COMO CITAR:

Reis, Lauro. «Yosa Buson, Os Quatro Rostos do Mundo». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0055 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0055

Lauro Reis

Yosa Buson (1716-1784) é considerado retrospectivamente pela crítica como um dos maiores poetas japoneses modernos. Antes do reconhecimento das suas capacidades poéticas, reconhecimento inaugurado por Masaoka Shiki (1867-1902), Buson era celebrado sobretudo pela sua qualidade enquanto pintor. Embora não fosse extraordinário o artista japonês dedicar-se a vários ofícios artísticos, o que distingue Buson da maioria é a sua excelência nesses dois planos. Porém, a sua excessiva humildade fazia-o considerar a sua própria poesia não meritória de qualquer obra publicada exclusivamente em seu nome: «Não é necessário fazer-se uma compilação dos meus haiku. Muitas vezes, publicar um poeta reconhecido acaba por trazer-lhe problemas. O que se torna bem pior para alguém que não passa da mediania, como é o meu caso.»[1] Resta-nos agradecer à desobediência dos seus discípulos em publicar postumamente uma colectânea dos haiku do seu mestre, mestre esse que via no seu precursor Matsuo Bashô o pináculo de arte poética que modestamente procurava emular.

Tratando-se de um género poético oriundo de outra actividade poética distintamente japonesa (Renga, poesia colaborativa), o haiku em si detém algumas características que merecem ser aqui recordadas: possui três versos divididos foneticamente (com a estrutura 5-7-5); necessita de conter uma palavra cortante (kireji), de modo a aglutinar, justapor, contrastar ou concluir uma observação, reflexão, acontecimento; faz menção explícita à estação do ano (daí o nome desta colectânea e a divisão dos haiku em Primavera, Verão, Outono e Inverno) ou refere algum animal, planta ou acontecimento tipicamente sazonal (Kygo). Onde os poetas se destacam da maioria neste género poético tão rigidamente formal e minúsculo em termos de estrutura é na capacidade de associação de ideias, de fazer alusão ou referência a poemas, autores, paisagens ou acontecimentos históricos, bem como na capacidade de cristalizar uma atmosfera natural, contemplada ou imaginada. Estaremos perante um haiku de elevada qualidade se o poeta conseguir invocar estas dinâmicas numa pequena peça.

Ora, o grande problema em conseguir traduzir tal grandeza técnica, formal e criativa para uma língua latina que não é pictográfica nem detém qualquer tipo de raiz comum, é a perda inevitável de várias dinâmicas celebradas na língua original. Isso acentua-se mais na tradução da língua japonesa pelo facto de um caracter poder conter em si uma multiplicidade de significados ou alusões, permitindo a economia vocabular num género tão mínimo. Uma língua latina não tem tais características. Podemos juntar a isso a particularidade de a língua japonesa não conter género ou número, o que obriga qualquer tradutor a partir da sua subjectividade para avançar com as suas liberdades criativas, de modo a oferecer alguma inteligibilidade e prazer na leitura. São estas limitações que levam Joaquim M. Palma, o responsável por esta edição, a referir-se aos poemas traduzidos enquanto «versões».

Partindo dessa perspectiva, a abordagem de Palma é notável, pois oferece nesta edição, à semelhança das duas anteriores publicadas pela Assírio & Alvim (colectâneas de haiku de Matsuo Bashô e Kobayashi Issa) uma robusta introdução, e uma elevada quantidade de notas de rodapé que servem para contextualizar e preencher aquela lacuna inevitável da «perda» de alusões e riqueza linguística e cultural subjacente a qualquer tradução de uma língua complexa e distinta como a japonesa. Deste modo, há uma curiosa dinâmica que surge na recepção destes poemas: fruto da inevitável descontextualização linguística de qualquer tradução, o que sucede é que os poemas mais universais, aqueles que não fazem menção a eventos concretos ou pessoas específicas, ou alusões obscuras a acontecimentos de que qualquer japonês estaria a par, são os que proporcionam mais prazer estético. Não cremos que houvesse a priori uma distinção entre poemas universais e concretos por parte do poeta. Contudo, a tradução destes poemas leva a que tal distinção seja feita, surgindo, assim, um novo modo de apreciação estética. Não é de estranhar que muitas discussões académicas, especialmente anglo-saxónicas, girem à volta das possibilidades de tradução e quais as consequências para o poema em si e para a sua recepção. O problema da literalidade e da fidelidade ao original é levado ao extremo quando estamos perante um poema de meras três linhas. Examinemos o seguinte haiku de Buson enquanto exemplo de um haiku «concreto»:

 

166.

Acompanhando Gyodai num passeio a Fushimi e a Saga.

de noite atravessámos o pomar de pessegueiros

e ao amanhecer já estávamos em Saga

fascinados pela floração das cerejeiras

yoru tourin o / idete akatsuki saga no / sakura-bito [2]

 

E contrastemos com o seguinte haiku:

 

379.

no encontro com o rio

cada riacho

perde o seu som

ochioute / oto naku nareru / shimizu kana [3]

 

O que distingue o primeiro haiku do segundo não é unicamente o facto de possuir uma didascália, ou a menção a locais geográficos do Japão. A distinção é a de que há poemas onde o leitor entra em contacto imediato com o poema e não sente que necessita de fazer recurso a qualquer instrumento acessório (notas de rodapé, biografias, tudo o que seja extraliterário) para conseguir retirar prazer na leitura ou identificar alguma sensibilidade poética de valor. Passa a ser um critério que diferencia os haiku a necessidade de contextualização, de modo a justificar a sua compreensibilidade. Isto tanto pode ser fruto da versão/tradução, do poema original, das suas referências obscuras, ou uma combinação destas três causas. Este critério torna uns poemas mais apreciáveis do que outros, e essa distinção necessita de ser apontada especialmente num tipo de poesia que se pauta pela sua objectividade e dependência dos sentidos, maioritariamente a visão e audição, como canal para apreender os contrastes observáveis entre humanos, animais, plantas, meteorologia, entre outros.

Atente-se na qualidade poética da versão do haiku 379: a observação da perda que acontece quando os riachos se encontram com o rio, como que engolindo no processo a aparência íntima, menor e jovial dos riachos, poderiam representar a individualidade que se desvanece quando desembocam num curso de água maior. A perda do seu som, que Buson aqui intui, seria semelhante à incapacidade de ouvir o canto de um pássaro em detrimento do canto de um bando. Ganham-se dinâmicas colectivas, mas perdem-se outras individuais. A perda de som não está necessariamente tingida de tristeza, mas de uma serena aceitação da inevitabilidade das coisas. Neste caso, é tão inevitável quanto universal que cada riacho, quando desemboca num rio, perca o som que o distingue, aquele som menor, tranquilo e calmo que se perscruta em locais menores. A qualidade literária deste haiku está à vista pelo facto de ser possível transmitir ou permitir a alusão a várias dinâmicas contrastantes: som elevado/íntimo, rio/riacho, grande/pequeno, ganho colectivo/perda individual. Seria um erro interpretativo pressupor que o original consegue ou sequer procura transmitir todas as dinâmicas acima mencionadas. Contudo, a economia vocabular, a objectividade na descrição leva a que esta versão portuguesa capture adequadamente o sentido do conteúdo do poema e a atmosfera formal do original.

No que toca ao haiku 166, apesar de ser possível avançar com uma interpretação nos moldes da anterior, existe uma dificuldade acrescida a nível da apreciação estética: que muito do acto de compor haiku advém em si da participação que o leitor/ouvinte detém na sua composição/apreciação/interpretação. Esta simples afirmação complica a sua apreciação, se juntarmos o contexto histórico-cultural onde o haiku se insere: é descendente da prática medieval colaborativa Renga, onde vários poetas se juntavam para contribuir para a criação de uma peça poética colaborativa. Fruto dessa prática, que deu origem a diversos subgéneros, surgiu o haiku, enquanto o primeiro poema que inaugurava essa actividade colaborativa. Para além deste pormenor, a maioria dos haiku eram compostos enquanto objectos de ensino a discípulos, agradecimento por estadias ou contributos financeiros, ou outras particularidades mundanas. O ponto é o de que esta vertente histórica influenciou o modo como o haiku era composto, e que a sua ausência complica, mesmo que indirectamente, o processo de tradução (mesmo que as notas contextuais de Joaquim M. Palma forneçam uma ajuda preciosa). O haiku não era uma peça lírica, introspectiva, que procurava apresentar um mundo inacessível e subjectivo sob a forma de uma peça intemporal; o haiku era uma peça que buscava cristalizar um instante, e embora contivesse um aspecto mimético, o poeta tinha uma clara compreensão de que a condição ontológica do poema não se assemelha em nada àquilo que procura representar. Essa clareza ontológica está patente em Buson, em vários poemas seus, nos quais deixamos aqui um como exemplo:

 

32.

É difícil saber como se escreve correctamente a palavra [referindo-se à ameixieira]. Mas como a palavra não muda o significado, o que é que isso importa?

a ameixieira está em flor

mas esqueci-me de como se escreve

o nome da árvore

ume sakinu / dore ga mume yara / ume já yara [4] 

 

A esta assimetria epistemológica-ontológica acresce a assimetria estética que surge no processo de tradução. O prazer estético que surge de um haiku como o do 166 não pode ser idêntico ao do 379, embora, é claro, haja sempre a possibilidade de se ler ou utilizar esses haikus para outros propósitos que não unicamente o do prazer estético. Esta limitação da versão/tradução é, até certo ponto, irredutível. De modo que é sempre de louvar o esforço por parte de qualquer tradutor em avançar com uma tradução, uma vez consciencializado destas circunscrições.

A empresa de tradução que Joaquim M. Palma tem realizado, primeiro com Matsuo Bashô, depois com Kobayashi Issa, e agora com Yosa Buson merece ser enaltecida pelo rigor e consistência que demonstra nas colectâneas que tem vindo a produzir e que muita falta faz. A intenção sempre foi a de oferecer a oportunidade de entrar em contacto com um entendimento poético e beleza consideravelmente distintos do nosso, e essa disparidade só nos poderá trazer benefícios em relação ao nosso conhecimento literário, aos nossos modos de ler, traduzir e interpretar o mundo. Aguardamos a conclusão deste quarteto com a possível elaboração de uma colectânea do último grande mestre de haiku, Masaoka Shiki, na esperança de que até agora, mesmo reconhecendo as complexidades inerentes a tal empreendimento, tal não desmotive Palma ou futuros tradutores e estudiosos da literatura japonesa a enveredar por este caminho estreito até a um recompensador norte.

[1] BUSON, Yosa. Os quatro rostos do mundo. Assírio e Alvim. 2020. pp. 35.

[2] BUSON, Yosa. Ibid. pp. 85.

[3] BUSON, Yosa. Ibid. pp. 146.

[4] «O autor está a ironizar o facto de os eruditos não se entenderem quanto à escrita do substantivo que identifica a ameixieira (ume?, ou mume?).» BUSON, Yosa. Os quatro rostos do mundo. Assírio & Alvim. 2020. pp. 48.

REFERÊNCIA:

Buson, Yosa. Os Quatro Rostos do Mundo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2020.