Na introdução a Traditional Japanese Literature, Beginnings to 1600, Haruo Shirane alude de passagem a uma curiosa distinção entre literatura ocidental e literatura japonesa, relativa à tradição e à influência literária. Com recurso a terminologia bloomiana, Shirane refere que ao invés de uma disputa edipiana entre pai (precursor) e filho (o novo poeta), no qual o último procura «matar» o primeiro de modo a ocupar o seu lugar, a relação do poeta japonês com os seus precursores é, no geral, reverencialmente filial, com a identidade do poeta-filho «intimamente ligada ou dependente da do “pai,” quer seja o fundador da escola ou o mestre imediato» (Shirane 2007, 11). Não se manifesta, entre mestre e discípulo, qualquer impulso agonístico de suplantação e ocupação do lugar do precursor: a sua intenção permanece ambivalente e sub-reptícia, abertamente reverente e submissa à autoridade do precursor que procura emular, na esperança de obter semelhante autoridade e reverência. Deste modo, a tradição poética japonesa processa-se por acreção, ou seja, com tendência para a acumulação (de géneros, estilos e precursores) e em direcção à reorganização, visando a preservação da sua configuração e perpetuidade.
Esta distinção provocou resultados no modo como se praticou e interpretou poesia no Japão, desde os primórdios do século VIII, data da primeira antologia poética, Man'yōshū (Coleção de dez mil folhas, 759), até ao final do período Edo (1603-1868), aquando da abertura forçada do Japão à influência ocidental. Contudo, não é intenção deste artigo realizar uma exaustiva cobertura da tradição e influência japonesas ao longo dos séculos. A partir de textos críticos e poéticos de poetas maiores como Ki no Tsurayuki (872-945), Fujiwara no Teika (1162-1241) e Matsuo Bashô (1644-1694), serão apresentados e discutidos vislumbres das características mais distintas da tradição e influência poéticas japonesas.
À relação de um poeta com quem considera o seu precursor é costume aplicar, na tradição moderna ocidental, descrições que se aproximam do conceito de drama familiar, de modo a transportar, enquanto esquema conceptual, todos os conflitos inerentes para as relações literárias (isto de acordo com a terminologia freudiana adoptada por Harold Bloom). O que distingue a tradição japonesa clássica (composta pelos períodos Nara, 710-794, e Heian, 794-1185) é não procurar uma ruptura como forma de tomar o lugar do pai no topo da hierarquia literária. A verticalidade da hierarquia literária japonesa permanece inviolável e indiscutível, quer numa escala mais individual, através da relação mestre-discípulo (escolas poéticas ou transmissão familiar), onde eram transmitidos conhecimentos esotéricos, quer numa escala mais pública, através da absorção pelo Estado, enquanto autoridade inquestionável, das responsabilidades públicas da prática poética e como juiz absoluto do «bom gosto». O desejo de superação e transformação, quer a nível individual ou social, não se manifesta (o que explica a relativa estabilidade da prática literária que, ao longo dos séculos, enfrentou poucos movimentos literários verdadeiramente progressistas e vanguardistas), muito pelo facto de a prática poética assentar explicitamente sobre o que os precursores compuseram previamente. Qualquer originalidade poética pautava-se pela subtileza, procurando nunca destoar do precursor e de todo o aparato literário sobre o qual o novo poeta produz novas composições.
Essas composições advinham da aptidão em agregar, justapor ou contrastar descrições e termos aceites pela comunidade literária, com o intuito de originar novos resultados combinatórios, actualizando e perpetuando os próprios termos através do seu uso frequente. Para além de o processo de composição japonesa acarretar em si uma dimensão desavergonhada de pastiche, o que distingue a prática japonesa reside no tamanho pequeníssimo da composição (o waka, o poema-padrão da época clássica, continha 31 sílabas fonéticas) bem como na qualidade imagética da linguagem japonesa, onde os Kanji (ideogramas adoptados a partir da China) continham em si múltiplos significados. Por exemplo, «matsu» poderá significar literalmente pinheiro (松, matsu) tal como a um nível homofónico o verbo no infinitivo «esperar» (待つ, Matsu). A possibilidade de conter num ideograma vários significados em simultâneo aumenta a complexidade alusiva e a rede de conexões possíveis, articulando todos os tópicos considerados indispensáveis para que se reúna na mesma peça o bom gosto e o bom senso poéticos.
O procurarem reinventar o que já havia ao estabelecer relações novas entre tópicos, em vez de introduzir tópicos e conceitos não-familiares é por si significativo. Demonstra ter sido possível manter, com poucas flutuações, o ethos literário japonês, acabando por levá-lo até à constrição formal, vocabular e tópica, reduzindo gradualmente as 31 sílabas fonéticas até 17 (haiku). Em vez de se encontrar na ruptura calculada alguma continuidade sub-reptícia, na tradição literária japonesa é possível encontrar na continuidade uma ruptura calculada, o suficiente para renovar o ethos literário, mas não o suficiente para o abandonar. O critério de avaliação para qualquer poeta incidia assim sobre a sua capacidade de aludir ou referenciar poemas ou eventos anteriores de um «modo elevado», isto porque a mestria da arte poética dependia sobretudo da recepção dos poemas, e a recepção dos poemas da capacidade de aludir às antologias poéticas encomendadas por ordem dos imperadores.
Isto tudo era essencial na poética japonesa clássica uma vez que o acto de composição transportava consigo outra característica distinta: compor poesia era uma actividade maioritariamente comunitária, competitiva, colaborativa e oral. Isto traduz-se numa proximidade íntima com os afazeres quotidianos, oficiais e cerimoniais de uma classe aristocrata rigidamente estruturada, detentora de um sem-número de protocolos e rituais de socialização. A poesia japonesa clássica funcionou durante séculos como meio de comunicação entre amantes e membros da corte, em competições poéticas de recitação entre aristocratas (utaawase), e enquanto actividade com elevado enfâse antológico e escolástico, visto que a intenção de qualquer poeta seria ver-se antologiado numa colectânea imperial, deste modo imortalizando o seu nome, bem como o seu modelo de composição.
Embora seja o Man'yōshū (759) a primeira antologia japonesa estritamente poética, é com o Kokinshū (Colecção de poemas antigos e modernos, circa 914) que se estabelece o que hoje se consideram os princípios de uma teoria poética e o início formal de uma tradição literária que se provará milenar. No prefácio em japonês, redigido por Ki no Tsurayuki (872-945),[1] encontram-se as sementes de uma poética que viria a influenciar séculos de composição. As linhas de abertura do prefácio são consideradas o arquétipo do poema japonês, tanto que fez de Tsurayuki um dos juízes da crítica poética japonesa até ao final do período Edo (1868):
As canções do Japão tomam o coração humano como a sua semente e florescem como uma miríade de folhas de palavras. Enquanto estiverem vivos neste mundo, as preocupações e acções de homens e mulheres são intermináveis; assim, eles falam das coisas que ouvem e vêem, dando palavras aos sentimentos nos seus corações. Ouvindo os lamentos da toutinegra entre as flores ou os apelos do sapo que vive nas águas, como podemos duvidar que toda a criatura viva entoe a sua canção? Sem usar qualquer força, move o céu e a terra, faz com que espíritos e deuses invisíveis sintam pena, suaviza as curvas entre homem e mulher e consola o coração de guerreiros ferozes — tal coisa é poesia (Tsurayuki 1984, 35).
Podemos retirar as seguintes ilações a partir deste prefácio:
1 – Para Tsurayuki, é a partir das emoções (coração humano) que se inicia o acto de composição em direção ao mundo. Sentimentalmente, as palavras «florescem» a partir da interioridade do poeta. Deste modo, a técnica do poeta era avaliada com base na capacidade de interligar os sentimentos com os fenómenos do mundo.
2 – Por poetas serem criaturas no mundo e nunca fora dele, a única forma de falar com significado é falar daquilo que «ouvem e vêem», oferecendo desse modo «o mundo» enquanto possível objecto instrumental na expressão sentimental. Embora se inicie nos sentimentos do poeta, o poeta tem consciência de que a sua sentimentalidade só é exprimida por existir um mundo que possibilita e oferece significado ao acto de expressão poética. O reconhecimento da técnica de expressão pelo meio social justifica a expressão do sentimento.
3 – Não existe particular diferença entre escutar os barulhos de outros animais, como pássaros ou sapos, e o canto poético do homem. Ambos são modos de expressão e comunicação inseridos no mesmo mundo. É por analogia que se oferece a ideia de natural à poesia composta pelo homem, ao oferecer em troca o atributo de «canção» e «lamento» aos barulhos produzidos pelos animais, que por sua vez são utilizados para expressar os sentimentos do poeta. Esta breve troca de atributos permite iluminar um pouco da atitude poética japonesa clássica, que reside na associação, contraste, justaposição e apropriação de diversos atributos considerados naturais e animalescos, combinando-os com a arte, cultura e costumes humanos, deste modo naturalizando no processo os sentimentos humanos. Não existe uma clara distinção entre arte e natureza; existe, contudo, uma distinção entre o sentimento humano que origina a atitude poética e os fenómenos do mundo nos quais procura representatividade e entrelaçamento.
4 – A poesia implica em si uma utilidade social, enquanto prática presente nos mais variados contextos: provoca mudanças no mundo («move o céu e a terra»), satisfaz as dimensões religiosas da vida («faz com que espíritos e deuses invisíveis sintam pena») facilita a comunicação amorosa («suaviza as curvas entre homem e mulher») e auxilia terapeuticamente quaisquer soldados de guerra («consola o coração de guerreiros ferozes»). Esta dimensão é indissociável da aristocracia: compor poesia era parte dos seus costumes e tradições.
A variedade temática no Kokinshū encontra-se subsumida a uma estética de impermanência já inaugurada no Man'yōshū e a toda a beleza natural e amargura que dela resulta. Embora com poemas com temáticas das quatro estações, a preferência é dada às estações «transitórias», o outono e a primavera, enquanto representadoras simbólicas de uma realidade que permanece elusiva, frágil e em constante transformação:
3.
harugasumi
tateru ya izuko
miyoshino no
yoshino no yama ni
yuki wa furitsutsu
onde estão as prometidas
névoas da primavera?
em Yoshino, colinas justas
de Yoshino, a neve
ainda está caindo
(Anónimo, Primavera)
70.
mate to iu ni
chirade shi tomaru
mono naraba
nani o sakura ni
omoimasamashi
se ao dizer “fiquem!”
as fizesse parar
de cair, poderia segurar
estas flores
mais afectuosamente?
(Anónimo, Primavera)
71.
nakori naku
chiru zo medetaki
sakurabana
arite yo no naka
ate no ukereba
é a sua queda sem remorso
que admiro —
flores de cerejeira
um mundo de tristeza
se tivessem ficado
(Anónimo, Primavera)
289.
aki no tsuki
yamabe sayaka ni
teraseru wa
otsuru momiji o
kazu o miyo to ka
a lua de outono
lança a sua luz tão nítida
à beira da montanha
para que possamos contar
cada folha colorida que cai?
(Anónimo, Outono)
As versões aqui apresentadas (Shirane 2007, 150-9) seguem o formato de cinco versos de modo a ilustrar o esquema fonético do poema japonês clássico designado por Waka, distribuído em 5 – 7 – 5 – 7 – 7 sílabas fonéticas. No Kokinshū, o próprio poeta compõe a peça inteira, à qual outro poeta responderá, como é o caso dos waka 70 e 71 acima citados.
Em três dos Waka acima transcritos é notória a interrogação como força motriz (2, 70, 289). Entre o poeta e a natureza que ele contempla há uma insatisfação notória nos dois primeiros, porque a natureza não corresponde ao idealizado (2) e porque se encontra em constante mutação (70). No waka 289, o poeta questiona se a existência da lua e da sua luz serve o propósito de optimização das suas actividades contemplativas (contar folhas caídas). Em todas é notória uma ideia: a clara distinção entre o poeta e o mundo. Embora partilhando da mesma impermanência, os fenómenos do mundo natural servem como objectos distintos dos sentimentos do poeta, de modo a justificar o uso deles como representação imagética da sua interioridade melancólica face à transitoriedade da existência. Ocorre uma discrepância entre o que o poeta sente / deseja / expecta / conceptualiza, e a realidade que percepciona. Desta forma, o protagonismo pertence à subjectividade do poeta em detrimento dos elementos da natureza, que são apropriados com o intuito de auxiliar a expressão dos seus sentimentos.
Um pormenor que salta à vista em todos os waka é a percepção da natureza enquanto actividade animada. É o percepcionar quotidianamente a natureza, menos como substância, e mais enquanto processo, que leva o autor do waka 70 a conceber uma realidade onde fosse possível manter eternamente as flores em estado florido. Esta suposição pressupõe que não é possível extrair a qualidade temporal a qualquer fenómeno natural: é parte constituinte das flores que desvaneçam e morram, e isso não é um processo exterior que se aplica à substância «flores». Daí que o poeta idealize um mundo perpétuo e imóvel de forma a fixar eternamente as flores nos seus ramos, embora a sua intenção fosse menos a de contemplar estaticamente as flores, e mais uma tentativa de ampliar o seu sentimento em relação a elas. De modo que, em jeito de resposta, o poeta do waka 71 refira que é a queda, enquanto característica integrante da flor, que produz tanta admiração e atracção em primeiro lugar. O poeta do waka 70 acaba corrigido pelo poeta do waka 71, que o lembra de que a realidade é menos sobre conjunturas idealizadas e mais sobre objectos que mudam sem o nosso aval, e que é essa passagem que contém a beleza que poderá ser instrumentalizada poeticamente. O waka 71 é também uma declaração de um fenómeno que acabou por se tornar a norma estética: a flor de cerejeira enquanto símbolo da fragilidade da beleza bem como da beleza da fragilidade. O tropo «flores de cerejeira» será o arquétipo da estética japonesa até aos dias de hoje.
Alguns séculos depois, em plena época medieval (período Kamakura, 1185-1333) seria Fujiwara no Teika (1162-1241), o compositor de uma das maiores antologias poéticas medievais, o Shin Kokinshū (Nova colecção de poemas antigos e modernos, 1205), e ele próprio um poeta maior da tradição medieval japonesa a desenvolver a crítica e a composição poéticas a partir do dualismo coração / palavras de Tsurayuki.
Em Eiga no Tagai (Fundamentos da composição poética, 1222), Teika reflecte sobre a «técnica fundamental da literatura medieval aristocrática: a variação alusiva.» (Shirane 2007, 605). Também afirma a ideia de «poetas modernos», os da imediata geração anterior à sua, serem demasiado distintos dos «poetas antigos», proibindo explicitamente a adopção da dicção e significados introduzidos por esses poetas. Para Teika, o significado de um poema deve ser novo, mas a sua dicção «antiga». Associando a ideia de variação alusiva com a adopção da dicção antiga, Teika sugere que a inovação surge na articulação das temáticas, da forma e dos vocábulos que os sucessores herdaram dos grandes poetas. O novo poeta tem de se circunscrever não só às palavras dos antepassados: tem de construir a sua carreira a partir delas, de modo a abrir novos caminhos para a variação e combinação que permitam uma articulação cada vez mais refinada e até a expressão de fenómenos e sentimentos novos, embora enraizados nos clássicos.
Essas «variações» exigiam um extenso conhecimento de toda uma literatura japonesa. Aliado a esse conhecimento estava a capacidade de articular duplo significado, innuendo, entre outros métodos indirectos de comunicação (como forma de demonstrar a erudição literária adquirida) num formato poético diminuto (32 sílabas). Estes atributos eram considerados essenciais para se obter a excelência poética. Teika inicia o texto ao estabelecer a importância do cânone, dos antepassados e dos seus sucessores, eleitos através de uma alusão não muito subtil à antologia imperial organizada por si:
Quando se trata do significado [kokoro] da poesia, a novidade deve vir primeiro. (É preciso buscar uma concepção ou abordagem que ainda não foi usada.) Quando se trata de dicção [Kotoba], é preciso usar palavras antigas. (Não se deve usar nada que não seja encontrado nas Três Colecções [Kokinshū, Gosenshu, Shishu]. Os poemas dos poetas antigos colectados no Shin Kokinshū podem ser usados da mesma maneira.) O estilo [futei] da poesia pode ser apreendido com os poemas superiores do passado. (Não se deve preocupar com o período, mas apenas aprender com os poemas apropriados) (Shirane 2007, 606).
É notória a tensão entre inovação / tradição. Teika tinha consciência das dificuldades inerentes na adopção de uma dicção e técnicas de composição que já contavam, na altura da sua vida, com perto de meio milhar de anos. Havia uma urgência de renovação, mas uma renovação que colocasse os precursores ainda como o modelo a que todos os novos poetas tinham de aspirar, e não rebelar, algo que os «poetas modernos» começavam a dar indícios de querer fazer. «Buscar uma abordagem» que não foi usada significa para Teika prosseguir consciente e propositadamente a partir dos precursores, não a partir de um único indivíduo em particular, mas de um ethos que ressoava em todas as antologias dogmaticamente prescritas por si. A prescrição das Três Colecções era o reconhecimento de tal como a única forma de direccionar apropriadamente o acto de composição, evitando o risco de cair na caótica ininteligibilidade alusiva, a de praticar waka sem qualquer referência em comum, sem uma autoridade superior personificada nos poemas imortalizados das três antologias. A solução de Teika foi projectar a autoridade poética para figuras históricas; é deste modo que a supremacia do antepassado permaneceria indiscutível e, por correlação, também a sua. Quer as palavras, quer o estilo, quer a estrutura formal, devem permanecer intocadas. Uma posição canónica da literatura é assim adoptada dogmaticamente: à novidade é permitido proceder às suas transformações, se e só se ocorrer dentro do círculo formado pelos antepassados literários, de modo a sustentar a presença do antepassado literário e legitimar por associação a composição nova. A poesia do novo poeta deve permitir que se percorra o caminho até ao seu precursor directo, até à influência canonicamente aceite e celebrada pelo estabelecimento poético.
Todavia, o novo poeta, incorporado em Teika, tem de encontrar, como Bloom afirma, algo que o precursor fez mal, deixou inacabado ou imperfeito. Será por meio dessa leitura errónea que o novo poeta procurará ser digno o suficiente para, no contexto poético japonês, continuar o trabalho do precursor. A angústia poética em Teika não se revela, contudo, no desejo não concretizável de sobrepor-se ao precursor, mas em não ser digno de continuar o ethos poético que projectou nos precursores antologiados. São eles que justificam a empresa poética de Teika, que é sempre direccionada para a comunidade, sempre com o intuito de suster a hierarquia literária de modo a poder escalá-la até ao topo. Teika adia a sua independência literária, projectando a autoridade para os seus precursores, com o intuito de justificar e ir ao encontro desse ethos poético no qual residem os maiores poetas do cânone e do qual ambiciona fazer parte.
Uma vez que se atribui à posição e influência na hierarquia literária japonesas alguma centralidade nos afazeres de apreciação e composição poéticos, seria mais adequado associar um complexo de aprendiz ao tipo de conflito interno que Teika e outros variados poetas e escolas japonesas maiores enfrentaram. Otto Fenichel define esse complexo como uma resolução do complexo edipiano pelo jovem ao identificar-se durante um longo período de tempo com o pai, ou figura paternal, de modo a obter, através dessa dependência identitária continuada, uma futura independência. Fenichel descreve esse complexo de aprendiz:
Todo o rapaz [poeta sucessor] ama o seu pai [precursor poético] como modelo com o qual gostaria de se parecer; sente-se o pupilo que, através de uma passividade temporária, poderá atingir a capacidade de ser activo mais tarde. Esse tipo de amor pode ser denominado amor de aprendiz; é sempre ambivalente porque o seu objectivo final é substituir o mestre. Ao desistir da crença na sua própria omnipotência e projetá-la no pai, existem diversas maneiras pelas quais um rapaz pode tentar recuperar a participação na omnipotência do pai. Os dois extremos opostos são a ideia de matar o pai para tomar o seu lugar [complexo edipiano] e a ideia de ingratiação [original ingratiation], de ser obediente e submisso a tal ponto que o pai concederá voluntariamente a participação (Fenichel 1946, 306).
Ocorre assim uma voluntária submissão à autoridade do pai (neste caso, o precursor poético, um ethos literário projectado) como forma de se tornar homem (poeta maior) no futuro, permanecendo «ambivalentes» as suas intenções agonísticas em substituir o pai. A ideia seria a de que, uma vez escalado até ao topo da hierarquia literária, essa subida representasse uma manifestação da concessão voluntária da autoridade e omnipotência do pai ao filho, projectada e sustida previamente pela constante adoração do filho durante a escalada. Qualquer hostilidade ou permanece disfarçada ou acaba, no caso literário japonês, direccionada para as escolas rivais poéticas (ou competidores individuais por posições elevadas de composição no governo) que procuravam distorcer a imagem do precursor que o novo poeta procurava participar e personificar. Esses «irmãos» literários (que irão protagonizar conflitos literários na época moderna japonesa, nos séculos XVI, XVII) constituem uma ameaça à futura independência do poeta como digno sucessor do antepassado partilhado. A tradição literária japonesa, salvo excepções, tende deste modo a recair para o lado de reverência e submissão voluntária ao precursor e subsequente ingraciação e desejo de independência, pela participação paradoxal e prolongada na grandeza literária do precursor.