COMO CITAR:

Almeida, João N. S. «Christopher Nolan, Tenet». Forma de Vida, 2020. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0029 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2020.0029

João N.S. Almeida

Nolan não é Kubrick, tem sido dito, e apetece perguntar porque haveria de ser. Porém, a comparação é válida e possui pelo menos um bom ponto de partida: ambos são — ou parecem ser — meticulosamente exigentes quanto ao realismo na representação de certas peculiaridades técnicas pouco acessíveis ao espectador comum — no caso de Kubrick, em Dr Strangelove (1964), até hoje não se sabe ao certo como obteve os diagramas detalhados que lhe permitiram reconstruir na perfeição o cockpit de um bombardeiro B-42, na altura sob segredo de estado, e os procedimentos de lançamento nuclear a que assistimos no filme; no do realizador de Tenet, a obsessão constante que tem em alicerçar nas leis da física os argumentos fantasiosos com que costuma trabalhar. Mas as diferenças entre a tradição cinematográfica de cada um são muitas: este último precisa do barulho sonoro e visual, Kubrick não; precisa de lugares comuns (já especificarei quais) que se repetem ao longo da obra, Kubrick não; e precisa dessa meticulosidade racional subjacente a todos os “filmes-puzzle” que elabora, uma rede de relações lógicas fundamentadas em teorias da ciência contemporânea que sustenta o argumento — que, aliás, quase sempre acaba por constituir o núcleo substancial dos filmes, muito mais do que uma eventual forma estética singular que transcenda os meios utilizados, como na tradicional maneira de fazer um filme como forma de arte e não como problema lógico a resolver.

Quase todos os filmes do realizador fazem parte dessa referida tradição mais ou menos recente do «filme-puzzle»[1]: peças com maior ou menor qualidade narrativa, com maior ou menor densidade psicológica das personagens, mas  sempre dotadas de um argumento complexo que não é facilmente destrinçável à partida e que chega a requerer da parte do espectador — para gáudio de alguns autores e de, aparentemente, muitos espectadores — visionamentos repetidos até se conseguir juntar as pontas soltas do enredo e perceber de facto o que se passou. Estas obras, onde é evidente um deleite com a sua própria complexidade, muito mais do que na típica história de detectives, parecem destinadas a agradar a uma geração de jovens educados ou vocacionados para o campo das STEMs,[2] um público que desconhece largamente a história da arte em geral e que tem entre as suas principais heranças culturais, por exemplo, o positivismo cientifico — onde curiosamente a abstracção da matemática nunca é colocada de um ponto de vista filosófico —, a excitação proporcionada pelos paradoxos da física clássica e da física quântica e as versões actualizadas e muito reduzidas de mitologias antigas presentes nos livros de banda desenhada de super-heróis. Para este público, preso num arrested development em que se jogam jogos de vídeo na consola aos trinta anos e se consomem séries policiais (do tipo whodunnit, mas acompanhadas do gosto mórbido que envolve a actividade da polícia científica), pensar não é associar mas sim fazer contas; ver um filme ou ler um livro é resolver um puzzle e não uma experiência estética no sentido clássico kantiano, mais desligado da utilidade — e da resolução — e mais perto da finalidade sem fim. Observar este público a tentar interpretar Mulholland Drive (David Lynch, 2001), o Fellini de Satyricon (1969) e 8 e 1/2 (1963), ou The Holy Mountain (Alejandro Jodorowsky, 1973) com essa lupa resulta num exercício inócuo que passa ao lado das potencialidades desses filmes.

O realizador de Tenet, que, admitamos, é seguramente mais inteligente do que esta descrição de parte dos seus admiradores possa dar a entender, parece ter em tal população o seu principal público. É a essa tradição do thriller de sci-fi excessivamente complexo a que fomos habituados em películas como Memento (2000), Inception (de 2010, aclamada quase universalmente pela crítica e pelo público) e até Interstellar, que pertence talvez a um registo menos pesado e mais fluido, centrado na solidão pioneira do espaço e menos dependente da rede lógica em que o argumento se baseia. Tenet toma os registos anteriores e pretende engrandecê-los: é uma super-produção em que a reputação do realizador lhe permitiu reunir financiamento e assumir um grau muito maior de controlo criativo, chegando ao ponto de ser um agente negocial importante na questão da data de estreia, perturbada pela pandemia COVID de 2020. É neste projecto deveras ambicioso que poderíamos encontrar um píncaro da tradição do filme-puzzle a que o realizador é devoto: ao investimento, ao casting e à reputação acumulada do realizador corresponderia o argumento mais complexo de todos, com as subtilezas lógicas mais quasi-ininteligíveis. De facto, parece ser essa a opinião da crítica, não de modo inteiramente positivo: o filme foi recebido com temperaturas mornas, com aprovação, mas não com aclamação, sendo a principal queixa a excessiva complexidade. Parece, no entanto, estranho que assim seja, já que a premissa fantasiosa — que será explicada já de seguida — não parece ser diferente em espécie mas apenas em grau das restantes obras do autor. Isto leva a crer que parte da crítica se situa no mesmo comprimento de onda de parte do púbico, estando mais interessada na resolução do filme-puzzle e menos na sua apreciação enquanto filme em si; isto porque o filme não tem nem a ganhar nem a perder com a complexidade — e ininteligibilidade — do argumento, mas só tem a ganhar com a submissão e secundarização desta complexidade ao objecto fílmico em si, ao filme enquanto filme, que é o que parece acontecer em Tenet, conforme passarei a explicar. Antes disso, uma breve introdução aos pontos base do argumento.

Uma explicação simples das linhas-mestras da narrativa não é grandemente exigente para o leitor ou espectador: trata-se de um thriller de espiões em que o protagonista procura salvar o mundo de uma ameaça devastadora (que, de maneira mais ou menos torcida, e como em Interstellar, baseia-se na ideia do aquecimento global). Para isso, desloca-se a vários locais do planeta, uns mais exóticos do que outros, para que, no meio de intrigas e cenas de luta, possa prosseguir na sua demanda e impedir a catástrofe. O elemento de sci-fi que distingue o filme é, efectivamente, original: a possibilidade dos protagonistas e dos antagonistas se movimentarem temporalmente em reverso, ou seja, no sentido contrário à direcção do tempo para o resto das pessoas. Isto permite não apenas a construção de sequências únicas em que algumas personagens se movimentam no sentido normal do tempo e outras no sentido inverso, interagindo porém umas com as outras, mas também permite que, a dado momento do filme, uma ou várias personagens voltem para trás e revivam e interajam em momentos anteriores do filme na perspectiva invertida. Esta alteridade sugere algo de Vertigo (Hitchcock, 1958) ou dos doppelgängers presentes na obra Lynch (no já referido Mulholland Drive, ou em Twin Peaks, de 1991 e de 2016), mas enquanto nestes últimos o conteúdo da alteridade é claramente metafísico, no caso de Tenet — e em geral em todas as obras do seu realizador, e não por causa do factor temporal da alteridade — o conceito de metafísica não se aplica de todo: o argumento está tão submisso às leis da física que tudo o que houver a dizer começa e acaba nesse campo. A única luz de meta que avistamos no filme são uns pálidos comentários sobre determinismo que não passam do registo habitual do blockbuster de Hollywood, sempre muito focado na mitologia americana da livre-escolha. Estes segmentos, porém, estão melhor escritos do que nas anteriores obras do realizador, o que denota uma evolução face aos títulos anteriores de que falaremos mais à frente.

Em termos de grande arte cinematográfica, no sentido clássico, esta é quase ausente: a direcção de actores é competente, mas mediana; a montagem pauta-se por um ritmo apressado de filme de espionagem, mas sem nada de original; e os planos só ganham valor, efectivamente, por representarem cenas de grande investimento e estarem ligeiramente acima, em termos de qualidade, da cinematografia habitual de Hollywood. Assim, as mais-valias deste filme emergem de outra tradição que não a do filme como forma de arte, uma tradição também inteiramente válida, embora nem sempre bem-sucedida: a de gastar muito dinheiro (como o Howard Hughes de Hells Angels, de 1930, ou o Tom Cruise da série de filmes Mission Impossible, principalmente nas entradas de 2011, 2015 e 2018) e ter um bom espectáculo visual, cenas de magnitude ousada, representações de coisas deslumbrantes que não se vêem todos os dias. É o tipo de filme em que o espectador pode dizer, quanto mais não seja, que sente que valeu o dinheiro do bilhete. Perante isso, quer a ausência de arte quer o conceito por vezes muito irritante, pedante e mesquinho de filme-puzzle pode passar para segundo plano, e tornar-se desde pouco importante a até mesmo irrelevante para o objecto do filme-em-si, com o mesmo valor dos aspectos técnicos da fotografia ou do som do filme. Não é que esses aspectos não sejam importantes, mas o conhecimento que o espectador possua deles não é relevante para a sua apreciação do produto final como obra cinematográfica; do mesmo modo, as justificações e explicações de base no estado-da-arte da ciência que subjazem ao argumento nem sempre são importantes para o espectador e para um bom filme.

Assim, ao contrário do que aconteceu nas suas obras anteriores, neste filme os tiques do realizador dissolvem-se no espetáculo de cenário e visuais; além do carácter de puzzle e a fundamentação nas leis da física, sempre presentes, entre esses tiques encontramos um apreço por personagens que usam fatos, pela britishness e por uma ideia de dandismo cosmopolita, além de um uso abusivo da banda sonora, que constantemente se sobrepõe à imagem e à palavra. Uma falha grande que quase nem tem importância é o antagonista do filme: interpretado por Kenneth Branagh, é uma figura plana, e não percebemos se se trata de uma piada auto-consciente do autor e da interpretação de Branagh ou se entenderam que o arquétipo muito gasto do «oligarca russo» poderia ainda ser levado a sério. Todos estes usos de lugares-comuns poderiam ser uma expressão vitoriosa, se usada com o mesmo assumido fanatismo que o autor dedica aos engenhosos enredos. Mas na generalidade da sua obra, essa parte fanática da pesquisa distingue-se da parte business-as-usual de outros aspectos do filme, como a direcção de actores ou os enquadramentos, que não têm nada de extraordinário nem de fanático; assim, a maior parte dos referidos tiques autorais assemelham-se mais ao papel de embrulho de má qualidade que envolve o puzzle. Porém, em Tenet, toda essa micro-cacofonia que pauta as obras do autor desaparece e torna-se notoriamente irrelevante, passando a ser dominada pelo género e pela arte visual (mesmo sendo esta baseada em gastar muito dinheiro e ter bons actores, tecnicamente falando). Na sequência desta análise, o filme merece a seguinte avaliação: é um thriller de espiões, com algumas inversões temporais à mistura, que se revela inteiramente satisfatório, perfeitamente integrado na tradição de que advém, e para o visionamento do qual não é necessário resolver nenhum puzzle nem dar grande importância às pequenas reviravoltas da história, mais inteligíveis ou menos inteligíveis, pois o núcleo duro, o fio principal da narrativa, alicerçado nessa tradição previsível do filme de espiões, é perfeitamente claro e bem produzido.

Uma correcção, se é que tal é necessário: não se afirma aqui que o mega-investimento e os seus frutos visuais não precisem de um argumento; precisam. Não precisam é em absoluto da teia de micro-justificações sempre presente nestes filmes-puzzle, sobre a qual supostamente o argumento jaz e que mantém a suspension of disbelief em jogo, dado que o espectador, ao descobrir óbvios buracos na lógica, perde a fé na ficção. O nível a que o realizador leva essa rede de justificações é que, noutras películas suas, quase engolia o filme — impelindo todo o público, já de si a isso predisposto, a esquecer o objecto fílmico em si e a dedicar todo o esforço cerebral, quer no visionamento, quer depois deste, à resolução do puzzle — e engolia, além do filme-como-filme, o argumento em si. Este, aliás, em todas as obras do autor, acabava por ser algo fraco, manifesto em linhas narrativas que pouco tinham de original e na fraqueza das personagens, maioritariamente de profundidade sofrível. No caso de Tenet, o investimento financeiro, o carácter de mega-produção, e talvez também o género de forte tradição do thriller de espiões a que foi tão explicitamente beber — mimetizando-o e não apenas inspirando-se nele — conseguem, finalmente, subtrair o protagonismo aos fetiches da micro-lógica excessivamente complexa com que o realizador costuma trabalhar em primeiro plano e secundarizá-los para o seu devido lugar, fazendo o filme menos do autor e mais do cinema. Nolan não é um génio da arte, mas sim um obreiro competente no thriller sci-fi em que se especializou. Atinge aqui um ponto de maturidade, mas este é um tipo de maturidade que, à semelhança dos encontros nas inversões temporais que ocorrem no filme, tem dois sentidos: não é uma maturidade só sua, ou seja, é o ponto onde o seu próprio arrested development se deixa transcender pelo mundo do cinema em que trabalha, e em que ambos os lados, o autor e a indústria, coexistem correctamente. Isto contraria o modelo romântico que exige que o artista seja tão livre e tão inspirado quanto possível, que é um modelo que evidentemente não serve para toda a gente nem para todos os casos; o autor, aqui, torna-se um eficaz obreiro de uma fórmula vencedora que requer a exímia competência técnica de todos os envolvidos. Neste caso, o produto final fica a ganhar.


[1] Mais sobre tal sub-género ou tendência de certo cinema de Hollywood actual pode ser lido na colecção de ensaios Buckland, Warren, ed. Hollywood puzzle films. Routledge, 2014.

[2] O acrónimo STEM (science, technology, engineering, and mathematics) agrupa áreas académicas privilegiadas nas escolhas educacionais contemporâneas, sendo natural que muito do público do autor tenha familiaridade com essas suas preocupações.

REFERÊNCIAS:

Nolan, Christopher, realizador. Tenet. Warner Bros Pictures, 2020. 2 hr, 30 min.