COMO CITAR:

Almeida, João N.S. «Todd Phillips, Joker». Forma de Vida, 2019. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0047 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0047

João N.S. Almeida

Já é sabido que Joker, um projecto do realizador Todd Phillips e de Joaquin Phoenix, entre outros, não é o típico comic book movie. Será mais correcto descrever o filme como pertencente ao sub-género dramático de filmes sobre psicopatas, como Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) e Silence Of The Lambs (Jonathan Demme, 1991), ambos com Jodie Foster — sendo que o primeiro inspirou o atentado contra o presidente Ronald Reagan, em 1981 — assim como Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), A Clockwork Orange (Stanley Kubrick, 1974), Blue Velvet (David Lynch, 1986), M (Fritz Lang, 1931), entre outros. De acordo com o próprio realizador de Joker, a intenção era fazer um filme com as características desse género — apresentando um estudo de carácter, uma dedicada descrição da alienação e, estilisticamente, planos demorados — mas vendê-lo como um comic book movie. O projecto acabou por ser inteiramente bem-sucedido, conforme é amplamente reconhecido tanto pela crítica que enaltece a obra como pela que a considera imperfeita ou duvidosa. Durante a maior parte do filme, as alusões ao universo da banda desenhada — como as menções a outras personagens, a estilização cromática da roupagem e da maquilhagem do protagonista e outras reminiscências do universo ficcional — são diminutas e quase irrelevantes. É apenas na secção final, quando o protagonista coloca a totalidade da maquilhagem, cunhando-o definitivamente como a famosa personagem que dá nome ao filme, que o espectador se apercebe do universo em que a história se inspira. Mas, durante a maior parte do desenrolar da trama, tudo o que vemos é Phoenix inteiramente dedicado a uma personagem pré-psicótica, a caminho da absoluta alienação, sem que as referências à banda-desenhada dominem, de todo, o filme. Como alguma crítica correctamente notou, substituindo os nomes do protagonista, de algumas personagens e do cenário, absolutamente nada se perderia.

Mais do que no trabalho de realização de Phillips, é na interpretação de Phoenix que encontramos algumas das aventuras morais e dramáticas mais interessantes do filme: o riso compulsivo, desligado de qualquer ligação às punchlines do mundo real — e ainda menos às da stand-up comedy televisiva contemporânea, nos talk-shows, cuja ortodoxia é absolutamente previsível — acrescido de uma indiferença pré-psicótica à condição degradada em que se encontra, ajudam a compor um retrato bem sucedido e não apologético de uma alienação iminentemente humana, cuja complexidade ultrapassa uma descrição a preto e branco da vileza — e que não se arroga uma leitura prescritiva acerca dos temas morais e sociais abordados no filme. E esta é uma das grandes qualidades do filme: a opção por retratar, correctamente, a evolução do estado mental do protagonista, que começa por se manifestar como uma afectação grave do humor — risos descontrolados, personalidade volátil —, acrescida de problemas pessoais como a privação económica e o isolamento social, e que evolui para uma ocupação da realidade pela psicose. Quando tenta representar essa evolução, o filme é bem sucedido, principalmente nos dois primeiros terços, ao construir um crescendo feito a partir de segmentos em que se confundem as fantasias do protagonista, apresentadas ao espectador como se de eventos reais se tratassem, e a realidade, sendo o espectador várias vezes surpreendido por esta ambiguidade.

Além disso, uma série de pequenos elementos caracterizam, efectivamente, o enredo como uma aventura por terrenos morais mais sombrios do que os do típico filme do género comic book: por exemplo, o protagonista mata a própria mãe e um colega de trabalho com estrondosa indiferença — ou, melhor, com uma indiferença absolutamente focada nas determinações ditadas pela sua psicose — e é um anão, também seu colega, que merece piedade, ao mesmo tempo que proporciona um também imoral comic relief: a sua estatura é usada sem pudor pelo realizador como dispositivo cómico, no meio de uma intensa cena de assassínio a sangue frio. Mas, ao mesmo tempo que comete actos atrozes, curiosamente, é o protagonista que chama a atenção para a maldade inerente a muita da comédia simultaneamente adolescente e moralista que é usada no prime-time dos talk shows norte americanos — e nos seus derivados em todo o mundo — assim como na cultura do riso fácil presente nos vídeos de internet, onde encontramos pessoas a caírem, a fazerem figuras de parvas, etc: pequenos trechos de humilhação privada, ou vídeos semiprivados destinados a públicos menos vastos, que ganham subitamente audiências globais. Aí, a objectivação dos seus sujeitos não peca por se tratar de objectivação, mas por estar absolutamente desproporcionada em relação ao alcance proposto inicialmente. Assim, em Joker, o protagonista não tem pejo em acusar De Niro — o apresentador de talk show que nos lembra tanto o bonacheirismo genérico de Jay Leno como o sarcasmo imberbe de Jon Stewart — de explorar também essa vileza, colocando em cheque todos os comediantes, hoje populares, que se julgam arautos morais de um imaginário e adolescente senso-comum. Por fim, a aparição de Phoenix como a personagem de banda-desenhada, inteiramente maquilhada e equipada, é estranhamente irrelevante, e fica-se com a sensação de que os picos de demência, que dão intensidade ao filme, foram há muito atingidos. Esta é, talvez, a maior prova de que o filme é um drama psicológico bastante agressivo e que está apenas de visita ao género do comic book.

Tudo isto não significa que o filme legitime ou glorifique o que quer que seja: é estranha essa questão, colocada por vários críticos, quando a maior diferença entre Joker e um filme normal de terror, ou de polícias e ladrões, é a densidade com que o estudo de carácter do protagonista é realizado, tanto a nível lírico como cinemático. Não é por se colocar nesse patamar de um estudo mais aprofundado que Joker tem a obrigação de fornecer uma prescrição moral clara, e é isso que parece estar a ser exigido por alguma crítica. Estranhamente, parece que o filme incomodou, sendo algumas das reacções motivadas mais por infeliz parcialidade política do que pelo objecto exótico que se atreveu a entrar no panteão dos filmes deste género — crê-se, até, que para a maior parte dos apreciadores do género a novidade é bem-vinda. Não obstante, o filme pode sugerir, através do cenário urbano em que se situa, e da fase de suposto «capitalismo tardio» que retrata, que tal alienação se deve a factores sociopolíticos; mas a interpretação de Phoenix não parece deixar muitas dúvidas sobre a dimensão integral da queda: é uma degeneração humana e não apenas social, que deriva de pulsões primárias mais ligadas à própria estrutura da psique, não relacionáveis exclusivamente com questões quanto ao modelo de sociedade em que se vive (apesar de, na parte final, o filme parecer descair um pouco para a sentença política). E, ainda, é um filme americano, mas não necessariamente sobre a América contemporânea, que é frequentemente representada, com algum exagero, como uma sociedade irremediavelmente dividida. Nesse aspecto, os standards de casino-jazz que compõem parte da banda sonora, interpretados por Frank Sinatra, são uma escolha interessante: se, por um lado, representam a América da prosperidade — e representam inclusive um casamento de vanguarda entre as cultura italiana e afro-americana — por outro lado, a sua densidade poética apresenta, frequentemente, conteúdos trágicos: tanto «Send In The Clowns» como «That’s Life» abordam a fronteira ténue entre beatitude e queda, e o papel do tempo nessa lotaria.

Em suma, o filme não desilude em nenhum aspecto, exceptuando talvez quando abandona, na parte final, o registo ambíguo que dominava os dois primeiros terços, onde apresentava indiscriminada e fluidamente tanto os segmentos advindos da psicose como os que corresponderiam à vida real do protagonista. No último terço, as coisas mudam, sendo apresentada uma conclusão mais previsível e padronizada, fundando a narrativa, aparentemente, no terreno do realismo. Mas as reacções que o protagonista obtém aí parecem mais delirantes do que na anterior representação da psicose: Robert De Niro, interpretando o apresentador do talk-show para o qual o protagonista é inesperadamente convidado, responde-lhe de uma maneira mais intensa, íntima e confessional do que uma fantasia deste pressuporia; e sentimos que parte do desconcerto desta sequência pré-final advém de, aparentemente, se situar além das anteriores oscilações entre o delírio e a vida real, quebrando a cadeia narrativa até então empossada. Na verdade, um espectador atento (e interessado) poderia desejar que o último terço do filme fosse também uma fantasia, e o epílogo — Phoenix internado em Arkham — resultasse de qualquer desenlace anteriormente proposto.

Se a conclusão difere de tom e deixa alguma dúvidas quanto à sua adequação, existe a possibilidade desse naufrágio na previsibilidade ser um dispositivo premeditado. Nessas últimas cenas, além do showdown no talk-show de De Niro, assistimos a um semi-clímax onde uma manifestação anarquista, que decorria entretanto, torna-se absolutamente caótica e violenta, acabando os manifestantes por salvar e glorificar Phoenix, cuja reacção é apenas moderadamente intensa, quando comparada com outros trechos. Servindo de conclusão ao crescendo de delírio e de alienação social do protagonista, à primeira vista a sequência parece não estar montada da melhor forma, destoando do ritmo anterior. É possível que a apresentação da conclusão desse modo resoluto tenha sido uma exigência, devido ao modo narrativo que domina os filmes dos grandes estúdios. Mas também é possível que, antes pelo contrário, a sequência represente um desvio intencional do anterior registo, e a aparente ambiguidade em que o filme decorria até esse ponto seja subvertida e transformada numa conclusão de aparente clareza e previsibilidade. Este regresso à normalidade, porventura irónico, adviria, assim, de um contágio do niilismo que constitui o filme, pelo menos em parte. Serviria assim para rematar o enredo, antes do epílogo, onde encontramos o protagonista num asilo psiquiátrico e onde, segundo o realizador, escutamos o seu único riso autêntico de todo o filme. Ou, talvez ainda, a sequência final represente as duas leituras, sem contradição, sendo simultaneamente tanto um desmazelo narrativo como uma ironia intencional; e esse seja, na verdade, o final mais complexo e mais apropriado ao filme. Não é esta a primeira impressão que deixa, mas é possível que em segundos e terceiros visionamentos a conclusão do filme se apresente de forma mais clara e se demonstre tão genial quanto o resto.

REFERÊNCIAS:

Phillips, Todd, realizador. Joker. Warner Bros Pictures, 2019. 2 hr, 2 min.