COMO CITAR:

Reis, Lauro. «Sally Rooney, Normal People». Forma de Vida, 2020. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0028 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0028

Lauro Reis

Em 2016, dois anos antes de publicar Normal People, Sally Rooney publicou um conto chamado «At the Clinic», protagonizado pelas duas personagens centrais do seu futuro romance, Connell e Marianne. Já nesse conto se encontrava um proto paradigma do tipo de relação que diferencia estas personagens em Normal People. Visto que a natureza do conto passa necessariamente por uma maior concentração, e visto tratar-se claramente de uma primeira história escrita na sua breve carreira, Rooney não resistiu oferecer ao leitor, no final desse conto, uma conclusão que ajudasse a compreender o que acabara de se passar entre as duas personagens numa ida rotineira ao dentista:

She [Marianne] notices that he [Connell] doesn’t immediately answer her question. He’s watching the traffic as if he’s thinking of something else. She hopes that her brash curiosity appears dismissive. This is one of many dynamic strategies she employs to conceal from Connell what she feels for him. What she feels is not easily expressed anyway. People love all kinds of things: their friends, their parents. Misunderstandings are inevitable. («At the Clinic»)

É relativamente fácil extrapolar a conclusão deste excerto para o contexto de Normal People: uma história sobre mal-entendidos, provocados sobretudo por falhas de comunicação, por razões de pressão social, vícios de introspecção, jogos de poder ou projecções mentais que procuram preencher o vazio comunicativo que, na maioria das vezes, permanece indeterminado. O ponto que a relação de ambos no romance parece querer dar a entender é o de um grau de proporcionalidade inversa entre a intimidade que se partilha e a incompreensão em relação à personalidade um do outro, aos desejos, intenções e pensamentos que o outro parece ter. A crescente intimidade apenas abre mais esferas para possíveis oportunidades de incompreensão e conflito. Todavia, a ambivalência da incompreensão revela-se também em si capaz de abrir oportunidades para reconciliação e reunião. Esta é a relação pendular entre Marianne e Connell ao longo do romance.

Normal People é narrado numa sequência episódica que simula a aparência de recortes das vidas dos personagens, onde apenas são narrados os episódios que envolvem directa ou indirectamente o relacionamento entre ambos. O estilo de Rooney, directo e minimalista,  procura levar, pelo seu elevado recurso ao diálogo e ao que ela própria refere como a estratégia narrativa de «fechar os protagonistas em divisões e forçá-los a interagirem um com o outro», a que as fronteiras da narração da terceira pessoa e os pensamentos dos protagonistas se entrelacem, propositadamente dificultando ao leitor discernir onde o narrador acaba e a introspeção da personagem começa. Este factor combina com a própria simplicidade comunicativa dos protagonistas, que tantas vezes parecem evitar dizer o que sentem ou pensam, apenas para que essa omissão seja tomada pelo narrador, que procura oferecer uma ideia do que se passa interiormente com Connell e Marianne. O registo narrativo adquire assim a aparência de um desabafo, de uma confissão a um amigo, de uma conversa secreta sobre alguma pessoa que conhecem em comum. Este resultado contribui para amplificar a intimidade das personagens, conduzindo subtilmente o leitor para o mundo de Normal People, visto que o leitor só tem acesso àquele mundo interior através de algum ponto de vista narrado por uma entidade aparentemente externa a ele. Rooney mostra compreender que um atalho para a intimidade (na literatura) é a de descrever pormenores íntimos das personagens, não como se se tratasse do monólogo de um narrador omnipresente, mas de uma conversa íntima com o leitor. É evocada assim uma dimensão de mistério sobre o funcionamento interno das personagens que nem mesmo o narrador parece ser capaz de desvendar e de trazer à luz. Tal acentua a fragilidade das personagens e torna-as relacionáveis para com o leitor.

Tratando-se de uma YA novel (young adult novel), o estilo de Sally oferece uma seriedade aos problemas internos dos protagonistas que eles parecem nunca conseguir comunicar, seja numa esfera íntima, seja numa esfera familiar ou ainda numa esfera pública e social (amigos e conhecidos). Em todos estes níveis de sociabilização, os mal-entendidos abundam, resultando em vários conflitos internos dos protagonistas (quase nunca exteriorizados), ou não estivessem na idade de enfrentar as suas primeiras crises de identidade (secundário e primeiros anos de universidade). Grande parte dos problemas surgem da sensação de que as atribulações internas por que passam, e que não comunicam, os distingue e diferencia das pessoas à sua volta. Deste modo, as pessoas normais que o título sugere são os outros, e, como tal, toda a inadequação desponta de se acharem diferentes do que possa significar normal. Não é difícil chegar à conclusão que tal sentimento de isolamento e incompreensão é em si muito comum a adolescentes, e é essa a altura da vida que Rooney escolhe para contar a história de amor entre estes dois protagonistas.

Na primeira metade do romance, a história de Connell e Marianne tem lugar numa localidade da Irlanda chamada Carricklea. É lá que o popular Connell inicia um caso amoroso e secreto com Marianne, a rapariga impopular e solitária da escola. A fragilidade e solidão de Marianne tornam-na como que emocionalmente dependente de Connell, até que a pressão social que Connell imagina estar em cima de si o leva a convidar outra rapariga para o baile de finalistas. Isso dita o final da sua relação secreta com Marianne. O arrependimento de Connell é aparente durante o resto do romance. A crítica implícita que Rooney avança é a de que muita da pressão social é uma construção interna da própria pessoa. Connell sente-se no dever de proteger a reputação que o torna uma figura pública na escola (uma popularidade que se traduz num grupo exclusivo de amigos e actividades exclusivas, desde desporto, festas, encontros, etc); o facto de vir a sentir o que sente por Marianne parece ser algo capaz de colocar todo esse status quo em risco. As desconstruções dessas pressões não contribuem para a intimidade de qualquer indivíduo, a não ser para gerar mais conflito interno e externo (na relação com Marianne e, até certo ponto, na com a própria mãe). Connell chega inclusive a vomitar na casa de banho da escola após escutar palavras vis e cruéis serem direcionadas a Marianne e de não ter sido capaz de ripostar ou defendê-la. O adágio de Charles Cooley (1864-1929), sociólogo americano, de que «Eu não sou aquilo que pensas que eu sou; eu não sou aquilo que penso que sou; eu sou aquilo que penso que tu pensas que eu sou» parece reverberar na atitude de Connell durante a primeira parte do romance e ser algo que precisa ultrapassar, no sentido de lidar com o tipo de sentimentos que lhe parecem necessários para poder ter uma vida saudável e não tão compartimentalizada e secreta como a que tentava levar. A ilusão de que é possível separar todas as esferas da vida e não esperar qualquer contacto entre elas, especialmente esferas onde se inserem outros seres humanos, é algo que Connell aprenderá duramente ao longo do romance.

Na segunda parte do romance, quando ambos os protagonistas se encontram em Dublin, a frequentar o Trinity College, dá-se um reverso social: Marianne torna-se popular, com muitos amigos, frequentando festas, e com um namorado politicamente interventivo. Connell sente-se desajustado, sem amigos, sentindo que não pertence àquele mundo. Quando Connell finalmente reencontra Marianne, não deixa de ser evidente o jogo de poder aparente, sendo que Marianne agora encontra-se «por cima». Muita da pobre comunicação entre ambos resulta do orgulho, que no último segundo os impede de dizer aquela palavra potencialmente esclarecedora que fizesse retornar a relação ao estado prévio ao conflito. Contudo, os jogos de poder relevam-se sobretudo nas ideias externas (ao seu relacionamento) introduzidas pelos amigos, situações académicas ou familiares, acabando por influenciar o modo como se relacionam intimamente. Muitas das relações em que Marianne se encontra, para além da que tem com Connell, reproduzem a sua situação familiar e espelham o sentimento prevalecente de não se considerar digna de receber qualquer tipo de amor. Como tal, as suas tentativas de intimidade reflectem a maneira como é tratada pela sua família, que por sua vez vê Marianne como uma entidade rebelde e arrogante, distante, que se acha superior, e, por isso, merecedora de punição e dor. A única excepção é o relacionamento com Connell, do qual, apesar de todos os problemas de comunicação, resultam os únicos instantes em que se considera amada e capaz de retribuir afecto.

Normal People é muito focado e concentrado na relação e intimidade entre duas personagens que procuram, através do que Rooney chama «externalidades», tentar permanecer juntas. Ao contrário de um romance tradicional, onde no final da história terminam juntos ou terminam tragicamente separados, a relação de Marianne e Connell ao longo do romance é pautada por momentos de separação, outros em que permanecem amigos, outros em que não se falam e outros em que retomam o seu relacionamento. A ideia de amor que transparece, especialmente ao longo da segunda parte, é a de que a ligação entre duas entidades vai para além dos relacionamentos, quebras e reconciliações que enfrentam. Há uma conexão que transcende as aparências românticas, as pressões sociais, as deficiências de comunicação. O que ambos os protagonistas compreendem é que, proveniente do acaso, do facto de os seus caminhos terem-se entrelaçado e desembaraçado (neste caso mais que uma vez), é possível construir e reconstruir o amor que têm um pelo outro, e que não precisam de necessariamente permanecer eternamente entrelaçados para que esse amor não pereça.

O amor que Connell tem por Marianne (inicialmente secreto) tem paralelos com o seu interesse (também secreto) por literatura: a possibilidade de estudar o que adora a nível universitário, ao lado da pessoa que mais ama (Marianne incentiva Connell a ir para Trinity estudar Inglês), tornando públicos aspectos da sua vida que anteriormente fechara em si, dá a entender que existe uma proximidade e compatibilidade entre ambas as dimensões de vida, mas não com o resto do seu mundo. O tipo popular que alimentava uma paixão secreta e incontrolável por literatura desde os tempos do secundário, uma dimensão interior distinta daquela a que Connell desejava pertencer e que naquela altura revelava-se inconciliável; contudo, a paixão pela literatura não parece incompatível com o amor por Marianne. Daí que decida ir estudar para onde Marianne vai estudar História e Política. É a frequentar as cadeiras da literatura inglesa que Connell chega à seguinte conclusão sobre a relação entre literatura e o amor: existem várias sobreposições entre o modo como nos relacionamos com um romance e com um envolvimento romântico. Numa das passagens mais metaficcionais, Rooney narra as conclusões literárias de Connell da seguinte maneira:

One night the library started closing just as he reached the passage in Emma when it seems like Mr Knightley is going to marry Harriet, and he had to close the book and walk home in a state of strange emotional agitation. He´s amused at himself, getting wrapped up in the drama of novels like that. It feels intellectually unserious to concern himself with fictional people marrying one another. But there it is: literature moves him. One of his professors calls it ´the pleasure of being touched by great art`. In those words it almost sounds sexual. And in a way, the feeling provoked in Connell when Mr Knightley kisses Emma´s hand is not completely asexual, tough its relation to sexuality is indirect. It suggests to Connell that the same imagination he uses as a reader is necessary to understand real people also, and to be intimate with them. (68-9)

A sobreposição nasce necessariamente de os mecanismos que utilizamos para nos relacionar com as personagens de uma história (neste caso, amorosa) serem os mesmos que usamos quando procuramos compreender intimamente pessoas «reais». O facto de Connell sentir uma «estranha agitação emocional» por ter interrompido a história amorosa tem paralelos com o modo como a sua história com Marianne sofre pausas e reveses ao longo de Normal People. Rooney descrevê-lo no interior do romance não significa necessariamente que seja o que acontece fora dele; contudo, dentro deste contexto ficcional, há paralelos que o leitor pode descobrir no acto de Emma (protagonista do romance homónimo de Austen), enquanto personagem ficcional no mundo de Normal People, provocar agitação emocional em Connell, como por exemplo a semelhança com o tipo de agitação que Connell e Marianne poderão provocar no leitor, especialmente na forma como grande quantidade de episódios onde a falta de comunicação e subsequentes mal-entendidos acabam por funcionar como temática e modus operandi do romance, potencialmente provocando no leitor a já referida «estranha agitação emocional».

Embora não seja totalmente explícito na citação anterior se é o acto de ler alguém a beijar a mão do seu interesse amoroso ou o próprio acto de beijar a mão a alguém de quem se gosta (talvez essa ambiguidade seja intencional), a questão que ressurge é que, ao evocar a imaginação quer para a realidade íntima, quer para a intimidade ficcional, Sally Rooney aproxima o acto criativo do acto amoroso no romance. Este entrelaçamento implícito dá a entender que, tal como em relacionamentos reais, também a leitura de um romance se encontra repleta de retrocessos, de falhas de comunicação e interpretação, de afastamentos, abandonos, interrupções, reconciliações e sobretudo de mal-entendidos.

REFERÊNCIA:

Rooney, Sally. Normal People. Londres: Faber & Faber, 2018.