COMO CITAR:
Ramos, Tiago. «George Cukor, Gaslight». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0060 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0060
Tiago Ramos*
Na protocolar cena de créditos iniciais, à medida que os artistas pertencentes à produção de Gaslight (1944), de George Cukor, são elencados, no plano de fundo conseguem-se distinguir as sombras de duas pessoas, sendo que uma aparenta estar a estrangular a outra. Assim sendo, o primeiro plano a que o espectador tem acesso, ainda antes de a ação começar a desenrolar-se, prenuncia o assassínio de Alice Alquist, uma cantora de ópera reconhecida mundialmente, que é encontrada morta na sua residência, na Praça Thornton, em Londres. De igual modo, o engenho de sombras estabelecido pelo plano inaugural figura um dos motivos estruturantes da intriga: a dependência ontológica. Paula Alquist (Ingrid Bergman), a sobrinha da falecida cantora de ópera, tal como uma sombra projetada sobre uma superfície, afirma-se enquanto desdobramento ontologicamente vazio que está dependente de uma entidade que lhe dá realidade: a tia assassinada. Paula é a sombra da tia, uma figura ela própria espectral, que nunca surge em cena, uma vez que os primeiros passos da intriga são dados na sequência da sua morte trágica.
A longa-metragem começa, precisamente, com uma sequência na qual Paula, ainda criança, abandona a residência da sua tia, na noite depois do homicídio. «Perhaps Signor Guardi will make you into a great singer, as she was. Wouldn’t you like that?»[1], refere o preceptor que a acompanha até Itália, terra estrangeira onde Paula irá estar sob a tutela dos mais conceituados mestres de música do mundo, com o intuito de se tornar numa graciosa cantora de ópera, como a assassinada Alice Alquist. Paula acena, sem prenunciar uma palavra a respeito do que lhe é dito. Desta forma, a protagonista é caracterizada como uma figura passiva, sem voz. Paula não tem qualquer controle sobre o seu próprio destino. A protagonista é treinada para cantar como a sua tia; à medida que cresce adquire uma aparência semelhante à da sua tia; e acaba mesmo por desposar o mesmo homem com quem a tia teve um relacionamento amoroso. Não só são os traços da identidade de Paula definidos pelo espectro concomitantemente omnipresente e ausente da trama, Alice Alquist, como a protagonista começa a trilhar um percurso análogo ao da falecida. À vista disso, conquanto uma porção significativa da intriga se prenda com o matrimónio abusivo que acorrenta Paula ao domicílio e quase a leva à loucura, o trajeto da protagonista rumo à liberdade é sobretudo ontológico. Várias são as personagens que identificam Paula como uma dupla da antiga estrela de ópera. Signor Guardi (Emil Rameau) diz que Paula se parece com a sua tia e Brian Cameron (Joseph Cotton), o detective da Scotland Yard que investigou o assassínio da cantora, comenta que pensou ter visto o fantasma de Alice Alquist quando, na realidade, tinha visto a sua sobrinha.
Gregory Anton (Charles Boyer), o pianista misterioso com quem Paula se casa, também tem uma identidade dupla. Ele é tanto Gregory Anton, o homem encantador por quem Paula se apaixona em Itália, como Sergis Bauer, um assassino brutal que busca os diamantes desaparecidos de Alice Alquist. Desta forma, não é acidental que a primeira vez que o espectador os vê juntos, enquanto amantes, estes estejam diante duma estátua. A presença da estátua aponta para a natureza dúplice da identidade de Paula e Gregory, porquanto as estátuas, pelo menos aquelas que representam modelos humanos, podem ser encaradas como duplos aproximados das pessoas nas quais se baseiam. Tal como uma estátua, a existência de Paula é esculpida à semelhança de uma outra pessoa, essa sim ontologicamente significativa, embora fantasmática. De igual modo, a presença das barras metálicas no plano de fundo, no decorrer de toda a sequência supracitada, é sugestiva na medida em que, ao casar com Gregory, Paula está a condenar-se a uma vida de encarceramento. O esposo tentará enlouquecê-la, fazendo-a duvidar da sua própria sanidade através de um conjunto de artimanhas, mas também ao privá-la de interacções sociais fora da sua casa, na Praça Thornton, para onde o casal se muda depois da lua-de-mel. As barras metálicas prenunciam o encarceramento domiciliar de Paula, assim como o aprisionamento de Gregory, visto que quando a protagonista deixa o enquadramento, um novo plano figura as barras em primeiro plano, estando Gregory por detrás delas.
O regresso a Londres e a consequente mudança para a casa na Praça Thornton são um desenvolvimento significativo na trama porque evidenciam que Paula Alquist, agora casada com o antigo amante da tia, está, paulatinamente, a cumprir o destino da falecida. Ademais, o retorno à residência na qual o homicídio foi perpetrado inscreve Gaslight num registo gótico. O passado aristocrático associado à propriedade e o facto de esta ter sido abandonada durante anos, devido à ocorrência de um crime violento nas imediações, aproximam a casa de Paula das mansões assombradas arquetípicas dos romances vitorianos (de facto, a intriga da peça Gas Light, de Patrick Hamilton, na qual a longa-metragem de Cukor se baseia, desenrola-se em meados da década de 1880, durante a segunda metade da era vitoriana). A partir do momento em que o casal recém-casado volta a habitar a casa que estava abandonada desde a morte de Alice, existem apenas duas ocasiões em que Paula consegue evadir as masmorras da Praça Thornton. A primeira saída corresponde à visita à Torre de Londres – fortaleza que acomoda, em simultâneo, uma câmara de tortura e as Jóias da Coroa, o que faz da Torre de Londres um análogo da residência de Paula. A segunda fuga diz respeito à ida a uma cerimónia da alta sociedade londrina na qual Paula se desorienta, confirmando a aparente debilidade da sua saúde mental na esfera pública.
No interior da casa herdada por Paula Alquist, as escadas dividem a residência de acordo com uma hierarquia social. O rés-do-chão é um espaço reservado aos criados; Paula tem o primeiro e segundo andares para si própria; e finalmente o marido tem acesso exclusivo ao andar superior da habitação, onde procura, de maneira delirante, os diamantes perdidos. As serviçais escolhidas por Gregory Anton são figuras importantes dentro da economia narrativa porque demonstram a incapacidade de Paula em se afirmar quer na qualidade de esposa, quer enquanto figura de autoridade da casa que herdou. A presença da governanta, Elizabeth Tompkins (Barbara Everest), deixa explícita a ausência de controle que a protagonista tem sobre a sua própria casa, e Nancy Oliver (Angela Lansbury), uma empregada domiciliar que namorisca com Gregory, reforça a incapacidade de Paula em captar o interesse sexual do seu marido. Em várias sequências, a indumentária e penteado de Nancy e Paula são semelhantes, o que articula a ideia de que a empregada, progressivamente, está a assumir o papel de esposa de Gregory. No entanto, no que concerne à hierarquia da habitação, não é o marido que se encontra no topo da pirâmide. É no sótão que os objectos de Alice Alquist se encontram armazenados e estes têm um valor metonímico. A colocação dos pertences preciosos da falecida no topo da habitação expressa a superioridade de Alice face aos restantes peões da trama. Tal já havia sido estabelecido anteriormente quando o retrato pictórico de Alice Alquist é revelado por meio de um plano contrapicado que enaltece a dimensão da figura fantasmagórica.
Desta forma, só depois de Paula aceder ao sótão (a divisão proibida, representativa de poder, a que somente Gregory tinha acesso) é que a protagonista consegue alterar a dinâmica de poder vigente dentro da residência. Nos instantes finais, depois de Brian Cameron entrar na residência na Praça Thornton e maniatar Gregory a uma cadeira no sótão, a protagonista pede um momento para falar com o esposo. Paula vinga-se do marido atacando-o com o artifício que ele próprio tinha arquitetado. Amarrado a uma cadeira, Gregory implora para que a esposa o liberte usando uma faca que estava à mão, mas Paula assume a faceta enlouquecida que lhe havia sido imputada, fingindo não ver qualquer faca. Gregory Anton, por sua vez, faz o contrário ao abandonar a farsa do marido atencioso, preocupado com a saúde mental da esposa, revelando, dessa forma, a sua verdadeira identidade, a de Sergis Bauer.
Bauer é preso e enviado para a cadeia pelo assassinato de Alice Alquist. Paula Alquist tem agora o poder de tomar as suas próprias decisões pela primeira vez na sua vida, bem como pode afastar-se da imagem da sua falecida tia. Paula sobe além do sótão, encontrando-se, nos momentos finais, junto ao telhado do edifício, o que expressa o seu controle sobre a casa e a sua superação face à figura fantasmagórica de Alice Alquist. A protagonista pode reafirmar a sua independência e identidade, à medida que o sol nasce no horizonte, trazendo consigo um novo dia e novas oportunidades. Todavia, o padrão de domínio masculino não terminou necessariamente. Num primeiro momento, Paula cumpriu as ordens do professor de música e do tutor; depois foi subserviente em relação ao seu marido abusivo; e por fim é sugerido que este paradigma se pode perpetuar através do detective da Scotland Yard, Brian Cameron, que se junta a ela no balcão do telhado. «In the morning when the sun rises sometimes it is hard to believe that there ever was a night. You’ll find that too. Let me come and see you and talk to you»[2], diz Cameron à protagonista instantes antes do cair do pano. O carácter imperativo da frase torna possível inferir que, embora Paula Alquist se tenha visto livre das artimanhas cruéis do seu marido, Paula será novamente controlada por uma outra figura masculina que não a vê como ela realmente é, uma vez que Cameron a reconhece como o fantasma encarnado de Alice Alquist. Assim sendo, a prisão ontológica a que Paula está agrilhoada desde criança, assim como a clausura matrimonial, poderão continuar a definir a sua existência.
[1] «Talvez o Signor Guardi te transforme numa grande cantora, como ela era. Não gostarias que assim fosse?»
[2] «De manhã, quando o sol nasce, às vezes é difícil acreditar que alguma vez tenha sido noite. Descobrirás isso também. Deixa-me vir ver-te e falar contigo».
*CEAUL
REFERÊNCIAS:
Cukor, George, realizador. Gaslight. Loew's, Inc, 1944. 1 hr, 54 min.