COMO CITAR:
Mateus, Susana Bastos. «Jorge Salgueiro, A Nave Dos Diabos». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0063 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0063
Susana Bastos Mateus
No princípio, reinava a escuridão. Podiam ser estas as palavras iniciais da ópera A Nave dos Diabos, levada ao palco do Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, nos dias 10 e 11 de Julho de 2021, pela Associação Setúbal Voz e pela Companhia de Ópera de Setúbal. No entanto, as primeiras palavras são «tenho fome!», um grito dilacerante que um dos membros do Coro Setúbal Voz lança na entrada da sala, junto à plateia.
A proposta inicial deste projecto, com a concepção e sob a direcção artística do compositor Jorge Salgueiro[1], partiu de um tema amplamente revisitado na mais variada produção cultural portuguesa: o mar. Mas, se é o mar o elemento estruturante desta ópera, aqui tudo ganha contornos subversivos e os elementos são destorcidos, como que vistos do outro lado do espelho. Assim, se num primeiro momento a base narrativa escolhida se centrou num relato que integra a Histórica Trágico-Marítima, «Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho. Vindo do Brasil no ano de 1565», para muitos a história que serviu de base à famosa Nau Catrineta, fixada por Almeida Garrett no seu Romanceiro, a narrativa que aqui se apresenta, na forma como a constrói Jorge Salgueiro, elabora uma clara inversão dos papéis, sobretudo das figurações dos heróis e dos vilões, se quisermos manter essa dicotomia que, afinal, perpassa as construções literárias em torno das viagens marítimas quinhentistas.
Por entre uma profunda escuridão, o espectador entra nesta «nave dos diabos» a meio da acção. Há um navio à deriva, com uma tripulação que sofre com estas vicissitudes, faminta e desesperada. O primeiro grito lançado da entrada da sala é precisamente isso, o grito da fome. O mar parece alternar entre «mar chão / ventos de feição» e uma tempestade que se avizinha com as ondas que se assemelham, na forma e no som, a cavalos brancos que relincham. As sonoridades que escutamos trazem-nos esses mesmos cavalos com uma materialidade quase palpável.
No convés deste navio vemos sombras de gente que desliza – ou literalmente rasteja – com a ondulação das vagas de alto mar. Na mão têm lanternas que oferecem a pouca iluminação da cena, e que – ao serem apontadas para o público – ofuscam, mas também criam o efeito do movimento das ondas, da agitação desse mar ameaçador. Na escuridão, estes colectivos movem-se no palco[2], representando os homens e os elementos, ou os homens sob a influência dos elementos.
Mas os marinheiros não estão sós. No navio paira também o anjo da morte, vislumbrado e nunca totalmente visível, no meio da escuridão, mas identificado nas suas amplas asas negras, numa estética que remete para uma pintura pré-rafaelita. Para o espectador, o código é claro: a sombra da morte assoma e parece materializar-se para estes náufragos.
O coro dos marinheiros marca o ritmo, sempre na escuridão, neste navio à deriva numa luta desigual, a força dos homens desesperados na sua luta contra a enorme procela que prefigura, para além da perigosa tormenta marítima, também a agitação humana que sentimos crescer em palco. O coro feminino é o mar, este mar agitado, ao mesmo tempo sensual e ameaçador na sua sonoridade, que parece que a qualquer momento pode engolir o navio.
Perante o desgoverno, a tripulação remete-se para a figura de autoridade, o capitão do navio. Mas este capitão, ao contrário da figura de Jorge de Albuquerque na História Trágico-Marítima, é um homem sem qualidades, autoritário e alheio ao sofrimento dos homens. Ordena-lhes que tapem as caras e que se fechem no porão, num confinamento que lhes pretende retirar ainda mais qualquer vestígio de humanidade que tenham em si. Quando o coro de marinheiros responde «não somos ratos de porão», já está patente esse grito quase mudo, mas paradoxalmente ensurdecedor, da luta pela sua humanidade, fazendo eco da sinopse do espectáculo: «um cardume pode devorar um tubarão se disso tomar consciência».
O texto dramático oscila entre o registo de diálogos banais hodiernos e os reflexos do vocabulário quinhentista das narrativas da expansão marítima. Esta oscilação causa alguma estranheza, mas não deixa de ser resultante da aceitação clara de que ao utilizar material do século XVI, o compositor pretende verdadeiramente afrontar as inquietações que encontra no nosso mundo contemporâneo.
Apesar de ter figura discreta, o anjo da morte visita o navio três vezes. Leva três marinheiros que morrem de fome. Em palco, o contraste, na escuridão emergem figuras luminosas, os espíritos das águas, ecoando as Ave Maria de Schubert, Bach/Gounod e Caccini, enquanto os corpos dos mortos ascendem. Contudo, aqui não estamos num paraíso celestial, mas sim num pesadelo gótico, e os corpos não ascendem aos céus, mas ficam suspensos em cordas, como pedaços de carne pendurados num açougue; os corpos mortos desapossados da sua humanidade, no contraste dilacerante entre a música que ouvimos e a visão grotesca que é oferecida aos nossos olhos.
Confrontado com a situação penosa em que se encontram, o capitão decide que será levado a cabo um sorteio, e que o corpo de um dos marinheiros será comido. Este é a antítese do outro capitão da história tradicional, disposto a sacrificar o seu próprio corpo. Perante tão abjecta ordem, o inesperado acontece: os marinheiros transmutam-se perante os nossos olhos num bando de animais selvagens; das suas gargantas saem agora rugidos selvagens e investem sobre o capitão despedaçando e comendo o seu corpo. O sangue não o vemos, mas quase. É difícil neste jogo de violência não pensar em Thomas Hobbes e no seu «Man is a wolf to man». Depois deste festim canibal, as luzes acendem-se e todos os elementos em cena empunham bandeiras de liberdade[3] e convidam a plateia para um hino de júbilo ao som do mozartiano Exsultate, jubilate! A sequência final mostra o poder nas mãos do povo, com uma festa colectiva que remete para momentos de grande comoção popular, como os de 1789 ou 1848, em Paris, para depois, voltarmos, circularmente, a um grito final: «Temos fome!».
A Nave dos Diabos é em si um manifesto, uma ópera num acto e 13 cenas, que partilha com a audiência uma inquietação com o nosso mundo em crise; com o avançar de regimes autoritários; com a falta de espaço público de discussão, que vai minando e corroendo o interior das democracias, fenómeno em aceleração profunda no meio da crise pandémica. A composição parte da narrativa tradicional. Não a renega, mas subverte-a e, tirando-lhe a historicidade, coloca-nos a todos nessa nave fantasmática, que transporta uma humanidade à deriva, cada um dentro de si, questionando-se de que é que está faminto. Partindo dos pilares narrativos da épica e de engrandecimento dos chamados feitos heróicos dos portugueses, o que ouvimos é uma contestação ao poder indiscriminado e à violência perpetrada pelo(s) Estado(s). Mas é também o grito dilacerado dos artistas, de tantas companhias e grupos que lutam cada dia para pôr de pé e com dignidade os seus espectáculos, num contexto que lhes tem sido tão desfavorável. O aplauso vibrante do público no dia da estreia, parece mostrar que também os espectadores, depois de um longo interregno, estão famintos de mais produções que provoquem desassossego nos palcos portugueses.
[1] A Companhia de Ópera de Setúbal, criada em Julho de 2020, apresentou já três produções, Os Fantasmas de Luísa Todi e Vingança, ambas em 2020, e A Nave dos Diabos, agora em 2021. O seu enfoque centra-se na produção de obras originais sem abdicar da revisitação do repertório histórico português.
[2] A corporalidade do espectáculo está a cargo da coreógrafa Iolanda Rodrigues.
[3] Os objectos que os protagonistas trazem para o palco remetem para uma produção do Atelier de Ópera de Setúbal (outra das estruturas que integram a Associação Setúbal Voz), intitulada «47 Bandeiras da Liberdade», uma encomenda da União de Freguesias de Setúbal, por ocasião das comemorações dos 47 anos do 25 de Abril. Neste projecto, durante 47 dias, foram disponibilizados vídeos, interpretados pelos integrantes do Atelier, que remetiam para uma música sobre a liberdade, em diferentes línguas e de diferentes geografias e numa ampla diacronia.
REFERÊNCIA:
Salgueiro, Jorge, compositor. A Nave dos Diabos. Setúbal: Fórum Municipal Luísa, 10-11 Julho, 2021.