COMO CITAR:

Monteiro, Teresa Líbano. «José Tolentino Mendonça, O que É Amar um País: O Poder da Esperança». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0050 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0050

Teresa Líbano Monteiro

O mais recente livro de José Tolentino Mendonça, O que é amar um país — O poder da esperança, foi escrito e publicado em 2020, em plena pandemia de Covid-19. O livro é uma breve reflexão que se debruça sobre esta crise global com preocupação, mas igualmente com alento e esperança, como anuncia o subtítulo. A reflexão reparte-se em três ensaios: o primeiro, que empresta o título ao livro, consiste no discurso que o cardeal D. Tolentino pronunciou, a convite do Presidente da República Portuguesa, no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a 10 de Junho de 2020, e é essencialmente sobre Portugal — o seu passado, evocado na figura de Camões, as dificuldades vividas no presente e a necessidade de, neste tempo, relembrarmos e fortalecermos o conceito de «comunidade»; os dois outros ensaios, «O poder da esperança» e «Do tempo da calamidade ao tempo da graça», são um prolongamento do primeiro e ampliam-no para uma escala global, pois é essa a escala a que se sentiram, e sentem, os efeitos da pandemia.

Tolentino começa o livro por lembrar a sua história pessoal para, depois, estender essa lembrança à história comum dos portugueses e, por fim, às comunidades, num sentido transnacional. Assim, a primeira vez que o cardeal usa a palavra «raiz», repetida diversas vezes no primeiro ensaio, é para se referir à sua origem madeirense, partilhada com o poeta Herberto Helder, de quem cita os versos: «como pesa na água (…) a raiz desta ilha» (p. 9). Ao longo do livro são feitas constantes referências a autores, artistas, santos, personagens bíblicas e obras literárias, religiosas e artísticas (identificadas num índice onomástico, nas últimas páginas) sem fazer grandes distinções entre elas. Um dos grandes méritos de Tolentino é saber evocar tantas referências eruditas sem sombra de pretensiosismo. A evocação destes criadores e destas criações é sempre pertinente e natural e serve para sustentar, à maneira de raízes, as ideias do autor. Assim, a segunda referência à palavra «raízes» surge quando é lembrado o episódio da tempestade n’Os Lusíadas, que acontece no Canto VI, mesmo antes da tão aguardada chegada dos nautas portugueses à Índia. A tempestade é a adversidade antes da bonança e serve, diz Tolentino, para nos lembrarmos da nossa fragilidade no mundo (ou, em termos camonianos, do desconcerto do mundo). Durante este episódio, as árvores ficaram do avesso, com as raízes viradas para cima, no lugar dos ramos, algo que «[a]s forçosas raízes não cuidaram», escreve Camões. Também nós não esperávamos entrar, sem qualquer aviso, nesta enorme crise sanitária, que é também social e económica. É a propósito da situação actual, tão atípica quanto atemorizante, que Tolentino tece, na restante obra, considerações muito pertinentes.

Falta-nos uma educação para a solidão, adverte o autor. Tal educação seria essencial para atravessarmos este período de crise com uma interioridade robustecida, pois «[s]e calhar há muitos recursos dentro de nós que habitualmente não precisamos sequer de activar mas que agora é o momento de pôr em prática» (p. 114). O confinamento não é uma pausa ou um adiamento na vida, mas uma forma de a intensificar. E sabermos viver melhor a nossa solidão não significa desligarmo-nos dos outros: significa, bem pelo contrário, que «temos de inventar outra tactibilidade para o mundo e para a vida» (p. 111). Por isso é tão indesculpável, lembra Tolentino, a redução a números (de mortos ou de infectados) e o abandono a que sujeitamos os mais velhos. Ser mais velho não é ser menos pessoa, pois «não se envelhece para morrer. Envelhecemos para nos saciarmos de vida» (p. 88). A proximidade física, acrescenta adiante, pode não coincidir com uma proximidade real. Significa isto que «há uma proximidade que podemos construir» (p. 112) para que possamos estar presentes para aqueles de quem temos de estar longe. Felizmente, as novas tecnologias dão-nos aqui uma ajuda fundamental.

A solidão é mais bem vivida quando a povoamos de histórias. Os mais velhos, saciados de vida, são, sem dúvida, uma boa fonte de histórias. Mas qualquer pessoa o pode ser, sobretudo vivendo esta época tão extraordinária. Tolentino conta-nos a história de uma senhora italiana que, no início do confinamento, decidiu telefonar para a esquadra que ficava na sua rua, por ser dos poucos lugares que ainda se encontravam abertos. Queria apenas saber como estavam os polícias. Multiplicam-se relatos destes, profundamente simples e comoventes, que mostram bem a necessidade de empatia de que todos precisamos, especialmente os menos acompanhados. Há ainda outras histórias, as dos livros, que nos podem servir de escape para outras realidades ou que podem, por outro lado, ajudar-nos a encontrar uma explicação para a realidade que vivemos. Tolentino exemplifica este último caso com o recente aumento da venda de livros sobre epidemias, como La Peste, de Camus. A terapia que encontramos na literatura pode ser vivida de maneiras diferentes — como evasão ou como explicação do nosso mundo. Em todo o caso, ajuda-nos a ajustarmo-nos melhor a ele.

Outro conselho importante para sabermos viver bem a solidão é a adopção de uma atitude contemplativa: demorarmos o olhar nos recantos mais menosprezados para conseguirmos captar a beleza das coisas. Penso nos relatos de tanta gente que, durante a quarentena, descobriu um gosto especial pela jardinagem, pela arte, por fazer arranjos, ou, simplesmente, por estar em casa, que passou de lugar de passagem a lugar de pousio. No entanto, nem todos temos a sorte de ter uma casa confortável ou de viver na melhor companhia. Para as pessoas que vivem estas situações menos felizes, Tolentino lembra que é sempre possível usar a beleza «como arte de resistência» ao «acordarmos em nós imagens de beleza» (pp. 117-118). O autor recorda, a este propósito, a experiência de judeus admiráveis que, nos campos de concentração, conseguiram resistir às atrocidades nazis ao se deixarem inflamar por essas imagens de beleza, uma casa interior que se encontrava fora do alcance das mãos mais invasivas. Etty Hillesum, por exemplo, «uma das grandes místicas contemporâneas, (…) num campo de concentração fez um caminho de transformação extraordinário e escreveu um dos mais belos diários da contemporaneidade» (p. 122). Mas creio que, no contexto em que vivemos, podemos encontrar outros exemplos de resiliência interior sem precisarmos de recordar casos tão extremos.

«A descoberta do poder da esperança», afirma Tolentino, «é a primeira oração global do século XXI». Todos esperamos o fim próximo da pandemia, e que até lá os números exorbitantes que todos os dias vemos nos jornais sumam sem deixar rasto. José Tolentino Mendonça, poeta e cardeal, usa vocabulário religioso no seu discurso para falar sobre a experiência global da pandemia. Por exemplo, na página 68, afirma que esta catástrofe humanitária nos fez perceber que «os nossos estilos de vida (…) precisam de conversão», ou seja, que precisamos de criar uma aliança com a vida na qual o mundo em que vivemos, com toda a sua biodiversidade, importe. Nos dias de hoje, uma mudança de valores tem de ser também uma mudança ecológica. Neste sentido, «os cientistas (…) recordam[-nos] que o número de epidemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não têm em conta o equilíbrio dos ecossistemas, nem o respeito pela casa comum» (p. 67). Cuidar de nós é também cuidar do mundo, pois é no mundo que existimos. Este discurso ecoa as palavras do Papa Francisco, cuja preocupação com o ambiente se pode ler na encíclica Laudato Si’ (2015). O cuidado com a casa comum é um dever católico, no verdadeiro sentido da palavra — isto é, universal.

Por fim, se Tolentino adapta o discurso religioso ao actual contexto epidémico, o inverso também acontece ao longo destes três ensaios. Há palavras, antes tão pouco ouvidas, que entraram de forma abrupta no vocabulário do nosso dia-a-dia: confinamento, quarentena, pandemia, normalidade. Estas palavras repetem-se tantas vezes, em Portugal e no mundo inteiro, desde há um ano para cá, que estão já gastas. Mas Tolentino consegue dar a volta a este empanturramento de termos estritamente pandémicos ao empregá-los noutros contextos. Veja-se, por exemplo, o paralelismo que o cardeal faz entre o antes e o depois da pandemia e a morte e a ressurreição de Cristo: em ambos os casos, deparamos com a mudança radical do mundo.  Por outro lado, o poeta também emprega os termos técnicos da pandemia em contextos diferentes do religioso. Por exemplo, nas primeiras páginas afirma que «Camões desconfinou Portugal», pois desconfinar não é simplesmente sair de casa, mas «[é] não se conformar com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo» (pp. 12-13). Neste sentido, mesmo estando fisicamente confinados, é possível experimentarmos a liberdade. Como sabiamente nos recorda José Tolentino Mendonça, temos reservas inesperadas de criatividade e de energia em nós e este é o tempo propício para as desconfinarmos. 

REFERÊNCIA:

Mendonça, José Tolentino. O que É Amar um País: O Poder da Esperança. Lisboa: Quetzal, 2020.