COMO CITAR:
Ramos, Inês. «Stanley Price, James Joyce and Italo Svevo: The Story of a Friendship». Forma de Vida, 2017. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0095 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0095
Inês Ramos
Em James Joyce and Italo Svevo: The Story of a Friendship, Stanley Price explora a ideia de que a amizade que Joyce e Svevo desenvolveram a partir de 1907 determinou, em medidas diferentes, o percurso literário dos dois autores. Tomando por base um quadro de relação em que Svevo funciona como uma espécie de pai para Joyce, Price procura dar a ver que Svevo influenciou decisivamente a obra de Joyce, constituindo-se como fonte de conhecimento do judaísmo e, num sentido mais profundo, como modelo para Leopold Bloom, protagonista de Ulysses.
O primeiro capítulo, «First Meeting», centra-se na casualidade que juntou Svevo e Joyce na Berlitz School de Trieste, em 1907. Joyce tinha sido colocado nessa escola depois de passar por Paris, Zurique e Pola (na base naval austríaca) à procura de trabalho. Svevo queria melhorar o inglês e foi à procura de um professor do qual tinha ouvido falar. Joyce tinha vinte e cinco anos de idade e alguns textos publicados, o mais relevante dos quais Chamber Music (1907); Svevo tinha quarenta e cinco anos e dois romances publicados por conta própria, Una Vita (1893) e Senilità (1898). Price sublinha o carácter extraordinário desse primeiro encontro fazendo notar que a ida de Joyce para Trieste foi o momento final de uma viagem longa e atribulada:
To meet Joyce on that particular spring day in 1907, all Svevo had to do was take the tram to the centre of Trieste and walk a few blocks to the Via San Nicolò. For Joyce to meet Svevo had been a longer journey – 1,5000 miles by boat and train across Europe, with several enforced detours. (p. 12)
O que há de curioso na viagem até Trieste é o facto de Joyce não ter programado ir até Trieste; no fundo, é o facto de ter havido uma conjugação de circunstâncias inesperada. Joyce foi para Trieste porque não conseguiu trabalho como professor em Paris e em Zurique e porque, quando estava colocado em Pola, surgiu a oportunidade de preencher uma vaga na escola de Trieste. E, em última análise, a viagem dependeu do facto de Joyce ter pedido dinheiro emprestado a amigos que ia fazendo pelo caminho. Acerca deste último ponto, Price conclui: «From his father, Joyce had inherited a very powerful borrowing gene.» (p. 14).
A ideia de que Joyce «herdou» um talento, ou uma necessidade, para pedir dinheiro emprestado é parte importante de uma leitura psicológica mais profunda que faz radicar os defeitos de Joyce no pai de Joyce. Por referência a episódios parecidos ao da viagem até Trieste, Price apresenta uma história de vida marcada pela instabilidade e, numa perspectiva explicativa, sugere que Joyce imitou comportamentos do pai. Como John Stanislaus Joyce, Joyce bebia sem moderação e tinha uma dificuldade particular em gerir os gastos domésticos. Enquanto esteve em Trieste, teve nove moradas diferentes precisamente porque não conseguia pagar as rendas. Curiosamente, essas moradas acabaram por dar origem a um dos itinerários turísticos mais famosos de Trieste e, dessa maneira, a uma espécie de monumento de um dos aspectos mais negativos da vida familiar de Joyce. Mas mudar muitas vezes de casa é, neste argumento, um aspecto de uma tendência psicológica para procurar muitas vezes a mudança ou a aventura. Price relaciona essa tendência com uma confiança nas próprias capacidades e com uma energia inesgotável: «Drunk or sober, broke or living on loans, Joyce was never to be short of energy, physical or mental.» (p. 45)
Parte da descrição que Price faz da amizade entre Joyce e Svevo depende da ideia de que Svevo, pela sua idade e pela sua personalidade, compensou a falta de equilíbrio de Joyce. Segundo o crítico, Svevo desempenhou a função de um pai quando apoiou Joyce em situações de problemas com dinheiro, tendo sido «a source of useful, smaller loans in an emergency» (p. 95), mas também, e sobretudo, quando, em 1909, leu e comentou três capítulos de A Portrait of The Artist as a Young Man. Nos termos do excerto seguinte, Joyce encontrou em Svevo a «aprovação paternal» de que necessitava:
Svevo’s criticism was a great relief and encouragement to Joyce. It also emphasised the different levels of their relationship. Ostensibly it was a teacher setting his student an exercise. The student wanted good marks. With this exercise, though, the student was simultaneously marking the teacher, who also wanted good marks. That the student was just old enough to be the teacher’s father was also a factor in this equation. Joyce had always lacked a reliable father figure, and, to some extent, Svevo took on this role. Joyce now had a paternal approval for his work. He was particularly relieved by Svevo’s good opinion of chapter three. Joyce had thought of cutting this almost entirely. Now he adjusted the first chapter minimally and left the rest alone. (p. 89)
A caracterização que Price faz de Svevo assenta igualmente no pressuposto de que os problemas mentais do pai de Svevo determinaram os traços de personalidade de Svevo, e particularmente a sua dificuldade em deixar de fumar. Em linhas gerais, o retrato é o de uma pessoa confiante e constante no que respeita aos negócios de família, mas pouco capaz de promover o próprio trabalho literário (e para a qual, neste último ponto, foi determinante ter um amigo como Joyce). Os dois primeiros romances de Svevo não foram bem aceites em Itália, e o terceiro dificilmente teria tido uma sorte diferente se Joyce não tivesse usado o seu crédito no meio cultural parisiense para apresentar a obra a um grupo de intelectuais:
Svevo was a complex mix of someone who wanted recognition for his work, but had great reticence about promoting it himself. In Joyce, he found someone with no such conflicts. Joyce had total confidence in his work and absolutely no diffidence in promotting it. (p. 207)
No capítulo «Repaying a Debt», Price conta a história da maior retribuição de Joyce a todos os favores de Svevo. Em 1923, data da publicação de La Coscienza di Zeno, Joyce estava em Paris, para onde tinha ido em 1920 e onde, por intermédio de figuras como Ezra Pound e T.S. Eliot, gozava de um grande reconhecimento por causa de Ulysses. Nesse contexto, Joyce deu a conhecer o romance de Svevo aos críticos Valery Larbaud e Benjamin Crémieux, que se empenharam em organizar uma tradução de excertos para francês e em conhecer e divulgar a restante obra de Svevo. Numa frase (ou duas): «Joyce had set the ball rowlling» (p. 208); «Joyce had well and truly shaken the tree» (p. 209).
No argumento de Price, há uma diferença de espécie nas participações que Joyce e Svevo tiveram na obra um do outro: a participação de Joyce é descrita apenas em relação ao percurso de Svevo como escritor; a de Svevo excede essa medida e é descrita em relação às obras propriamente ditas. No fundo, Price sugere que Svevo aparece na história de vida de Joyce e nas histórias que Joyce conta nos seus romances, enquanto Joyce só aparece na história de vida de Svevo. Referindo-se a Ulysses, Price diz que Svevo, na condição de membro de uma família judaica, foi uma espécie de consultor para os assuntos relacionados com judaísmo e, por outro lado, um modelo para a construção do protagonista, Leopold Bloom. Para ilustrar este último ponto, selecciono o excerto no qual, para além de Ulysses, se refere La Coscienza di Zeno:
Joyce’s Bloom was partially modelled on Svevo, and owed much of his Jewish background and culture to what Joyce had learned from him. Svevo certainly did not model Zeno on Joyce, and naturally Zeno has many of his creator’s characteristics. Yet Bloom and Zeno are both kindly, thoughtful men, prone to getting involved in awkward and embarrassing situations which they somehow manage to survive. They are not quite brothers under the skin, but certainly first cousins. (p. 154)
Pela ordem de ideias apresentada, Bloom foi, em certa medida, modelado em Svevo; Svevo não modelou Zeno em Joyce; Bloom e Zeno são parecidos no facto de estarem constantemente a tentar sobreviver a situações de embaraço. Price defende a primeira ideia apontando semelhanças nas formas como Svevo e Bloom viveram o casamento e a herança judaica:
The two men, the imaginary and the real, were much the same age, and the age difference between Svevo and Joyce was the same as between Bloom and Stephen Dedalus. Both Svevo and Bloom were married to attractive women to whom they were devoted. Both couples had only one child, a daughter, and each wife had a subsequent miscarriage. Both Svevo and Bloom were nominally Catholic, agnostic by conviction, but accepted that they were originally Jewish, although Bloom, having a Catholic mother, would not be considered in Jewish law to be a Jew since it decides identity on a matrilineal basis. Certainly neither went to church, nor belonged to a synagogue. (p. 77)
Em relação à segunda ideia, o fundamento principal é o de que La Coscienza di Zeno é um retrato estritamente autobiográfico e, por isso, o modelo de Zeno é Svevo. Price conta que Svevo começou a escrever o romance em 1919, no seguimento da Primeira Guerra Mundial, impulsionado pela concepção do inconsciente de Freud e por uma tentativa de análise psicológica solitária. Interessa-lhe fazer a sugestão de que Zeno é sobretudo um decalque da mente do seu criador, uma representação de dilemas morais e psicológicos decorrentes da experiência de guerra e do conhecimento da teoria freudiana relativa à interpretação dos sonhos e à psicanálise. No capítulo «Anti-Fouling and Freud», Price sublinha ainda que Svevo teve um contacto directo com a terapia psicanalítica através do sobrinho Eduardo Weiss, que estudou com Freud e foi o primeiro analista a exercer em Itália, e do cunhado Bruno Veneziani, que foi paciente de Freud.
Cingindo-se completamente ao argumento da autobiografia a respeito da personagem Zeno Cosini, Price não vê semelhanças entre Joyce e Zeno e deixa clara a sua posição a respeito disso, como mostra a passagem anteriormente citada. Mas há qualquer coisa de incongruente na defesa simultânea da ideia de que Svevo e Joyce são psicologicamente próximos, desde logo pelo facto de terem tido figuras paternas disfuncionais mas também por não conseguirem deixar de alimentar vícios; da ideia de que Zeno é uma representação de Svevo; e, por último, da ideia de que Zeno não tem nada de Joyce. Se Svevo e Joyce se encontram em aspectos substanciais e se Zeno é Svevo, não há como desligar Zeno de Joyce. Há um sentido, portanto, em que o argumento tem de admitir que Zeno, sendo Svevo, é um pouco parecido com Joyce.
No capítulo «Enter Zeno», Price compara Zeno a Svevo com base na ideia de que Svevo tinha uma tendência para desistir continuamente em várias áreas da sua vida: «Zeno, like his creator, is addicted to giving up things, whether it is cigarettes, a mistress, or a particular food. He has discovered that the last of anything always provides the most pleasurable and ‘poignant’ sensation.» (p. 143) A verdade é que a comparação poderia ser feita com Joyce e é curioso que Price não aceite uma ligação que em primeira instância está contida na biografia de Joyce que ele próprio apresenta. De resto, parece-me que essa recorrência da desistência a que Price se refere, na condição de traço geral e definidor de uma história de vida, é realmente visível no caso de Joyce e é-o, como no caso de Zeno, de um modo que excede «a mistress, or a particular food». Zeno encontra-se constantemente em situações que contrariam as suas decisões iniciais e não percebe porque é que isso lhe acontece; ele acha que as suas acções não seguem a sua vontade (e além disso não está disposto a aceitar que existem vontades ou desejos que ele não consegue reconhecer ou controlar senão por meio de terapia psicanalítica). O quadro é, portanto, mais complexo do que o que é sugerido pela referência à mudança de hábitos alimentares e, de alguma forma, afim ao que é descrito a respeito da relação de Joyce com os negócios, por exemplo.
No capítulo «Cinema Business», Price apresenta um breve historial das ideias de negócio de Joyce e uma descrição do maior negócio em que Joyce participou, para sugerir que a confiança nas próprias qualidades neste caso era injustificada. Price usa um tom de paródia para dar conta do modo quase irracional como Joyce insistia em ser empresário contra as indicações da experiência:
Introducing the cinema to Dublin could make their fortune. The idea put Joyce in a familiar position – he needed money, but no longer just a small personal loan. This needed big money. He had intended to throw himself wholeheartedly into the rest of A Portrait, but now he decided that finding backers for his scheme would come first. Joyce always had the feeling that he had the ability to be a successful businessman. In the past he had toyed with the idea of importing Irish whiskey into Trieste, and then, more seriously, introducing Irish tweed into the smart clothing stores of Vienna. With these projects he had never gone beyond the first tentatives steps. Now he had the bit between his teeth. (p. 94)
Segundo Price, Joyce trabalhou energicamente com o objectivo de abrir a primeira sala de cinema em Dublin (a concretização do negócio aconteceu no dia 20 de Dezembro de 1909, com a abertura do The Volta Picture Theatre), até ao momento em que começou a sentir dificuldades por estar longe de casa, por não ser apoiado pelos investidores, por receber críticas de diversa ordem ou por ver que a audiência do cinema diminuía progressivamente. A conclusão de Price é: «Once again Joyce returned home rather less than a conquering hero and with none of the grand presents he had promised Nora and the children.» (p. 99)
Zeno segue Joyce neste aspecto em particular, ou seja, alimenta projectos de negócios que parecem pouco razoáveis aos olhos da maior parte das pessoas com base numa ideia de si que é igualmente pouco razoável aos olhos da maior parte das pessoas. Um outro aspecto a favor desta aproximação poderia ser o facto de Joyce ter ambicionado exercer várias profissões. Em «Parallel Lives», Price conta que Joyce estudou Medicina e canto na perspetiva de fazer carreira nessas áreas (e chegou a participar em recitais), mas nunca foi constante na maneira como considerou essa perspectiva. Em La Coscienza di Zeno, a mudança de ocupação e de objeto de estudo é, a par da mudança de casa, a forma pela qual Zeno procura corrigir uma rotina desagradável imposta pela relação com tabaco. É verdade que os movimentos de Joyce estão associados à falta de dinheiro, mas a falta de dinheiro, como Price nota, é, em larga medida, uma consequência da relação com a bebida.
Não me interessa identificar Zeno com Joyce, mas simplesmente apontar algumas semelhanças na forma como ambos, seguindo o ponto de Price a respeito de Joyce, viveram numa espécie de rotina de instabilidade. A juntar ao que disse, importa referir que Price não desenvolve a terceira das ideias que elenquei há pouco — a de que Zeno e Bloom pertencem à família das personagens que passam por muitos embaraços. De qualquer forma, James Joyce and Italo Svevo: The Story of a Friendship cumpre o objectivo de descrever uma amizade e de mostrar que essa amizade teve consequências literárias, no sentido em que determinou algumas das ideias que Joyce e Svevo tiveram. De resto, esse objectivo, que pressupõe a possibilidade de identificar e medir nos romances os efeitos de uma relação entre duas pessoas, é a linha condutora que une os capítulos do livro e as descrições biográficas que eles contêm.
REFERÊNCIA:
Price, Stanley. James Joyce and Italo Svevo: The Story of a Friendship. Bantry: Somerville Press, 2016.