que foram os mais de vintes anos depois que ela se foi?
Escrever tem sido uma conversa infinita com essas ausências. Tento, em algum lugar, recuperar o afeto perdido da minha mãe e os diários que, por conta de um acidente banal, desapareceram. Costumo contar, nas apresentações dos meus romances, que começo a escrevê-los em terceira pessoa. Tenho o estranho desejo de escrever um romance à moda realista, com um narrador onisciente e onipresente, mas falho todas as vezes. Há uma primeira pessoa que se impõe sempre. Não necessariamente a minha. Pode ser a da Joana, a do Antonio, a da Ana, a da Júlia. Ando pensando sobre ela ― e sobre a sua relação com a adolescente que (não) escrevia diários; a adolescente que aprendeu, como as meninas no geral, que a escrita nasce num lugar muito íntimo e não deve ser partilhada com ninguém; a adolescente que, por fim, cresceu num tempo no qual muitas mulheres, em diversas partes do mundo, decidiram expor essa escrita e afirmar que o pessoal também pode ser literário, e que a literatura é sempre política.