COMO CITAR:
Quintela, Madalena. «Josep Maria Esquirol, A Resistência Íntima, Ensaio de uma Filosofia Da Proximidade». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0058 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0058
Madalena Quintela
Em Maio do passado ano de 2020, foi publicada pelas Edições 70 a tradução para português do ensaio do filósofo Josep Maria Esquirol, A Resistência Íntima, Ensaio de uma Filosofia da Proximidade. Esquirol é professor de Filosofia na Universidade de Barcelona, onde dirige um grupo de investigação, de nome Aporia, e a presente obra, publicada pela primeira vez em 2015 pela editora espanhola Acantilado, valeu ao seu autor o Prémio Ciutat de Barcelona, logo em 2015, e o Premio Nacional de Ensayo, em 2016.
O ensaio de Esquirol é uma reflexão sobre a pergunta clássica «qual é a melhor maneira de viver?», tentando ao mesmo tempo entender se a filosofia desempenha um papel na resposta a esta questão. O que o autor defende logo desde o início é o retorno à quotidianidade de que nos afastámos, e que tem um lugar central nesta filosofia da vida. «O Prato na Mesa», título do primeiro momento dos três que constituem o livro, que se estende em dez capítulos, abre precisamente com a imagem de elementos quotidianos como um «prato na mesa, o azeite e o pão» (p. 11), numa refeição que congrega e une aqueles que se encontram em casa.
Esta imagem é rapidamente contraposta com a constatação da existência de forças entrópicas no mundo que concorrem para a «desagregação do ser» (p. 14), e será ao desafio que estas forças colocam que Esquirol tentará responder. Entre elas destaca-se o niilismo, que consiste no processo de «ir perdendo o fio, o enlace, a relação» (p. 25), e que conduz à experiência do absurdo da existência; esta reflecte-se numa relação com o nada, o vazio, simbolicamente o poço, o abismo. No mundo de hoje, o autor identifica duas modalidades de niilismo: a actualidade (a ausência de tempo, a perda de memória), e o dogmatismo (aquilo que é porque é, sem mais razões, que carece de razoabilidade).
Para Esquirol, é imperativo resistir a estas forças, e é nesse sentido que um retorno à quotidianidade se vai revelando cada vez mais importante. Para começar, Esquirol admite que a «névoa do niilismo nunca desaparecerá, já que faz parte da situação humana» (p. 37), e que, por isso, não é possível propor uma superação da experiência do niilismo, mas sim um modo de enfrentá-la. É aqui que aparece a figura do resistente. Note-se que o tipo de resistência prescrita não pode ser considerado apenas como reacção às forças desagregadoras: faz parte da própria ontologia do Homem, em que existir é essencialmente resistir (p. 16). Não é sem razão que se optou pelo vocabulário da medicina, pois, para o autor, o filósofo desempenha aqui o papel de médico, enfermeiro e mestre, tendo como missão recuperar a essência resistente do ser humano. Mais ainda, o que é proposto é uma «resistência íntima», que torna próximos, nucleares, íntimos, palpáveis a realidade, o outro, por oposição à abstracção que leva ao niilismo. Isto identifica-se com aquilo a que o autor chama de uma «filosofia da proximidade», que postula um retorno à origem, a um «certo tipo de quotidianidade que poderia ser candidata à “melhor maneira de viver”» (p. 62). Como afirma José Tolentino Mendonça, que prefacia o livro, «[e]ste é um livro de instruções para praticar uma resistência activa ao niilismo» (p. 8).
É no segundo e maior momento, intitulado «Cultivar o Jardim», que teremos acesso a uma descrição em maior detalhe daquilo em que consiste a proposta de Esquirol. Numa hipotética conversa com um anjo, o autor acredita que «a simplicidade da nossa vida quotidiana seria, aos olhos do anjo, o mais “extraordinário”» (p. 52). Esquirol entende «a quotidianidade não como queda [ao contrário de Heidegger], mas como resposta inerente ao abismo» (p. 57; itálicos do autor). Consciente da finitude da situação humana, numa filosofia da proximidade importam a atenção ao gesto, a valorização do senso comum, o cuidado da linguagem corrente, a partilha dos alimentos (com toda a carga simbólica da palavra «alimento»), uma atenção ao outro – sempre em relação, sem abstracções. E implica também um cuidado de si, com ênfase na importância do silêncio e da reflexão, de forma a criar uma fortaleza interior capaz de resistir.
Este cuidar de si não é narcísico: «A resistência só seria narcisista se permanecesse totalmente centrada no eu, mas o cuidar do outro é inerente à resistência» (p. 81). Assim, Esquirol considera que mesmo o momento de reflexão, o pensamento (que pode ser tanto oração como também a própria filosofia) é uma ocasião de aprofundamento da vida interior, no seu diálogo interior, que depois permite estar com os outros de forma mais completa, porque torna o si-mesmo num lugar de liberdade. São momentos de solidão, mas não de isolamento, e, quando verdadeiros, são experiências de conversão. Tudo isto é «sinal de uma vida espiritual profunda e de uma alma grande.» (p. 93), tornando-se o resistente num sinal de esperança para o mundo de hoje, um mundo da dispersão do ser.
O último momento tem um título obscuro: «O Suor Subatómico da Água». Este é, de facto, o momento mais esotérico de todo o livro. Esquirol pretende aflorar uma série de hipóteses que tentam chegar à origem, à génese, tanto da linguagem como da ontologia do Homem, de modo a criar uma base a partir da qual possa florescer uma meditação fértil no âmbito de uma filosofia da proximidade. Todavia, o autor apenas «aflora», pretende somente «dar uma pista» (p. 141), de tal forma que por vezes as ligações e relações que tece se tornam de difícil compreensão. Começa-se por inquirir acerca da génese da linguagem, que o autor identifica em duas vertentes: na prece/rogo, e no amparo. É esta a essência da linguagem: pergunta/grito, e resposta/acolhimento. Por fim, Esquirol elabora brevemente uma visão ontológica do ser humano enquanto «junção», ou «ajuntamento»; ser humano que, na sua precária situação cheia de limites, ou «zonas limítrofes», é «sutura da sutura» – uma apologia daquilo que Esquirol propõe como «metafísica do ajuntamento», e que, portanto, pede a relação.
Sem pretender clarificar este último argumento do autor, parece-me que a imagem do ajuntamento e das suturas pode ser útil para descrever a própria ontologia do texto de Esquirol. O ensaio é um ajuntamento, um cruzamento de várias linhas, vários tons, vários autores. Faz uso de uma linguagem marcadamente literária, e por vezes mesmo poética; faz uso de símbolos, criando uma imagética própria para descrever os seus pontos, chamando para o diálogo autores desde São Bento a Levinas, Nietzsche, Heidegger e Patocka; oscila entre um tom filosófico, outras vezes elaborando um ponto mais existencial, e pode-se dizer que também aborda questões de um ponto de vista espiritual, utilizando vocabulário do léxico religioso (sem por isso propor algum credo). As «suturas» que o autor cose com as várias linhas que utiliza nem sempre ajudam à clareza do texto (e por vezes até à sua própria coerência), e talvez o texto peça uma abordagem que não exija clareza de argumento, mas outro tipo de disposição. Apesar disso, o texto de Esquirol não deixa de proporcionar a oportunidade de uma reflexão particularmente pertinente para os dias que correm: confinados em casa, de retorno à origem e com o prato na mesa, o que pode a quotidianidade oferecer-nos de valioso, e de que modo pode a filosofia oferecer um caminho de aprofundamento nesse sentido?
REFERÊNCIA:
Esquirol, Josep Maria. A Resistência Íntima: Ensaio de uma Filosofia da Proximidade. Lisboa: Edições 70, 2020.