COMO CITAR:

Ferreira, Pedro Tiago. «António Braz Teixeira, Sentido e Valor do Direito. Introdução à Filosofia Jurídica». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0050.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0050

Pedro Tiago Ferreira

Sentido e Valor do Direito é uma obra de cariz filosófico que analisa três grandes questões, a saber: “o que é o Direito?”, “o que é a Justiça?” e quais as relações entre ambos.

Este livro de António Braz Teixeira tem, sobretudo, um cariz didáctico, o que, de resto, é expressamente reconhecido na contracapa do mesmo, onde se pode ler: “Este livro tem na sua génese a actividade docente do autor em diversas universidades portuguesas e inscreve-se na linha de regresso à consideração filosófica da realidade jurídica”. Não é, portanto, surpreendente que o texto seja dedicado quase inteiramente à análise dos escritos dos grandes pensadores que, ao longo da História da humanidade, abordaram questões interligadas, o que revela a artificialidade moderna da divisão do discurso filosófico em rótulos hoje conhecidos por ética, religião, política e Direito, por exemplo, seja porque a ética é, historicamente, fruto quer da religião seguida por uma determinada comunidade, quer dos seus costumes, seja porque o Direito, na sua vertente de Direito positivo, i.e. Direito criado por seres humanos através de leis e de costumes, é o resultado de opções políticas que são tomadas tendo em atenção os preceitos éticos e religiosos dominantes numa dada comunidade. Há, portanto, uma certa circularidade, visto que o costume, que é uma fonte do Direito, pode influenciar concepções éticas, ao passo que a ética, por seu turno, tem um papel decisivo na tomada de opções políticas e consequente feitura das leis. Isto mesmo é demonstrado pela opção de Braz Teixeira de analisar o discurso filosófico presente, numa lista que está longe de ser exaustiva, em autores de quadrantes tão diferentes como os pré-socráticos Homero e Hesíodo, passando por Platão, Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Thomas Hobbes, John Locke, Immanuel Kant, John Stuart Mill, Jeremy Bentham ou Karl Marx, culminando em autores modernos como Hans Kelsen, John Rawls ou Miguel Reale, sem deixar de ser feita uma referência, ainda que fugaz, à filosofia presente nas obras de Teixeira de Pascoaes e de Fernando Pessoa (pp. 33 e 355), reconhecendo o autor que há uma cada vez maior “importância hodiernamente conferida às relações entre Filosofia e Poesia” (p. 21).

A intenção marcadamente pedagógica com que a obra é redigida justifica a sua falta de originalidade; no entanto, Braz Teixeira não deixa de implementar o seu cunho pessoal. Por um lado, a exposição é estruturada com o intuito, como dissemos no início, de investigar o que é o Direito, a Justiça, e como ambos se relacionam entre si. Braz Teixeira expõe este objectivo nos seguintes termos:

o problema nuclear desta disciplina filosófica [a Filosofia do Direito] vem a consistir na resposta a uma dupla interrogação, de natureza simultaneamente ontológica e axiológica: a interrogação sobre o ser do Direito e sobre a sua razão de ser e de valer, a qual não pode deixar de prolongar-se numa interrogação metafísica, senão mesmo de índole teodiceica, sobre o fundamento último e radical do valor ou princípio de que o Direito depende. (p. 40)

Braz Teixeira desenvolve possíveis respostas à “dupla interrogação” (a terceira questão por nós identificada supra, a saber, a de como o Direito e a Justiça se relacionam é implicitamente discutida por Braz Teixeira durante a exposição das possíveis respostas à dupla interrogação) através de uma divisão do texto em duas partes. A parte I, intitulada “Ontologia do Direito”, procura responder à primeira interrogação, expondo a natureza do Direito, ou seja, o que o Direito é, como é criado, para que serve, quando vale, não vale ou deixa de valer, como se relaciona com o ser humano e com a(s) sua(s) comunidade(s), em que medida é produção cultural do Homem e das comunidades compostas por homens e mulheres, e como se distingue de, e se relaciona com, outras ordens normativas como a moral, a religião e os usos sociais. A cada passo, Braz Teixeira faz observações críticas e salienta as falhas argumentativas das várias teorias filosóficas gizadas à volta destes temas.

A parte II, intitulada “Axiologia do Direito”, dedicada à segunda interrogação, divide-se, por sua vez, em dois capítulos. O primeiro trata do “problema do Direito natural”, ao passo que o segundo aborda “a Justiça”. Não prescindindo do pendor didáctico e descritivo do pensamento dos grandes filósofos em geral, e dos filósofos jusnaturalistas em particular, Braz Teixeira opta, uma vez mais, por explorar as falhas argumentativas das várias teorias apresentadas. Este método de exposição e posterior crítica visa preparar o terreno para a sua própria tese acerca do que é o Direito, a Justiça e como ambos se relacionam.

 Esta tese consiste no seguinte: o Direito é uma realidade cultural e uma ordem normativa.

No domínio cultural, o Direito individualiza-se, assim, por se referir à actividade prática do homem e não à sua actividade teorética, por dizer respeito à acção e à conduta e não ao saber, ao conhecimento ou à verdade, por ter como domínio específico o dos conflitos de interesses surgidos na vida social, que visa resolver ou decidir de acordo com determinados princípios, valores ou ideais. (…)

Sendo realidade humana e criação cultural, o Direito define-se também pela sua temporalidade e historicidade, dado que não só a visão dos princípios, valores ou ideais a que se refere e procura tornar efectivos é sempre imperfeita e precária, porque obtida a partir de uma determinada situação concreta, historicamente definida, como ainda o Direito só enquanto vivido e aplicado verdadeiramente é. (pp. 150-1)

A partir destas considerações entende-se que, para Braz Teixeira, o Direito é uma realidade cultural e, por isso, humana, que nasce em consequência de um princípio de acção, variável no tempo e no espaço. O Direito não pode, por conseguinte, vincular-se a princípios, valores ou ideais imutáveis e perenes, mas somente àqueles que existam na comunidade humana criadora de Direito. Assim, o Direito não é filosofia, mas sim um esquema normativo contingente, orientado para a composição pacífica de litígios. O conteúdo do Direito será sempre aquele que melhor se adeque aos interesses da comunidade e, por isso, o Direito também tem que ser visto como ordem normativa.

As normas em que se objectiva o Direito constituem uma ordem, num duplo sentido: por um lado, formam um conjunto ordenado a partir dos princípios, valores ou ideais de cuja visualização ou interpretação são objectivada expressão; por outro procuram ordenar, rectificar ou tornar direita ou recta a vida social, a convivência entre os homens, as suas relações, substituindo por uma ordem o caos a que a desordenada conduta individual inevitavelmente conduziria, no seu jogo de egoísmos e na luta em que o mais fraco sucumbiria ao arbítrio do mais forte. (pp. 158-9)

Assim, o Direito é uma realidade cultural concretizada numa ordem normativa que tem o intuito de garantir a paz, tornando “recta a vida social”, o que é conseguido através da eliminação do caos a que o arbítrio de cada indivíduo conduziria a sociedade. Pode-se, por isso, dizer que o Direito, para Braz Teixeira, é uma ordem normativa social cujo conteúdo é emanação da cultura. Não é filosofia, mas sim compromisso. Contudo, Braz Teixeira reconhece que o conteúdo possível deste compromisso, ou acordo, ainda que variável, não está totalmente sujeito ao arbítrio dos seres humanos, visto que o Direito procura proteger e implementar determinados valores. Dito por outras palavras, os valores que o Direito segue são variáveis, o que justifica a mutabilidade do seu conteúdo, mas o Direito nunca pode ser visto como uma realidade sem valores. Por isso, seria incongruente falar-se em Direito arbitrário. Ora, na medida em que a injustiça é o resultado da arbitrariedade, daqui resulta que o Direito segue um ideal de Justiça.

Braz Teixeira chega à conclusão de que a Justiça é insusceptível de uma definição válida em todas as épocas e em todos os lugares porque, por um lado, “o que é justo hoje pode deixar de sê-lo amanhã”, e, por outro lado, “a Justiça é sempre concreta” (p. 314). Assim, o Direito está vinculado a um valor, ou princípio, que é, ele próprio, incerto. O melhor que se pode fazer é identificar os atributos da Justiça, de entre os quais se destacam a insubstancialidade, a alteridade (ou bilateralidade) e a equivalência (ou proporcionalidade) (p. 316). Isto significa, segundo Braz Teixeira, que a Justiça é o que é próprio do justo, que, por ser insubstancial, é o nada de que tudo depende, não existindo em si, sendo antes “um objectivo nunca plenamente realizado ou alcançado; é uma intenção ou uma intencionalidade, é a luta permanente, infindável e sempre recomeçada pela sua própria realização”, razão pela qual não é “possível uma ordem justa estática” (p. 315). Além disso, a Justiça é uma relação de equilíbrio ou paridade (proporcionalidade) que se estabelece entre pessoas (alteridade).

Estas conclusões não são originais, mas têm o indiscutível mérito de funcionarem como uma síntese das posições mais importantes que, na História da filosofia, foram construídas acerca do Direito, da Justiça e da relação entre ambos. Sentido e valor do Direito é, por conseguinte, uma obra fundamental para quem se esteja a iniciar no estudo destes temas.

REFERÊNCIA:

Teixeira, António Braz. Sentido e Valor do Direito. Introdução à Filosofia Jurídica. Lisboa: INCM, 2010.