COMO CITAR:

Torres, Carolina. «Adília Lopes, Dias e Dias». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0054 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0054

Carolina Torres

Dias e Dias, de Adília Lopes, publicado no fim de 2020 e escrito, tanto quanto podemos perceber, até Junho desse ano, é uma colecção de pequenos textos, alguns poemas e um conjunto de memórias da primeira metade do ano passado. Refere-se, assim, ao início da pandemia, quando ficámos todos em casa, pela primeira vez. É um livro raro porque é um diário extraordinariamente recente. 

Neste diário, existem apenas três poemas sem data: os dois primeiros do livro, que talvez tenham sido notas perdidas ou acrescentos posteriores, e um outro, umas páginas adiante, que se repete na contracapa: «Não se pensa mais nisso. Saúde!» (p.17). Suponho que esse poema não tenha data por ser um pensamento recorrente, um estado de espírito — aquele que acompanha o livro todo. Já no poema «Quarentena», (p.35) encontramos não só o título deste livro como, num dos versos anteriores, o nome da obra que o antecede: Estar em casa (2018). Sabemos que essas linhas foram escritas dia 26 de abril às 11h14, e é o único poema que marca também as horas. Não sabemos se será especial, se será por isso que vem dele o título do livro («Estar em casa / estar a estar / dias e dias»), mas a exactidão com que sabemos o momento daquele poema lembra um assento de nascimento, com um dia e uma hora.

Num tempo em que a vida foi mais angustiante que o normal, este livro é um movimento pendular entre a solidão e as memórias, entre os dias e dias que se repetem parecidos, dentro de casa, sem se tornarem claustrofóbicos, porque dentro de casa habitam também histórias antigas e, dentro de cada pessoa, todas as memórias que a constroem. Tal como podemos ler na página inicial, «a poesia desentropia». Os detalhes que distinguem uns dias dos outros são os mesmos que tornam vivas as lembranças de outros tempos, e que dão a sensação de que todo o livro é uma massa homogénea de histórias. 

Não é um livro triste, se a tristeza for incompatível com o optimismo e a serenidade que nele encontramos. O que permeia este diário é um certo sossego de saber com o que se conta, o que é bizarro se pensarmos que é um fruto deste tempo em que ninguém sabe bem com o que contar. Por isso, podemos entendê-lo como o descanso das coisas pequenas que se repetem, um descanso que não anestesia nem aliena. Pelo contrário, observa e repara. 

As memórias de Adília Lopes misturam-se com as nossas, não só nas referências que talvez possamos partilhar, mas especialmente pela anotação da data de cada poema, na sua margem: Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho de 2020. Foi tudo ontem, tudo num tempo que habita a nossa memória colectiva, aqueles dias mais ou menos intermináveis em que ficámos em casa e houve mais medo e melancolia que o normal. A viagem pelos poemas é também, portanto, uma viagem por esses dias que partilhamos todos. Como quem sabe onde estava no dia 25 de Abril de 1974 ou no dia 11 de Setembro de 2001, talvez ainda saibamos onde estávamos no dia 4 de Abril de 2020, por exemplo. Foi um sábado, véspera do Domingo de Ramos que anunciava uma Páscoa estranha, num tempo em que o confinamento ainda era uma coisa relativamente nova. Não sabíamos bem o que pensar sobre ele, se duraria ainda duas semanas ou meses inteiros. Nesse dia, Adília Lopes lembra-se de uma prima, sonâmbula, que sofria dos pulmões e descreve como ela se sentava numa chaise longue, deixava as janelas abertas e aspirava o ar dos eucaliptos (p.19). É fácil para o leitor criar uma relação com esta memória desses primeiros dias de Primavera em que víamos a natureza despontar apenas pelas nossas janelas, em que uma boa parte do que nos ocupava a vida se relacionava, de alguma maneira, com questões respiratórias e pulmonares. 

Quando lemos «É a quarentena do coronavírus» (p.21), imediatamente nos lembramos de que até há pouco tempo falávamos em quarentena porque todo este novo vocabulário ainda era estranho. A «quarentena» aconteceu entre Março e Maio do ano passado. Agora estamos em Março outra vez, e é o confinamento — Adília Lopes em quarentena faz companhia neste confinamento e os programas que nos conta que ouvia na Antena 2 ainda passam. Podemos ouvi-los se ligarmos o rádio. Sobreviveram ao vírus. Esse privilégio de ler um diário sobre o qual ainda não passou tempo praticamente nenhum é raro e precioso. 

Há nesta partilha uma intimidade que causa pudor a quem lê, porque provavelmente não estamos habituados a ter uma sensação de acesso imediato a ela. Num mundo onde aparentemente tudo se partilha, mas em que cada partilha se calcula, há uma certa dificuldade em acolher esta intimidade; uma incapacidade de olhar de frente a fragilidade que não tenha miséria, que não seja aquela fragilidade que pede protecção e ajuda, mas uma fragilidade natural, que é simples e despudorada. Neste livro, como de costume, mas talvez um pouco mais, Adília Lopes apresenta esta fragilidade, que está apenas ali, em todos os dias, onde pertence e deve estar.

O mundo é fascinado por pessoas despachadas, que se desembaraçam sozinhas, que são independentes. A autonomia é uma competência importante para quase todas as sociedades. O livro não a valoriza de maneira nenhuma, e isso é estranho e incomoda. Há uma passagem em que Adília Lopes confessa ter 60 anos e não saber cozer esparguete. Isso incomoda porque há uma humildade demasiado sincera nesse texto. Adília Lopes não tem qualquer desprezo pela arte de fazer esparguete, não é essa a razão de não a dominar. Antes pelo contrário, mostra entusiasmo e espanto em relação a todo o processo. Há uma certa comoção numa pessoa de 60 anos, que com puro fascínio e pura ingenuidade, aprende a cozer esparguete (p.23).

Nesse mesmo dia, em que aprende a fazer esparguete, Adília Lopes repete a frase que escreve na página anterior «Vem aí a macacoa, a miséria?» (pp. 22, 23) quase em tom de desafio, como se, perante o espaguete cozido, pouco mais interessasse. Este tom de loucura pontua um pouco todo o livro, no entanto, este é o único momento em que nos deparamos com algum tipo de exaltação. O diário revela-se como uma colecção de poemas revolucionários pela sua serenidade e confiança perante uma espécie de fim do mundo, anunciada por todo o lado, mas nunca por Adília Lopes. Vai contando os dias, apontando as datas, não na ansiedade de uma contagem decrescente para alguma coisa, para a tal «macacoa», mas num movimento crescente e de descanso verdadeiro. Os dias repousam neste diário, arrumados no meio da desarrumação daquela casa que é descrita em todo o livro. 

Numa das últimas páginas, Adília Lopes escreve «Gosto de cismar num quarto interior» (p.51); um quarto que guarda coisas bonitas penduradas nas paredes e de onde se pode entrar acabrunhado e sair alegre. Serve para um pensamento activo, como que uma dança, ou «dansa», como escreve. Porque «dansa», escrito desta maneira, faz pensar num corpo em movimento. E embora escreva sentada, sente que se move de verdade. 

Num tempo de morte e de angústia, os poemas vão nascendo uns a seguir aos outros num tom de esperança que nunca se impõe, mas que se mantém presente. É uma esperança que se ocupa das coisas pequenas, das pequenas rotinas e das tarefas domésticas, que se alimenta de objectos bonitos e perdidos. E vive nessa beleza primaveril de pequenas novidades em coisas profundamente conhecidas. 

REFERÊNCIA:

Lopes, Adília. Dias e Dias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2020.