COMO CITAR:

Carvalho, João Maria. «João Madureira, Estudos Literários: Retratos». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0057 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0057

João Maria Carvalho

É certamente motivo de espanto que entre os estudos literários publicados no último ano se destaque um conjunto de peças musicais. Se, num primeiro momento, a designação nos parece apenas sugestiva, a escuta deste disco confirma a sua exactidão, mostrando ser possível à escrita musical a realização de indispensáveis «estudos literários».  Faz já algum tempo que o compositor João Madureira se tem revelado um atento leitor. A sua música foi-nos habituando a compreender melhor os poemas de Ana Hatherly – em peças como «Noite» (2010), «3 momentos para Ana Hatherly» (2003) – ou a situar o lugar da poesia e da literatura na liturgia, como faz na «Missa de Pentecostes» (2010), em que poemas de Teixeira de Pascoaes, José Augusto Mourão ou Mário Cesariny dão corpo à celebração comunitária.

Este disco, publicado pelo movimento patrimonial pela música portuguesa (mpmp), toma parte na colecção Melographia Portugueza (na qual figuram obras de importantes compositores portugueses, antigos e contemporâneos), e contempla composições pianísticas escritas entre 2009 e 2013, interpretadas por Ana Telles – uma das mais importantes pianistas de reportório contemporâneo, em Portugal. O primeiro ciclo de peças (que dá nome a todo o álbum), «Estudos Literários – Retratos» (2011-2013), foi escrito para o centenário dos «Estudos-quadro op.33» de Sergei Rachmaninov, e é composto por nove pequenas peças, retratando nove pessoas que, ao longo dos anos, foram tocando o percurso de Madureira*: retratos de compositores, artistas plásticos, poetas, professores de literatura; amigos.

Esta é uma música difícil de definir em conceitos rígidos, pois ela própria se furta a essa redução, inscrevendo-se num lugar feito de cruzamentos vários. O título desta obra sugere, à partida, um abandono de categorias estritamente musicais. Como explica o compositor, estas peças são «estudos literários, não apenas no sentido de que pretendem caracterizar uma realidade exterior, mas também no sentido em que se estabelecem enquanto entidades cujo funcionamento interno é devedor dos mecanismos literários, mais do que quaisquer outros.»

As próprias descrições de algumas das peças assumem a forma de títulos ensaísticos: «"Ivan" é um estudo sobre a velocidade»; «"Morton" é um estudo sobre a profundidade»; «"Marta", dedicado a Marta Wengorowius, é um estudo sobre o espanto»; «"Cristiana" é um estudo sobre a leitura». Esta forma de enunciação pode lembrar as Charles Eliot Norton Poetry Lectures de Italo Calvino (Seis propostas para o novo milénio, Editorial Teorema, 2006). Na verdade, muitos dos princípios que Calvino propõe para a literatura são assumidos por João Madureira na composição das suas peças**.

A leveza (tópico da primeira conferência de Calvino), que consiste numa operação de «subtracção de peso» (Calvino, Op. Cit., p. 17), permeia a música de Madureira, cujas peças são, muitas vezes, somente o eco, a ressonância, um quase-nada (ou quase-tudo).

A velocidade (abordada na segunda conferência de Calvino), manifesta-se em muitas das obras («António», «Ivan»), que parecem seguir os mecanismos da narrativa e dos contadores de histórias, num estilo rapsódico e fragmentário, unido por teias secretas, como aquelas que tecem a «arte que permite a Xerezade salvar a vida todas as noites», no «saber encadear uma história na outra e no saber interromper-se na altura certa: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo, uma captação do tempo» (Calvino, p. 53) que Madureira conhece e revela.

Mas o que melhor pode caracterizar a música de João Madureira é a multiplicidade (tema da quinta conferência de Calvino), uma «pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade não parcial» (Calvino, Op.Cit., p. 138), que leva Italo Calvino a desejar possível «uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permit[a] sair da perspectiva limitada de um eu individual» (Ibidem., p. 145). Esta consciência de uma obra que nasce a partir do outro assinala, de certo modo, a singularidade deste disco.

Em primeiro lugar, todas as composições são dedicadas a alguém. Aos já referidos «Estudos Literários-Retratos» (2011-2013) seguem-se «Ana, parabéns» (2013) composta para o aniversário de Ana Telles, «JS» (2014), escrita para o 80º aniversário de Jean-Sébastian Béreau, «Coroa» (2014), sobre um texto de Maria Gabriela Llansol e «Para Inês» (2009), composta para o filme Cinerama de Inês Oliveira. Madureira coloca-nos perante uma paisagem de afectos e de instantes.

Se a tendência é, muitas vezes, isolar a prática artística do transcorrer quotidiano da vida, João Madureira contraria esta orientação, inscrevendo a sua música no ritmo dos dias e das presenças. A peça «Ana, parabéns» testemunha este gesto, sendo estreada pela própria Ana Telles, entre amigos, na sua festa de aniversário. Podemos tomar este exemplo como um convite – talvez político – a recuperar a presença da música entre a comunidade e o pão de todos os dias.

Também do ponto de vista musical as peças são retratos de uma dívida confessada. Tal como o tecido do texto literário, articulam-se em redes intertextuais e, para utilizar a feliz expressão de R. O. A. M. Lyne (Further Voices in Vergil's Aeneid, Clarendon Press, 1992), deixam ecoar further voices: a de Messiaen, na coloratura harmónica da peça «Ana», Bach na escrita contrapontística do início de «António», a sobriedade do gregoriano na reelaboração do tema «parabéns a você» (em «Ana, parabéns»), ou ainda a discreta presença de Luciano Berio, pois a língua aquática de «Wasserklavier» (1965) – literalmente o piano de água – fala também na extraordinária peça «Coroa» (2011), que Madureira compõe sobre um excerto de Maria Gabriela Llansol.

Talvez seja esta a peça em que melhor escutamos o trânsito, tão apreciado por Madureira, entre o texto e a música, a fala e a melodia, sendo, por isso, paradigmática no contexto de todo o disco – e ocupando o lugar de maior duração (6’29), num álbum de peças relativamente breves. A obra assume a temática do excerto llansoliano («tem uma coroa de água sobre os olhos que os tinge de recordações diáfanas»), inspirando-se no movimento indefinido das águas, nas «volutas do lago». É predominantemente diatónica, e toma como eixo central o intervalo de quinta maior, trabalhando, por isso, o atmosférico terreno da ressonância. O modo como o material musical vai sendo desenvolvido é pautado por sucessivas variações, e por «cenas fulgor» (diria Llansol, referindo-se às cintilações que, no curso indefinido do tempo, fulguram como certezas); também aí, à semelhança do que promete o texto, «uma beleza sobre a outra transforma os dedos em indecisos», como se estes fossem tacteando, às escuras, o mistério (e quem escuta parece fazer o mesmo). A música prepara o texto e o texto prepara a música, na sequência intercalada entre o piano e a voz recitante, ambos interpretados, de modo irrepreensível, por Ana Telles. É um exemplo maior de como a música pode estudar e iluminar um texto.

Nestes sucessivos diálogos entre a música e a literatura, também João Madureira aponta, à semelhança de Italo Calvino, propostas para este milénio, numa música plural como o acontecer da vida, esse encontro inesperado do diverso (Maria Gabriela Llansol).

 

* I. Ana - Ana Telles (pianista); II. Carlos - Carlos Martins Pereira (pintor), III. António - António Pinho Vargas (compositor); IV. Eurico - Eurico Carrapatoso (compositor); V. Ivan - Ivan Fedele (compositor); VI. Morton - Morton Feldman (compositor); VII. A.H. - Ana Hatherly (poeta, artista plástica); VIII. Marta - Marta Wengorowius (artista plástica); IX. Cristiana - Cristiana Vasconcelos Rodrigues (professora universitária de literatura).

** João Madureira conhece bem a obra de Italo Calvino. Na tese de doutoramento que dedica à ópera La vera storia de Luciano Berio, toma como principal interlocutor Calvino, libretista dessa obra.

REFERÊNCIA:

Madureira, João. Estudos Literários – Retratos. MPMP, 2021. CD.