COMO CITAR:

Reis, Lauro. «Bong Joon-Ho, Parasita». Forma de Vida, 2019. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0048 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0048

Lauro Reis

O filme mais recente de Bong Joon-Ho procura transportar a dinâmica entre parasita e hospedeiro para um contexto humano. Uma família desempregada de quatro (pai, mãe, filho, filha), sobrevivendo numa cave, roubando internet de cafés e dobrando caixas de pizza, depara-se com a oportunidade de anexar-se à vida de outra família, explorando e consumindo os recursos da família hospedeira. A facilidade com que o filho (Woo-sik Choi) se infiltra na vida daquela família abastada (para fingir dar aulas de inglês à filha) será o instigador que convencerá o resto da sua família parasítica a adoptar personae inventadas, desde empregada de limpeza (mãe), motorista (pai) e terapeuta de arte (irmã), de modo a viverem sub-repticiamente a partir da ingenuidade e abundância da família hospedeira. Parasita encontra-se explicitamente dividido em duas partes, sendo a primeira a execução do plano de infiltração e anexação por parte da família de parasitas e a segunda formada pelas inesperadas (mas inevitáveis) consequências resultantes desse relacionamento.

Embora essa família parasítica chegue a considerar (uma vez todos confortavelmente instalados na rotina dos hospedeiros) a imoralidade de cometer tamanho acto de manipulação, depressa se tranquilizam face à ideia de a ingenuidade da família hospedeira e de a astúcia da sua própria família serem um resultado da sua condição social e económica. Só por um breve momento surge entre a família de parasitas um sentimento de remorso face ao plano que executam, depressa abafado pela autocomiseração face às suas condições precárias. A pureza da família hospedeira, a sua obsessão pela higiene e limpeza, bem como as extensas superfícies simétricas e planas da sua vasta habitação (usadas com metáfora visual para destacar o comportamento dos parasitas dentro da casa) são usadas ao longo do filme para contrastar com a dissimulação da família parasítica, a imundície e o caos do seu lar, a desarmonia das suas relações intrafamiliares, bem como as referências à clandestinidade dos seus actos, assemelhando-se aos insectos e baratas que coabitam na sua casa. São muitas as cenas onde o filme procura mostrar que o comportamento da família parasítica se assemelha à forma como qualquer parasita procura evitar a sua captura e manter o status quo, isto é, embora com a consciência de que se encontram a explorar e a prejudicar o hospedeiro, continua a ser do seu interesse não o matar e ocupar o seu lugar, porque o parasita reconhece a sua dependência face ao corpo e às funções corporais do hospedeiro, neste caso o lar onde se passa a maioria da acção e a rotina da família. Há um complexo de inferioridade claramente manifestado ao longo do filme pela família parasítica, uma consciência da impossibilidade de ascender e obter legitimamente as mesmas condições de vida, deste modo, reconhecendo a dependência não só material, mas também emocional face à família de hospedeiros. Como tal, o único recurso que acreditam possuir é o engendramento de um plano onde voluntariamente adoptam o comportamento característico de qualquer parasita no reino animal. 

Fazem parte do estilo de Boon Joon Ho as mudanças repentinas de humor e atmosfera. Por isso, não é de estranhar que, à marca da uma hora no filme, o relacionamento disfuncionalmente idílico que a família parasítica havia adoptado com relativo sucesso acabasse por desmoronar no espaço de uma noite. A relação, até lá, permanecia num estado quase homeostático, com o parasita e o hospedeiro a beneficiarem do relacionamento, muito pelo facto de um dos lados adaptar-se a um outro lado que desconhece as suas reais intenções. Isto porque o grande sonho partilhado entre a família parasítica é o de tomar o lugar do hospedeiro, vivendo as suas vidas, sem qualquer consciência da indissociabilidade entre o individuo e a vida que leva. O problema surge quando se introduz neste contexto duas problemáticas: uma delas será o facto de que qualquer parasita, ao anexar-se a um hospedeiro, irá alimentar-se o suficiente até que, ou o hospedeiro acabe por morrer ou ganhe consciência do parasita e procure expulsá-lo; a outra problemática surge quando se introduz um terceiro elemento, neste caso um segundo parasita, à relação parasita-hospedeiro. Em Parasita só há lugar para um explorador no mundo do explorado. As cenas que se seguem face à introdução da segunda família parasítica são o catalisador para uma violência sanguinolenta, resultando na descoberta de um bunker onde residiam há anos membros da segunda família parasítica.

Um pormenor curioso é nenhuma das partes considerar formar uma aliança durante o conflito. A relação entre parasita e hospedeiro é sempre desnivelada e entre parasita e parasita sempre violenta. Fica a ideia de que ambas as famílias parasitas tinham consciência de que o hospedeiro acabaria por ser destruído pela sobrepopulação, deste modo inviabilizando a prolongada exploração e sobrevivência. Contudo, o que não parece ser consciente para ninguém é que o choque entre parasitas também leve à falência e destruição do hospedeiro e do seu mundo. É a percepção da repulsa dos hospedeiros face à condição precária da sua família de parasitas que leva à destruição da relação que tão violentamente haviam tentado manter e defender na noite anterior.

Embora Parasita procure analisar a possibilidade de alguém em situação económica precária explorar alguém numa situação economicamente favorável, a intenção de transportar toda uma simbologia e referências a comportamentos parasíticos serve de alusão à impossibilidade de realizar com sucesso aquilo que a família ambiciona. A espécie de «contracto social» que é estabelecido com o hospedeiro nunca é explícito para ambas as partes, sendo implicitamente unilateral. A narrativa de Parasita procura demonstrar que este tipo de relacionamentos não se consegue prolongar a longo prazo e que na maioria das vezes acabará em conflito. Os sonhos de povoar tal casa e estilo de vida alimentavam a família de parasitas todos os dias, muito para além da mera possibilidade de experimentarem uma vida de abundância. Porém, a realização dessas fantasias provar-se-á negativo para todas as famílias envolvidas: os atalhos, a manipulação, a imoralidade, isto é, a adopção de um comportamento parasítico como forma de atingir sonhos de abundância e prosperidade demonstram ser, de acordo com Parasita, altamente improváveis de se realizarem com sucesso num contexto humano.  

O filme acaba por balançar no conto preventivo de que, no que toca à família de hospedeiros, o preço de viver numa bolha idílica é a ingenuidade face aos interesses e duplicidade de indivíduos que não possuem as mesmas condições de vida e que buscam, desesperadamente, uma maneira de escapar à sua realidade; no que toca à família de parasitas, a ignorância em compreender que a longo prazo, qualquer relacionamento unilateral levará, quer seja por factores externos ou internos, a um resultado violento ou mortal. Comparado com o filme anterior de Bong Joon-Ho, Expresso do Amanhã (2013), em que a desigualdade social e exploração de uma elite face a uma população precária é a premissa para uma revolta social, Parasita parece o complemento antitético desse filme, servindo como alerta para certos tipos de soluções, planos ou relacionamentos nocivos que poderão surgir fruto de uma distorcida visão de justiça, direito ou necessidade. O estado de escassez, de injustiça social ou de pobreza não justificam qualquer comportamento destinado à libertação ou fuga de tal condição. O comportamento adoptado pela família de parasitas prova-se assim suicida, por o processo de anexação envolver necessariamente a destruição do que ambiciona anexar.

REFERÊNCIAS:

Joon-Ho, Bong, realizador. Parasita. CJ Entertainment, 2019. 2 hr, 12 min.