Nota da autora: Este artigo foi originalmente concebido em língua inglesa e posteriormente traduzido para português no âmbito da publicação deste número especial da Forma de Vida. A versão original pode ser consultada no respectivo link.

 

Aquilo que se pode entender por teoria (ou teorias) de género é uma área de estudo que começou a ser desenvolvida e estabelecida em meados do século passado, no âmbito dos emergentes «Estudos sobre as Mulheres». Contudo, como ocorre com tantas outras teorias importantes, as teorias de género haviam sido progressivamente construídas ao longo dos séculos. É, pois, possível identificar os seus pais e as suas mães, os seus primeiros aparecimentos, as suas prototeses, o seu florescimento e, talvez mesmo, a sua decadência. Nesse contexto, iremos falar dos contributos de três personalidades marcantes ​​do século XVIII, uma mulher e dois homens, em cujo trabalho se verifica a existência de importantes ideias acerca das relações sociais entre os sexos, bem como das suas consequências políticas. Nesse sentido, iremos explorar três perguntas ao longo das secções que se seguem:

 1. Mary Wollstonecraft, uma precursora das teorias de género?

 2. William Godwin, um amante honesto?

 3. Rousseau, um inimigo a abater?

 

Mary Wollstonecraft, uma precursora das teorias de género?

 

Mary Wollstonecraft nasceu no auge do Iluminismo, numa família de classe média que gradualmente viu decair o seu estatuto social devido aos excessos de um pai irascível, despótico e alcoólico. Havendo decidido emancipar-se da família, Wollstonecraft rapidamente encontra o seu lugar na sociedade, dispondo dos seus próprios meios de subsistência. O seu círculo de amigos privilegia a inovação, tratando-se, porém, de uma elite social e cultural onde o universo feminino é ainda uma minoria. Numa época em que os «salões» literários e filosóficos estão em pleno vigor em França, a maioria das mulheres inglesas continua limitada à esfera privada e às lides domésticas. Como refere Wollstonecraft, se às mulheres britânicas deve ser imputada alguma culpa, não será certamente relativa às suas reivindicações intelectuais, senão à sua ignorância e mesquinhez. Longe de serem contestadas, tais debilidades são incentivadas como qualidades próprias da feminilidade e é precisamente contra esse estado de coisas que Wollstonecraft se insurge, lutando não apenas no campo teórico, como também através do seu próprio estilo de vida. Para a autora, o que está em questão não se reduz à elaboração de teorias mais ou menos apelativas, mas deve ser encarado como uma luta por uma causa enraizada nas experiências da vida real, que deve ser conquistada através do estudo e fundamentada em argumentos válidos.

É indiscutível, penso eu, que no presente as mulheres se tornam estúpidas e viciosas por via da ignorância; e que desta observação parece evidenciar-se que de uma REVOLUÇÃO das maneiras femininas se poderia esperar os mais salutares efeitos que contribuíssem para a melhoria da humanidade. (Wollstonecraft 2017, 336)

Um dos pilares do pensamento de Mary Wollstonecraft é a crença na humanidade plena das mulheres. A igualdade de direitos que defende em Uma Vindicação dos Direitos da Mulher (2017 [1792]) coloca-a indiscutivelmente no campo de um feminismo igualitário, defendendo firmemente um modelo educacional que transforme as mulheres em seres autónomos e que as valorize enquanto criaturas racionais. A autora procura contestar certas representações das mulheres, salientando o que essas têm de injusto, preconceituoso ou, até mesmo, anticientífico. Um caso ilustrativo é o da sua crítica a Buffon, cujo trabalho Wollstonecraft considera um exemplo de manipulação dissimulada de dados empíricos com a intenção de corroborar teses comummente aceites. Para o cientista francês, as mulheres atingem a maturidade física mais cedo do que os homens pelo que uma mulher de vinte anos já terá atingido o seu pico de maturidade, enquanto um homem não pode ser considerado maturo antes dos trinta anos de idade. Não se deixando intimidar pelo prestígio científico do autor de tais teses, Wollstonecraft refuta-as peremptoriamente, alegando que nenhuma delas resiste ao teste da experiência da vida real.

Mas o que sustenta tal tipo de teses? Para Wollstonecraft, a explicação é dada pela aceitação supérflua da ideologia dominante e pela tendência para avaliar as mulheres apenas com base na aparência. Desafiando uma perspectiva meramente física, a autora defende que as mulheres devem ser vistas no seu todo: como corpo e mente. Assim, na sua Vindicação, Wollstonecraft conclui que uma concepção adequada de humanidade deverá ter por base o reconhecimento de que homens e mulheres partilham os mesmos ritmos de maturação: «A força física e esse traço de carácter no semblante que os Franceses designam por physionomie, as mulheres, tal como aliás os homens, não o adquirem antes dos trinta» (Wollstonecraft 2017, 135).

Wollstonecraft rejeita particularmente modelos de interpretação que consistentemente relegam o mundo das mulheres para segundo plano. Um deles é o modelo chauvinista da Bíblia, nascido da ignorância e alimentado pela autoindulgência, no qual as mulheres são vistas como seres de segunda categoria, a meio caminho entre os animais e os humanos. É justamente para combater tais visões do mundo e defender os direitos do seu próprio sexo que a autora se atreve a escrever a Vindicação: «apelo em favor do meu sexo — e não em meu próprio favor» (Wollstonecraft 2017, 27).

Wollstonecraft identifica outras formas de falar sobre as mulheres que, apesar de menos negativas, são igualmente exasperantes. São casos que Wollstonecraft acusa de serem flagrantemente paternalistas, advertindo não apenas para as suas consequências, como também para os conceitos tendenciosos que implicam. Com efeito, ao tentarem proteger as mulheres de possíveis perigos, tais concepções paternalistas acabam por menosprezá-las, subestimando o seu potencial físico e psíquico e transformando-as em seres angélicos, privadas de uma humanidade plena. É neste contexto que Wollstonecraft confere duras críticas a algumas das obras mais populares do seu tempo.[1]

Assim se passa com A Father's Legacy to His Daughters, de John Gregory, cuja loquacidade desagrada à autora. Ainda que simpatize com a obra, dado o afecto que o autor demonstra para com a sua esposa e as suas filhas, Wollstonecraft discorda do modo como aí são exaltadas as aparências e como se aconselha às mulheres que finjam ignorância para que o sexo oposto não se afaste por motivo de uma excessiva exibição de conhecimento.[2] A autora identifica algumas teses como particularmente perniciosas: a identificação de feminilidade com fragilidade; a convicção de que faz parte da natureza da mulher ser vaidosa e que, por isso, o seu interesse por roupas deve ser incentivado; ou ainda a ideia de que é expectável que as mulheres tenham um carácter amigável.

Wollstonecraft recorre a argumentos semelhantes nas duras críticas que dirige a Lord Chesterfield e Fordyce, autores de obras didácticas sobre a educação das mulheres. Neste contexto, Lord Chesterfield é acusado de ser muito protector, transformando as mulheres em criaturas tímidas e fracas, e Fordyce é considerado pretensioso e vaidoso pelo uso que faz de uma retórica superficial destinada a espíritos pouco cultivados. Recusando o sentimentalismo vulgar, que considera uma ameaça à dignidade das mulheres, Wollstonecraft defende que este tipo de textos tem efeitos nefastos para a sociedade e desaconselha enfaticamente a sua leitura. Para a autora, a concretização das mulheres enquanto seres humanos por direito não pode ceder a padrões culturais contrários aos seus direitos, daí a sua proximidade a uma filosofia de género da qual pode ser considerada percursora.

Num artigo sobre o papel do género nas nossas concepções de racionalidade, Sandra Harding (1984) lembra que os períodos de revolução científica e tecnológica trazem consigo maiores níveis de opressão contra as mulheres. Consequentemente, na sua análise sobre a relevância da periodização histórica, Harding alerta para o perigo de, ao mesmo tempo que se procede à identificação de um novo período ou de novos marcos científicos e tecnológicos, se negligenciar o facto de estes últimos terem sido contemporâneos (ou até mesmo contribuído para) a repressão das mulheres.[3]

O artigo de Harding lembra-nos que a sociedade do Iluminismo, apesar dos seus ideais progressistas, menospreza as mulheres. Com efeito, a luta de Wollstonecraft pode ser encarada como um primeiro passo para a instauração dos direitos das mulheres, uma luta que se esforça por conceder às mulheres a mesma dignidade atribuída aos seres humanos em toda a sua plenitude. Os direitos que Wollstonecraft defende são válidos independentemente do sexo ou do género na medida em que as diferenças biológicas entre os sexos já não podem ser usadas como pretexto para diminuir as pessoas que são fisicamente mais fracas e a sua vulnerabilidade não pode motivar a sua submissão a insultos ou humilhações. A autora não só critica a violência física de que algumas mulheres são vítimas, como também denuncia a violência psicológica. Torna-se, pois, inaceitável que mulheres, só porque são mulheres, tenham de suportar insinuações, piadas e comentários ofensivos de homens a quem é permitido escapar impune.

O desejo de Wollstonecraft de humanizar as mulheres leva-a a enfatizar a natureza humana como um todo — um conceito sem sexo. Segundo a autora, a natureza seria então definida segundo critérios de aperfeiçoamento e educação, independentemente do sexo, e que «é arbitrária a distinção sexual na qual os homens têm tão acaloradamente insistido» (Wollstonecraft 2017, 337). Razão, sentimento, imaginação, capacidade associativa, agilidade mental e física são encarados como atributos comuns a ambos os sexos. Afirmando que não há conjuntos de virtudes diferentes para homens e para mulheres, Wollstonecraft tenta desconstruir simultaneamente as qualidades erroneamente atribuídas às mulheres, bem como os requisitos que se espera que cumpram e dos quais os homens estão dispensados. Afinal, por que razão deve uma mulher ser bonita quando tal qualidade não é considerada necessária num homem? Qual o sentido de avaliar os seres humanos pela sua aparência física?

Wollstonecraft dedica várias páginas da sua Vindicação a uma avaliação crítica de certos estereótipos frequentemente aplicados às mulheres: infantilidade, delicadeza, modéstia e uma série «pseudovirtudes», que a autora acaba por reduzir a uma questão de mentalidades. Wollstonecraft afirma que o que é bom para as mulheres também o deve ser para os homens e defende as vantagens de uma uniformização sexual ética. Os homens e as mulheres nascem para ser autónomos e livres. No entanto, a forma como são educados compromete essa possibilidade, sendo que as mulheres são aí as maiores vítimas pois o caminho para a igualdade é para elas mais tortuoso. Uma vez que o Estado se encarrega da defesa dos mais vulneráveis, o mesmo deverá, por conseguinte, conceder preferencial atenção às mulheres. Dada a especificidade dos sexos, Wollstonecraft considera que o caminho para a igualdade passa também por levar em conta as condições existenciais específicas de cada um deles. Como tal, defende que o parlamento deve incluir mulheres, antecipando uma futura reivindicação do movimento feminista, em nome da igualdade de representação. A sociedade leva as mulheres a uma sexualização mental precoce e indevida e é responsável por comportamentos absurdamente diferenciados. Prenúncio do feminismo radical, Wollstonecraft estuda a etiqueta e a moda, certos rituais e idiossincrasias, e ridiculariza ritos de passagem obsoletos tais como os bailes de debutantes, onde as meninas eram apresentadas à sociedade. Para além disso, indigna-se com o cavalheirismo dos homens, que considera inadequado e até mesmo ofensivo. Por que motivo não pode uma mulher fechar uma porta atrás de si ou pegar num lenço de bolso? Que razão há para considerar que só os homens são corajosos? Por que devem as mulheres ser reduzidas a flores de estufa e ver contrariada a sua capacidade física? Qual o sentido de se fingirem criaturas de corpo e mente frágeis quando isso não corresponde à verdade? O ideal estereotipado, construído socialmente, apresenta as mulheres como seres extremamente delicados, débeis e sempre à beira do colapso, como criaturas demasiado fracas para suportar as adversidades. “Nascida mulher — e nascida para sofrer”: assim se define a personagem central do romance de Wollstonecraft, Maria, publicado em 1798 (Wollstonecraft 1992, 133).[4] No entanto, a verdade é que a representação da feminilidade foi sempre um assunto masculino.

Embora não use as palavras sexo e género, Wollstonecraft é, de facto, pioneira na distinção entre esses dois conceitos, abrindo caminho para separar o biológico do cultural. Na introdução à Vindicação, quando escreve sobre o miserável estado de coisas de tudo quanto diz respeito às mulheres, a autora responsabiliza os homens por certas noções que estão na origem de uma confusão entre o que pertence à natureza e o que pertence à educação:

De facto, a conduta e as maneiras das mulheres provam com evidência que o espírito delas não goza de boa saúde; porque, tal como acontece com as flores plantadas em solo demasiado rico, a força e a utilidade são sacrificadas à beleza […]. Atribuo uma das causas deste infrutuoso florescimento ao falso sistema de educação, recolhido em livros sobre esta matéria escritos por homens que consideram o sexo feminino como mulheres e não como criaturas humanas, e mais ansiosos por fazer delas amantes sedutoras do que esposas afeiçoadas e mães racionais. (Wollstonecraft 2017, 35-36; ênfase da autora)

Para complementar esta desmistificação, Wollstonecraft aponta traços «femininos» nos homens, sobretudo naqueles de quem se esperaria que se afirmassem pela sua virilidade, tal como os membros do exército. Esses homens, paradigmáticos de um modo de vida masculino, comportam-se de maneira frívola quando estão fora do trabalho e são conhecidos pela sua galanteria e superficialidade. Porém, a sociedade tolera certos comportamentos nos homens que desaprova quando se trata de mulheres. Assim, embora, teoricamente, esses homens se situem nos antípodas de uma visão feminina do mundo, na verdade encontram-se bem próximos dela, ilustrando assim o argumento de Wollstonecraft contra o determinismo biológico e pela igualdade de direitos. Privadas de qualquer base biológica ou psicológica, as idiossincrasias relacionadas com o sexo são construções artificiais e imaginárias que prosperam sob a influência de um sistema educativo inadequado e contraproducente. No entanto, na maioria das vezes, as responsáveis pela perpetuação dessas construções são as próprias mulheres na medida em que cedem à ideologia dominante, seja por inércia ou mesmo por mesquinhez. Se Wollstonecraft denuncia os estereótipos usados para caracterizar as mulheres, não deixa de considerar as razões que os motivaram e que os justificam. Nesse sentido, culpa as mulheres por serem preguiçosas e não se quererem incomodar em alterar a situação em que se encontram; denuncia a priorização do momento presente em detrimento do futuro pelo qual deveriam lutar; e reconhece que as mulheres têm, em geral, mais dificuldade em levar a cabo tarefas mentais que envolvam pensamento abstracto.

É importante ressaltar que tais falhas não são de forma alguma constitutivas da natureza feminina, sendo antes adquiridas como consequência de uma educação deficitária. O retrato implacável que Wollstonecraft traça das mulheres não significa, igualmente, que aceite a validade de todas as críticas que lhes são dirigidas, especialmente quando estas são formuladas por mentalidades preconceituosas ou conformistas. A autora recusa-se a considerar as mulheres a partir de um ponto de vista masculino e, não só questiona os comentários depreciativos feitos pelos homens, como também o que nelas é valorizado de uma forma paternalista. Um modo tipicamente masculino de olhar para as mulheres envolve, é claro, a sua objectificação sexual, o que frequentemente acarreta uma equiparação grosseira entre reputação e virtude. A sociedade considera a virgindade o único código de honra feminina e o comportamento de uma mulher é bom se for casto:

Porém, no que diz respeito à reputação, a atenção vê-se confinada a uma única virtude — a castidade. Se a honra de uma mulher, como absurdamente lhe chamam, estiver salvaguardada, ela pode negligenciar todos os deveres sociais, até mesmo mais, pode arruinar a família por via do jogo e de extravagâncias; e, contudo, apresentar-se ainda de rosto impoluto — pois na verdade é uma mulher respeitável! (Wollstonecraft 2017, 244)

Tal hipocrisia é inaceitável para Wollstonecraft que, como acima mencionado, insiste na distinção entre sexo e género. Como tal, não pode aceitar a virtude da modéstia como algo que está exclusivamente ligado à sexualidade e apenas é valorizado nas mulheres pois, para a autora, é igualmente válido pensar na modéstia masculina como uma virtude. Homens e mulheres são seres humanos com direitos e deveres iguais e, porque os estereótipos que lhes estão associados provêm da ideologia dominante, não devem receber mérito algum. Assim são lançadas as bases para as teorias de género que lhe sucederiam anos mais tarde.

 

 

William Godwin, um amante honesto?

Embora escrevesse diários e falasse livremente sobre si mesma nas suas obras, o relato mais bem informado que temos de Mary Wollstonecraft foi escrito pelo seu esposo, William Godwin. Memoirs of the Author of the Rights of Woman (1987 [1798]) é um livro póstumo que certamente teria desagradado Wollstonecraft, uma vez que Godwin recorre aos estereótipos tradicionais relativos à dicotomia masculino/feminino. Na verdade, é possível dizer que a obra esboça uma espécie de uma teoria de género (que o autor não identifica como tal) na qual se detectam algumas influências de Rousseau.

De facto, Memoirs adota uma abordagem um tanto paternalista, que se reflecte no retrato que traça de Wollstonecraft como um complemento de Godwin, bem como na profunda indiscrição que revela ao descrever detalhadamente a vida da autora: desde as suas malogradas histórias de amor, às tentativas de suicídio e depressão prolongada, até à sua morte após o parto. Não obstante, a biografia revela igualmente que a infância e a adolescência de Wollstonecraft foram marcadas por um pai despótico, por uma educação deficitária que contrastava de forma gritante com o investimento que era feito na educação do seu irmão, bem como pelas constantes humilhações sofridas pela sua mãe às mãos do pai. Sem nunca ter tido acesso à educação clássica em latim e grego, típica para qualquer estudioso daquela época, Wollstonecraft chegou onde chegou de forma autodidacta. Leitora compulsiva por dever e vocação, era intelectualmente motivada pelo fluxo de textos que lhe caía nas mãos. Enquanto trabalhava e escrevia recensões críticas para um jornal, procurou aprofundar a sua formação lendo livros que apareciam no seu caminho, viajando para o estrangeiro (para Portugal, França e Suécia) e, principalmente, reflectindo sobre o quotidiano, que viveu de forma intensa e apaixonada.

Não faz parte dos propósitos do presente ensaio analisar o pensamento de Godwin ou comentar detalhadamente o livro de memórias em questão. Porque o interesse nessa obra se relaciona, especificamente, com o contributo que aí é dado para uma concepção de género, propomo-nos a analisar uma passagem particularmente relevante nesse contexto. No capítulo 10 de Memoirs, Godwin ocupa-se daquilo a que chama o «carácter intelectual» de Wollstonecraft e traça o perfil psicológico de ambos os membros do casal. No entanto, à medida que começa a examinar os respectivos temperamentos, Godwin acaba por avançar para uma caracterização explícita das diferentes mentalidades e comportamentos de homens e mulheres em geral. A análise que se segue centra-se na segunda edição do livro de Godwin, suporte ideal para identificar os estereótipos típicos de masculinidade e de feminilidade que desempenham um papel crucial na sua concepção de género.[5]

Godwin escreve: «Um aspecto no qual os dois sexos se distinguem particularmente um do outro tem que ver com o facto de um estar mais habituado a exercer os seus poderes racionais, e o outro estar mais habituado a usar os sentimentos» (Godwin 1987, 276). Ainda que o autor pareça querer expressar uma verdade absoluta, as suas palavras ecoam meramente aquela que é a opinião dominante e adoptada pelos seus contemporâneos como parte do imaginário da época, mas não só. Godwin procura, porém, fornecer uma razão biológica para esta diferença, sob o argumento da diferenciação física: «As mulheres têm uma estrutura corporal que é mais delicada e vulnerável do que a dos homens» (Godwin 1987, 276). Esta justificação é ainda hoje utilizada (nomeadamente por proponentes do feminismo da diferença) para sublinhar a importância do corpo como um modo de ser e de pensar feminino.

Não obstante a sua propensão para adoptar os estereótipos de género dominantes, Godwin não permanece prisioneiro de um determinismo biológico que certamente desagradaria a Wollstonecraft. O autor alude, ainda que subtilmente, à educação habitualmente dada a jovens rapazes e raparigas, e considera que a diferença introduzida no campo pedagógico pode ser parcialmente responsável pelas particularidades de cada sexo: por receberem uma educação intelectualmente menos robusta, as mulheres estão indevidamente mais sujeitas ao domínio do sentimento. De acordo com a visão do mundo racionalista típica do Iluminismo do século XVIII, o sentimento é visto como uma predisposição inferior e encarado com desconfiança. A dicotomia razão/sentimento faz parte de uma longa lista de oposições, tais como como humano/animal, mente/corpo, cultura/natureza, masculino/feminino, etc., que equivalem a uma também dicotómica visão da realidade, categorizada por pares. Nessa categorização, um dos membros de cada par estabelece a regra, enquanto o outro permanece numa categoria hierarquicamente inferior, da qual se espera que desempenhe um papel subserviente. É isso que acontece com a razão e o sentimento que, para Godwin, são inquestionavelmente paralelos ao par homem/mulher.

À medida que se percorre Memoirs, torna-se óbvio que tudo aquilo que diz respeito à racionalidade, a uma forte capacidade dedutiva ou ao poder argumentativo lógico é visto como característico dos homens. Godwin admite, porém, que tais características possam ter efeitos perversos, pois, no limite, poderão levar ao cepticismo e à distorção dos sentimentos. Consequentemente, o autor considera que os casais (heterossexuais) têm uma grande vantagem sobre os indivíduos solteiros uma vez que a conduta intuitiva e sentimental das mulheres pode funcionar como um dissuasor para os homens, que evitam assim um racionalismo exacerbado. Segundo Godwin, tanto os homens como as mulheres existem para se aperfeiçoarem mutuamente. As qualidades psíquicas e morais de cada um complementam-se, contribuindo para um equilíbrio saudável do casal. Assim sendo, é possível inferir uma das vantagens resultantes da associação entre pessoas dos dois sexos: cada uma delas contrabalança os principais erros em que a outra incorre.

Estas considerações introdutórias são seguidas de uma análise detalhada da sua relação conjugal com Wollstonecraft, que é tratada como caso exemplar da distinção homem/mulher. Godwin descreve o modo como, ao longo da sua vida, sempre foi estimulado a valorizar o intelecto, cultivando o espírito analítico e as distinções lógicas. Não obstante, admite ser desprovido de sentido estético e pouco entusiástico dos prazeres da imaginação. Contudo, esta característica, que é inicialmente apresentada como uma falha no seu «valor intelectual», acaba por ser considerada valiosa na medida em que surge como uma idiossincrasia de um modo de pensar masculino, que não se presta a caprichos, mas que não impede uma experiência vívida dos prazeres da imaginação. São, então, as preferências pessoais de Godwin, particularmente direccionadas para a reflexão e investigação intelectual, que o levam a entregar-se a uma constante avaliação e reavaliação dos diferentes assuntos que o interessam, bem como ao aperfeiçoamento da consistência interna dos seus argumentos.

Wollstonecraft, por outro lado, é colocada no campo oposto, onde reinam a intuição e o sentimento, características que se revelam fundamentais para a posição que pretende assumir. De acordo com Godwin, a forma como a autora lida com a realidade assume um carácter mais estético do que intelectual. Tal carácter reflecte-se no modo como a sua sincera generosidade e profundo sentido de justiça a levam a adoptar certas posições, bem como a tomar decisões pessoais com uma surpreendente liberdade. Segundo o autor, todas essas qualidades podem ser atribuídas à amabilidade de Wollstonecraft e terá sido essa mesma característica que a salvaguardou de juízos artificiais. Em suma, as teses que Godwin desenvolve em Memoirs assumem um tom assaz paternalista e é altamente questionável que Wollstonecraft as pudesse ter apoiado. Ademais, a assertividade com que Godwin relata factos sobre os quais a autora deliberadamente manteve silêncio nos seus próprios escritos, poderá mesmo tê-la levado a considerá-lo um amante desonesto.

 

Rousseau, um inimigo a abater?

Embora a crítica de Wollstonecraft tenha como alvo o machismo e o paternalismo, a autora não ignora por completo o ideal feminino proposto por Rousseau. De facto, Rousseau provoca em Wollstonecraft uma reacção ambivalente. Por um lado, existem afinidades inquestionáveis ​​entre eles. Ambos os autores prezam certos valores que os levam a compartilhar um amor romântico pela natureza e pela contemplação da paisagem, bem como uma forte posição em defesa dos direitos humanos, com os quais estão profundamente comprometidos. Até mesmo no que diz respeito aos deveres da maternidade, nomeadamente aos direitos da amamentação e aos cuidados com a criação dos filhos, verifica-se também uma perfeita harmonia entre as posições de Wollstonecraft e as de Rousseau. Por outro lado, se os compromissos de Rousseau se circunscreveram em larga medida à teorização, para Wollstonecraft a praxis foi sempre primordial. Esta discrepância é ilustrada, por exemplo, pelo facto de Rousseau não ter hesitado em abandonar os filhos que teve com Marie Therèse Le Vasseur sob o pretexto de lhe faltarem condições adequadas para os criar, enquanto Wollstonecraft nunca desistiu do seu trabalho como mãe e educadora.

Com efeito, a vida e a obra de Rousseau são marcadas por tensões e contradições que se tornam evidentes no conflito entre as teorias do autor e a sua conduta na vida real. Defensor acérrimo dos direitos dos cidadãos, Rousseau entregou os próprios filhos à roda dos expostos,[6] atribuindo ao Estado o dever de os educar. Ademais, apesar de teoricamente proteger as mulheres, e ser seu protegido, não se absteve de as abandonar sempre que, na sua vida privada, deixaram de lhe interessar. Politicamente, as suas ideias serviram tanto liberais como totalitários e, quanto às teorias que desenvolveu sobre educação, verifica-se um simultâneo apelo aos sentimentos e à razão. Em suma, não será porventura surpreendente que tal ambivalência permeie também a sua abordagem à condição das mulheres.

De facto, embora o autor descreva as mulheres como seres mais próximos da natureza, é entre os homens que procura apoio para encontrar o caminho da razão. O processo de desnaturalização que propõe não as contempla e, embora valorize a paixão, os sentidos e as emoções que, à época, eram vistas como as qualidades femininas por excelência, acaba por seguir a mentalidade dominante que subordinava tais características às mais altas virtudes da razão. Consequentemente, Rousseau acaba por rebaixar as mulheres a uma categoria inferior de subordinação aos homens, de acordo com a qual deverão ser criadas e educadas.

Quanto à relação entre os sexos, Rousseau tem claramente como objectivo diferenciá-los. Aqui reside a sua maior relevância para os estudos e teorias de género, aos quais aporta um contributo de forma bastante infeliz. Ao recorrer à natureza para justificar diferenças fundamentais entre homens e mulheres, Rousseau acaba por evidenciar a ideologia que subjaz às suas análises. De facto, o modo como procura enfatizar tais diferenças reduz a posição das mulheres a um mero complemento ou ferramenta ao serviço dos interesses dos homens e da sociedade.

Pense-se na sua obra Émile, ou da Educação (1969 [1762]), e no modo como o homem surge aí sempre em primeiro lugar. É apenas no capítulo V que uma companheira entra na vida do protagonista para, desde o primeiro momento, existir apenas em função e por relação a ele. Além disso, a racionalidade alcançada por esta personagem feminina é sempre subordinada ao homem, cujos interesses ela deve servir. Na obra de Rousseau coexistem, pois, valores revolucionários, incorporados pelo novo homem que o autor propõe, e valores reaccionários, evidenciados pelo modo como são encaradas as mulheres. A este propósito, lembremos os mitos ancestrais da domesticidade que o autor recupera para explicar o papel da personagem feminina em questão. Em Émile, quando apresenta Sophie, a companheira que idealiza para o jovem protagonista, o autor começa por examinar a diferença entre os sexos, apontando algo que os aproxima:

Em tudo, excepto no sexo, a mulher é idêntica ao homem; tem os mesmos órgãos, as mesmas necessidades, as mesmas faculdades; a máquina está construída da mesma maneira, as peças são as mesmas, o funcionamento também; a figura é semelhante; olhai como quiserdes e vereis que eles diferem entre si apenas em termos de grau. (Rousseau 1969, 692)

No entanto, à medida que a narrativa se desenvolve, são introduzidas diferenças sexuais que formam uma imagem passiva e fraca das mulheres, contrastante com o carácter activo e forte dos homens: «Um deles deve ser activo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um deles queira e possa, e basta que o outro ofereça pouca resistência» (Rousseau 1969, 693). Ao opor a passividade e a fraqueza femininas com o vigor masculino, a posição de Rousseau parece evocar Aristóteles. Tal afinidade é, porém, apenas aparente na medida em que, ao contrário de Aristóteles, Rousseau não considera que a mulher é simplesmente um homem imperfeito. A mulher é, para o autor de Émile, um ser perfeito no seu próprio género, especialmente criado para agradar aos homens. Como tal, é na sua própria fraqueza que reside o seu poder, nomeadamente o poder de sedução.

Uma das teses que Rousseau defende mais consistentemente é a de que o homem nasce livre e, portanto, é livre por natureza. Contudo, por causa de uma série de contingências que resultaram na perda dessa irrecuperável prerrogativa, será necessário procurar uma nova natureza. Não obstante, a liberdade só é recuperada através da obediência à lei. Ao homem é, assim, atribuída a tarefa de reinventar a natureza, de forma artificial ou política, e as leis por ele elaboradas devem ter como objectivo consertar o mal causado pela sociedade. Com efeito, é a sociedade que corrompe o homem, agindo sobre os seus sentimentos e paixões que, apesar de serem originalmente simples, naturais e inócuos, se tornam complexos e prejudiciais. Num dos seus primeiros textos sobre filosofia política, o Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens (1755), Rousseau responsabiliza as mulheres pelas desordens causadas pela paixão romântica, que é por natureza impetuosa, violenta e, como o próprio designa, terrível:

Entre as paixões que agitam o coração do homem há uma ardente, impetuosa, que torna um sexo necessário ao outro; paixão terrível que enfrenta todos os perigos, deita abaixo todos os obstáculos e que nos seus furores parece feita para destruir a espécie humana que afinal se destina a conservar. O que será dos homens que caem nesta raiva desenfreada e violenta, sem pudor ou contenção, e que lutam todos os dias pelos seus amores à custa do seu sangue? (Rousseau 1969, 157)

Só a lei pode controlar um tipo de paixão como o que aqui é descrito. Tal controlo através da lei deve, porém, ser feito com muito cuidado sob pena de que a mesma exacerbe a violência da paixão. Segundo Rousseau, seria conveniente descobrir se este tipo de desordem tem origem nas próprias leis. Ao longo do texto, o autor distingue dois aspectos da paixão romântica: o aspecto físico e o moral. Enquanto o primeiro diz respeito à atracção natural entre os sexos, o segundo remete para as regras que obrigam o desejo a concentrar-se em apenas um objecto. Tais regras, impostas pela sociedade e seguidas com relutância pelos homens, são incentivadas pelas mulheres:

[É] fácil perceber que o aspecto moral do amor é um sentimento fictício, nascido do uso social e celebrado pelas mulheres com muita habilidade e cuidado para estabelecer o seu império e tornar dominante o sexo que deveria obedecer. (Rousseau 1969, 158)

De acordo com Rousseau, serão, portanto, motivos de ordem estratégica que levarão as mulheres a contribuírem para uma codificação social da paixão natural, envolvendo-a em regras manifestamente difíceis de cumprir e que conduzem a inúmeras discordâncias e disputas. Trata-se, afinal, do «sexo que deve obedecer», muitas vezes retratado negativa e até diabolicamente no pensamento de Rousseau.

Consideremos dois aspectos aí particularmente significativos: a política e a educação. Ao nível político, Rousseau defende a liberdade do homem e, como tal, a importância atribuída ao contrato social — um pacto de associação entre cada membro individual e a comunidade como um todo — é reflectida em leis que expressam a vontade individual. Opondo-se ao conceito de submissão natural, os contratualistas propõem um poder livremente estabelecido por acordo comum. De modo semelhante, Rousseau pretende abolir o pactum subjectionis. Para o autor, as relações de subordinação não são naturais e os mais fracos não se devem submeter aos mais fortes. Por conseguinte, a sua proposta consiste num contrato social que tem por base um pacto de associação prévia capaz de originar uma vontade geral, composta pela vontade de todos os membros da sociedade que, desta forma, se tornam cidadãos. Por acção do contrato social, o homem permanece livre pois, obedecendo aos outros, obedece simultaneamente a si próprio. A lei, que expressa uma vontade geral, é a mesma para todos e a igualdade revela-se algo que deve ser construído.

O facto de Rousseau traçar um retrato da sociedade que não tem por base o auto-interesse racional, como havia sido proposto por Hobbes, e que o estabelecimento de um pacto pareça implicar uma capacidade natural para a bondade e a compaixão, explica a simpatia imediata que o autor suscita em algumas filósofas, que o consideram um defensor das virtudes femininas e da relevância dos afectos. E, no entanto, Rousseau traça igualmente uma distinção clara entre duas dimensões da vida: a dimensão da cidadania e da liberdade, na qual inclui os homens, e a dimensão da submissão doméstica, para a qual as mulheres são relegadas. Ainda que, ao prometer a participação activa no poder, o contrato social permita teoricamente a todos os cidadãos a práctica da liberdade, as mulheres são efectivamente deixadas de lado e submetidas ao controlo masculino. Assim, torna-se evidente que Rousseau apoia a liberdade dos homens, mas não a das mulheres. Porque está ciente desse mesmo facto, o autor tenta defender a sua posição na sua Dedicatória à República de Genebra:

Poderia eu esquecer esta preciosa metade da república que faz a outra feliz e cuja doçura e sabedoria mantêm a paz e os bons costumes? Amáveis e virtuosas cidadãs, o destino do vosso sexo será sempre governar o nosso. Sorte a nossa quando o vosso poder casto, exercido somente na união conjugal, não se faz sentir senão para a glória do Estado e a felicidade pública! […] Sejam então sempre o que são, as castas guardiãs dos costumes e dos gentis laços de paz, e continuem sempre a fazer valer os direitos do coração e da natureza em prol do dever e da virtude. (Rousseau 1969, 119-120)

As qualidades atribuídas a esta «preciosa metade» são uma armadilha. A amabilidade e a inocência que Rousseau atribui às mulheres são precisamente as características que as manterão circunscritas à esfera privada, a partir da qual poderão indirectamente influenciar a res publica como “castas guardiãs dos costumes” capazes de nutrir «gentis laços de paz» (ibid.). Contra a democracia radical que o próprio propõe, Rousseau impede as mulheres de governar. Esta posição não se trata, porém, de uma mera aceitação do preconceito comum da época, consistindo antes numa tentativa de defender a unidade de um corpo político no qual as mulheres seriam um problema, pois representam o que é heterogéneo e inassimilável.

É, assim, possível dizer que a teoria política de Rousseau assenta, em última instância, na própria subjugação das mulheres. De facto, se o contrato social é uma forma de renaturalizar os homens, o contrato sexual desempenha um papel idêntico em relação às mulheres, pois é através dele que os homens recuperam a natureza. Desse modo, o contrato social entre os homens só se torna possível se, em primeiro lugar, tiver ocorrido um contrato sexual entre eles e as mulheres. O sentimento e a paixão devem servir a sociedade e o que é privado deve submeter-se à comunidade.

Porque os diferentes papéis sexuais são importantes para o bem-estar da cidade, também a sexualidade passa a ser politizada. Tendo potencial para regular as paixões dos homens, a integridade e contenção das mulheres deve cumprir essa função. É através das mulheres que os homens aprendem a amar os outros, começando pelos mais próximos, estendendo depois esse sentimento aos cidadãos e, finalmente, ao Estado. A estabilidade no seio da família é o primeiro passo para garantir a estabilidade do Estado. O papel secundário atribuído às mulheres é ainda ilustrado pelo processo de elaboração de leis, que continua a ser uma tarefa predominantemente masculina. Dado o limitado alcance dos seus interesses e vontades, as mulheres são circunscritas à esfera de influência dos homens que lhes estão mais próximos — maridos, amantes, pais, filhos. Os homens estão interessados ​​nas leis do universo; as mulheres contentam-se com as leis do coração. A relevância política que assumem — da qual, na maioria das vezes, não estão sequer cientes — é meramente acidental. Mas, porque isso não significa que o seu papel não seja decisivo, é necessário proporcionar-lhes uma educação adequada. Nesse sentido, Rousseau considera que a pedagogia pode ser uma fonte de virtude, dotada de uma dimensão política que acolhe as mulheres.

O novo homem deve ser orientado por uma educação diferente. Para além de ser a grande obra pedagógica de Rousseau, Émile é um texto igualmente relevante de uma perspectiva antropológica e política. A estrutura psicológica que dá consistência a este tratado lembra-nos a alma tripartida de Platão: emoção, paixão e razão são características que devem ser tomadas em consideração na educação dos jovens. Contudo, o amour de soi é a força impulsionadora de toda a acção humana. Como tal, Émile deve ser educado para fazer do amor próprio uma fonte de outras virtudes.

Rousseau é um educador paciente, capaz de esperar, de aceitar e de desenvolver gradualmente o contributo dos sentidos para uma plena integração com a natureza. Se o homem natural é construído, então a companheira ideal deve ser produzida para ele: «Depois de termos levado a cabo a tarefa de formar o homem natural, vejamos também como se deve formar a mulher que se lhe adequa» (Rousseau 1969, 700). De facto, só o homem é criado para ser autónomo, enquanto a mulher surge apenas como sua subordinada: o meio para o qual o homem é o fim. Assim se justifica a necessária diferença entre a educação masculina e a feminina: «Assim que fica demonstrado que o homem e a mulher não são nem devem ser constituídos da mesma maneira, nem em termos de carácter nem de temperamento, segue-se que não devem ter a mesma educação» (ibid.). Não obstante, as respectivas formas de educação devem respeitar a natureza de modo a evitar que ambos, homens e mulheres, percam a força que os caracteriza:

Se quereis ser sempre bem guiados, segui sempre as indicações da natureza. Tudo o que caracteriza o sexo deve ser respeitado como estabelecido por ela. Dizeis constantemente: «As mulheres têm este e aquele defeito que nós não temos.» O vosso orgulho engana-vos; seriam defeitos para vós: mas para elas, são qualidades; tudo correria menos bem se elas os não tivessem. Impedi esses pretensos defeitos de degenerar, mas não vos atreveis a destruí-los. (ibid.) 

A natureza feminina deve ser preservada, incluindo nas suas falhas. Uma mulher idêntica a um homem perderia a maior parte do seu poder. Rousseau valoriza a complementaridade, embora a apresente de modo paternalista:

Nem todas as faculdades comuns aos dois sexos se encontram nestes igualmente distribuídas; mas, consideradas no seu todo, complementam-se. Uma mulher vale mais como mulher e menos como homem; sempre que faz valer os seus direitos, ela tem vantagem; sempre que procura usurpar os nossos, fica aquém de nós. (Rousseau 1969, 701)

Tal como os homens, também as mulheres devem reconstruir a sua natureza, que é primitiva e sexual e, portanto, responsável por submetê-las à vontade da paixão. Tais características acabam por aprisionar as mulheres à sensualidade, tornando-as mais dependentes dos seus corpos do que os homens:

Não há paridade entre os dois sexos quanto às consequências do sexo. O macho só é macho em certos momentos, enquanto a fêmea é fêmea durante toda a vida ou pelo menos na juventude; tudo a reconduz incessantemente ao seu sexo, e, para que as funções deste sejam adequadamente cumpridas, ela precisa de uma constituição que lhe corresponda. (Rousseau 1969, 697)

A natureza feminina é moldada, as mulheres são domesticadas e reduzidas a um instrumento de regulação das paixões masculinas. É, portanto, urgente dotá-las de uma segunda natureza, que só pode ser alcançada através da domesticação das paixões, esse factor disruptivo e simultaneamente instrumento de poder. Na perspectiva de Rousseau, o poder das mulheres encontra-se precisamente na sua capacidade de sedução, que as próprias devem aprender a gerir. Para o autor, a relação entre os dois sexos é eminentemente litigiosa, ancorada num conflito entre conquista e submissão. A mulher regula a paixão romântica através de um jogo de oferta e recusa, no qual finge obedecer, despertando assim o desejo no homem.

As virtudes femininas concebidas para educação de Sophie — a já mencionada personagem feminina de Émile — nunca são pensadas como algo de benéfico para a própria. É ao homem e à sociedade que tais virtudes devem servir: a castidade, a reputação, a aparência e a submissão são aspectos da vida que estão intimamente ligados à política, e cujo cultivo contribui para a promoção da ordem social. Sophie é, pois, a personificação das teses de Rousseau sobre o feminino, revelando assim a sua ambiguidade em relação às mulheres. Se, por um lado, o autor as elogia como educadoras, por outro lado, restringe esse papel à educação das crianças pequenas. O seu trabalho pedagógico deixa, pois, de ser suficiente quando as crianças se tornam adolescentes e entram na idade adulta, altura em que devem passar a estar sob a orientação de um tutor masculino. Sophie é definida em relação aos outros: ao seu marido e aos filhos que poderão vir a ter no futuro. É caracterizada pela falta de precisão, pela indefinição, submissão, mediocridade e racionalidade prática. Trata-se de um ser humano sombrio e isolado que veicula as representações sociais predominantes da época. É por isso que podemos dizer que, tal como ocorre com Wollstonecraft e Godwin, embora não use a palavra género, também Rousseau contribuiu para a criação desse conceito.

[1] Ver, por exemplo, Wollstonecraft e Godwin 1987, 237.

[2]  Ver Wollstonecraft e Godwin 1987, 172-3.

[3] Ver Harding 1984, 43-63.

[4] A menos que expressamente indicado, todas as traduções são da responsabilidade da autora e/ou da tradutora.

[5] Ver Godwin 1987, 276-7.

[6] A roda dos expostos, também conhecida como roda dos enjeitados, consiste num mecanismo giratório utilizado para abandonar crianças recém-nascidas em conventos ou instituições de caridade. A prática popularizou-se na Europa durante a Idade Média e vigorou até meados do século XIX.

 

Referências

Ferreira, Maria Luísa Ribeiro. Introdução a Mary Wollstonecraft, Uma Vindicação dos Direitos da Mulher (trad. Elisabete M. de Sousa). Lisboa: Antígona, 2017: pp. 5-23.

Ferreira, Maria Luísa Ribeiro. «Revisitando a caixa de Pandora: Mary Wollstonecraft e a educação da humanidade pelas mulheres». In Também há mulheres filósofas. Lisboa: Caminho, 2001: pp. 95-131.

Godwin, William. Memoirs of the Author of the Rights of Woman. Londres: Penguin Classics, 1987.

C. Gould, Carol (ed.). Beyond Domination. New Perspectives of Women and Philosophy. New Jersey: Rowman and Littlefield, 1984.

Harding, Sandra. «Is Gender a Variable in Conceptions of Rationality? A Survey of Issues». In C. Gould (ed.), Beyond Domination. New Perspectives of Women and Philosophy. New Jersey: Rowman and Littlefield, 1984.

Rousseau, Jean-Jacques. Oeuvres Complètes. t. IV. Émile, livre V. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1969.

Rousseau, Jean-Jacques. Oeuvres Complètes. t. III. Discours sur l'Origine de l' Inégalité parmi les Hommes, t. III. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1969.

Wollstonecraft, Mary e Godwin, William. A Short Residence in Sweden and Memoirs of the Author of the  Rights of Woman. Londres: Penguin Classics, 1987.

Wollstonecraft, Mary. An Historical and Moral View on the French Revolution and the Effect it has Produced in Europe, cap. I, Political Writings. Oxford: Oxford University Press, 1994.

Wollstonecraft, Mary. Uma Vindicação dos Direitos da Mulher (trad. Elisabete M. de Sousa). Lisboa: Antígona, 2017. 

Wollstonecraft, Mary. Mary and Maria. Londres: Penguin Books, 1992.

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