COMO CITAR:

Almeida, João N. S. «Jeff Baena, Horse Girl». Forma de Vida, 2020. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0026 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0026

João N.S. Almeida

Este filme parece-me ser absolutamente único na perspectiva que apresenta sobre a esquizofrenia. Retrata o que é a experiência de vida do esquizofrénico, quase sempre na primeira pessoa, e não envolve grandes sacrifícios que o puxem nem para a correspondência com a visão exterior do espectador lúcido, nem para a visão estética e autoral do realizador sobre essa condição psíquica, como é costume acontecer em filmes que abordam este tema. Fiel à experiência interior do doente, o argumento opta por mostrar uma progressiva indistinção entre realidade e imaginação, mantendo até ao fim uma ambiguidade que parece servir menos a fins estéticos e narrativos do que a um decalque tão naturalista quanto possível da visão interior do esquizofrénico sobre a sua própria condição. Os estados mentais que surgem a partir deste tipo de psicoses são, à primeira vista, incompreensíveis e de difícil aceitação para quem os acompanha de perto; mas o filme ajuda muito na sua explicação, retratando de forma exemplar o exílio da realidade e, principalmente, o carácter involuntário da doença. Perante este quadro, é frequente comovermo-nos: fica claro como não é atribuível culpa significativa ao doente pela ausência de referências mentais fixas suficientes que correspondam à vida de uma pessoa sã (o que permite as respostas sociais de empatia que todos realizamos e esperamos dos outros). A partir deste ponto de vista interior, fica claro como o esquizofrénico não se exila voluntariamente, mas é, na verdade, um doente, uma vítima de um reordenamento involuntário de certos mecanismos mentais.

 

Podem ser definidas três traves-mestras que permitem ao filme apresentar a doença de uma forma não apenas legível para o espectador, mas realmente convincente: primeiro, é o baixo-registo em que se apresenta, nunca deixando que uma excessiva força dramática das personagens desvie a atenção e saliente em excesso algumas das realidades conflituosas que são apresentadas; em segundo lugar, é retratar o sofrimento da pessoa esquizofrénica não através de um contraste com o exterior lúcido, mas como evidência que emerge a partir da visão por dentro, apresentando o desnorte mental como narrativa fluida e não contendo, portanto, nenhum julgamento moral depreciativo que resultasse de um contraste com a verdadeira realidade; por último, a solidez dos elementos de referência que apresenta (cavalo, rapariga, doppelgängers, rampa de luz, camas paralelas, etc), que se mantêm em segundo plano, não directamente ligado às narrativas do filme — nem as lúcidas nem as alucinatórias — mas, provavelmente, regendo-as de algum modo alegórico.

 

O início do filme retrata a vida de uma rapariga tímida, empregada de uma loja, com ligeiras paranóias não muito diferentes das de qualquer neurótico urbano, que evoluem rapidamente para sonhos demasiado vívidos e alucinações diurnas. Este cenário de desnorte do real é montado de maneira bastante sóbria: o quotidiano apresenta-se em registo indie low-budget, com personagens que são, em geral, unidimensionais mas perfeitamente credíveis e nada forçadas, onde até as interpretações se aproximam de algum amadorismo, sem excessos dramáticos. Isto contribui para que o espectador não esteja tão comprometido com um universo ficcional demasiado intenso, o que favorecerá a introdução, na narrativa subsequente, da confusão e da ambiguidade. Assim, o ambiente é preenchido, pouco a pouco, com elementos de significação difusa, instalando um crescendo de estranheza, e poucas pistas são deixadas ao espectador, tanto na iconografia como na nomenclatura do filme, para o encontro de uma chave que o descodifique. Mas não é suposto que tal chave exista; o título, por exemplo, é muito sintético e tem sugestões de misticismo, mas não representa explicitamente grande coisa; o cavalo de estimação da protagonista é, de facto, um elemento central, mas aparece em plano de fundo, sem denunciar nenhum simbolismo primário e facilmente descodificável. Há ainda um ou outro pormenor de meta-ficção, como o filme dentro do filme chamar-se Purgatório, seguramente uma referência ao estado intermédio entre sonho e realidade que constitui a tendência esquizofrénica. Mas, para além disto, não se encontram símbolos explícitos que dêem pistas ao espectador sobre uma eventual resolução clara dos eventos que, de facto, nunca ocorre.

 

Muitos dos elementos desconexos com a realidade que encontramos ao longo do filme, como supostas capacidades para-psíquicas, sugestões de raptos por alienígenas, ou mudanças temporais súbitas, não deixam claro se estamos ou não perante um thriller sci-fi do género X-Files, envolvendo vida extraterrestre e enredos de terror. Assim, se inicialmente não sabemos se se trata de um desses enredos e/ou uma apresentação tipificada de alucinações como representações distorcidas de conteúdos da percepção, começa a ser claro a partir de meio do filme como estas não se tratam exactamente de alucinações no sentido gentio do termo, mas sim um modo de representação mais adequado ao cinema do que realmente acontece na mente do esquizofrénico. Segundo o entendimento contemporâneo da esquizofrenia — entre outras condições que também envolvem aquilo a que tradicionalmente chamamos alucinações — verdadeiras aparições de figuras imaginárias entrecortadas com a percepção da realidade, como é comum imaginarmos ou vermos representadas no cinema fantástico, são muito raras. Na verdade, ao invés de haver nestes doentes uma prevalência da dimensão da percepção — como existe maioritariamente nas pessoas lúcidas — que depois é ocupada por «visitas» dos campos da imaginação e da memória, o mais comum em quem padece de sintomas alucinatórios é existir uma grande desconexão nos mecanismos mentais de reacção à realidade, à memória e ao imaginário, exigindo uma atenção tão à deriva e tão flutuante entre essas dimensões que resulta na quase completa confusão entre estas; efectivamente, o esquizofrénico deixa de saber o que é real, baralhando completamente a narrativa da vida diária que, em geral, fixa a personalidade de cada um.

 

É através desse resoluto descomprometimento com a figuração tradicional da alucinação que o filme articula a história, optando por não usar a típica âncora, implícita ou explícita, que agarra o espectador à «verdadeira» realidade, diferenciando-a das alucinações. Mas o filme pauta-se também por um sentido estético muito nítido que mistura sensivelmente três géneros — o sci-fi, o thriller e o whodunnit — apropriando-se subtilmente de pequenos formalismos de cada um para compor o retrato da condição mental. As passagens explicitamente alucinatórias são minimalistas, de iconografia estrita e contida; as marcas de ambiguidade entre a possível realidade e a possível alucinação são subtis, tornando-se depois mais estridentes; e sensivelmente até ao fim do filme ficamos com a sensação de estarmos a assistir à projecção do interior da mente de um esquizofrénico, ao mesmo tempo que esperamos, enquanto espectadores de uma narrativa clássica, encontrar a última peça do puzzle que revele um responsável concreto pelas desventuras da protagonista. É somente a partir do último terço que ficamos mais convencidos de estarmos, de facto, perante um retrato da esquizofrenia, embora a ambiguidade seja sempre mantida — conforme é coerente com o tal ponto de vista interior do doente, que muitas vezes também evolui para esse estado de consciência dúplice: sabe que é esquizofrénico, mas continua sem saber distinguir realidade e fantasia.

 

Fica assim mais ou menos claro que o filme é uma mistura de uma narrativa tradicional com elementos nunca inteiramente explicados, num crescendo de desespero e loucura que poderá culminar, possivelmente, numa redenção. Não quer isto dizer que estamos perante um exercício olimpicamente estético de mistura de narrativas díspares, como em David Lynch ou Alejandro Jodorowsky, mas sim perante aquilo que parece ser um retrato mais pessoal, mais íntimo e mais comovente da vida mental de um esquizofrénico vista a partir de dentro, adaptado, na medida do possível, ao formato narrativo cinematográfico, não só devido à honestidade objectiva do relato, de acordo com esses termos, mas também à mestria com que os ritmos mentais são transcritos para o argumento e para a montagem. Aliás, a intérprete da protagonista, Allison Brie, trouxe uma parte significativa da sua experiência com a doença, pessoal e familiar, para o retrato traçado no filme. Adicionalmente, os efeitos sonoros que acompanham as passagens alucinatórias não se aventuram nem na estranheza barata nem no melodrama, mas são de uma sobriedade adequada; parecem-se com a adaptação de Luciano Berio a uma estética mais sci-fi, com algumas tonalidades etéreas entrecortadas com distorção. Na terceira parte do filme são progressivamente adicionados alguns elementos de jazz, acrescentando à confusão ilustrada, sem parecerem forçados, acompanhando talvez mais os ritmos do thriller do que propriamente a mimese da experiência esquizofrénica. A música acaba por ser muito importante, principalmente nas partes em que a alucinação da protagonista passa pela solidão — ou, melhor, destacando-a mais nuns momentos do que noutros, ilustrando esse contínuo de solidão que faz necessariamente parte da doença.

 

No universo dos filmes sobre esquizofrenia, depois de Lost Highway (David Lynch, 1997), expressionista e abstracto, A Beautiful Mind (Ron Howard, 2001), acessível e biográfico, ou Shutter Island (Martin Scorcese, 2010), quase meramente um thriller — já para não falar de títulos menores como Stranger than Fiction (Marc Forster, 2006), uma comédia, e Birdman (Alejandro Iñárritu, 2014), mais um exercício de forma do que um ensaio relevante sobre a condição — Horse Girl distingue-se por não se definir com precisão em nenhum destes espaços ou géneros, mantendo-se, no entanto, como uma obra sólida na sua opção enquanto narrativa que opta assumidamente pelo ponto de vista de dentro da disfunção esquizofrénica, não o sacrificando a elegias poéticas a partir de fora. Curiosamente, o filme parece ter sido muito mal recebido por pelo menos metade do público, que não encontra nele nem um retrato estridente e dramático da doença, nem um thriller enigmático com um final resoluto; de igual modo, a crítica profissional também não o acolheu com braços inteiramente abertos, embora não de forma tão hostil como parte do público. Tal recepção tão turva deve-se provavelmente à escolha de ponto de vista que o filme adopta, e que é também a sua grande mais valia: apresenta o desenvolvimento do argumento não como orientado para o espectador, mas mais como cópia dos ritmos e da melodia da esquizofrenia, pretendendo ser quase um decalque desse ponto de vista na primeira pessoa. Mas este decalque não é alheio à dimensão e ao meio cinematográfico, seguindo estruturas expectáveis da narrativa fílmica, e consegue um equilíbrio muito inteligente que permite um certo modo de contar uma história no grande ecrã e simultaneamente a figuração do ponto de vista interior da mente de um doente esquizofrénico. Entre estas duas dimensões, não há sobreposição, apenas encontro e simultaneidade. E este retrato parece ser tão espontâneo e tão trágico como a experiência de alguém que passa por essa condição: alguém que experiencia uma série de estruturas, elementos e séries de elementos, pertencentes à sua vida mental, que são retirados da ordem natural e reassociados, sem que nada intencional e específico o tivesse espoletado, além da simples ocorrência da vida e do real. É uma condição avassaladora, apesar de potencialmente fecunda em termos de reassociações entre a realidade e o imaginário, que muitas vezes arruína para sempre a vida de pessoas intensamente criativas, mas mesmo assim perfeitamente funcionais, que nunca conseguem, por falta de força ou tempo, voltar a reunir na ordem devida as peças psíquicas dispersas pela doença.

REFERÊNCIAS:

Baena, Jeff, realizador. Horse Girl. Netflix, 2020. 1 hr, 43 min.