COMO CITAR:

Cambim, Francisco. «black midi, Cavalcade». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0064 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0064

Francisco Cambim

Numa entrevista recente, Geordie Greep, um dos membros da banda londrina black midi, faz um comentário a propósito da reacção ao primeiro álbum da banda, Schlagenheim, lançado em 2019, e deixa uma antecipação relativamente ao segundo, Cavalcade, lançado oficialmente a 28 de Maio de 2021. Greep revela na entrevista que, passado algum tempo, todos os membros da banda se aborreceram com o primeiro álbum. «So it was like: this time let’s make something that is actually good», nas palavras de Greep. Para aqueles de nós que, passados mais de dois anos, ainda não se tinham aborrecido com o álbum de estreia da banda, as palavras de Greep deixavam alguma curiosidade e expectativa. Se, por um lado, se imagina que os black midi sejam musicalmente capazes de fazer quase tudo o que lhes apetecer, por outro, surge uma pergunta, com potencial para se tornar frequente e que sugere a própria imprevisibilidade do percurso da banda: o que é que eles vão fazer a seguir? A resposta à pergunta tem, por agora, a forma de Cavalcade.

A dificuldade em catalogar a música dos black midi pode ser-nos sugerida pela própria multiplicidade de termos a que críticos (e não-críticos) recorrem para a descrever: math rock, noise rock, rock experimental ou rock progressivo são alguns dos candidatos mais populares. Geordie Greep (voz e guitarra), Morgan Simpson (bateria), Cameron Picton (voz e baixo) e Matt Kelvin (voz e guitarra) conheceram-se e começaram a tocar juntos na The BRIT School, uma escola de artes gratuita nos arredores de Londres. Em 2017, estrearam-se em palco no The Windmill, em Brixton, primeiro palco de muitas bandas boas da capital inglesa. No final de 2018, uma performance no festival Iceland Airwaves, em Reiquiavique, gravada e partilhada pela famosa estação de rádio de Seattle KEXP, aumentou significativamente a popularidade da banda, que lançou, finalmente, em 2019, o seu primeiro álbum, Schlagenheim, editado, tal como Cavalcade, pela Rough Trade Records. Se Schlagenheim surgiu daquele que começou por ser o que se poderia chamar o ponto de partida da banda — a improvisação —, Cavalcade surge não apenas de um maior trabalho de estúdio, em termos de complexidade composicional, de instrumentos utilizados ou de texturas, por exemplo, mas também de uma certa viragem da improvisação para uma construção e escrita de canções mais tradicional, embora muito diversificada.                

Cavalcade começa com o primeiro single lançado, «John L», e termina com a faixa «Ascending Forth», a canção mais longa do álbum, que por sua vez termina com uma conclusão orquestral em tom maior, bem diferente da balbúrdia sonora com que termina Schlagenheim. A música dos black midi mantém-se, no entanto, algo obscura e desagradável para um público mais vasto, embora se possa dizer que a banda tem já hoje um número de ouvintes e apreciadores bastante significativo e em ascensão. A multiplicidade de sons e de notas tocadas em simultâneo — parecendo-se em parte com o género musical na origem do nome da banda, que consiste em composições MIDI com milhares ou até milhões de notas, formando visualmente uma espécie de borrão preto na partitura —, as mudanças de tempo repentinas, uma sensação por vezes de desafinação ou a voz peculiar de Greep podem estar quer na origem do afastamento de um público mais vasto, quer na aproximação e grande admiração por parte de um número significativo de fãs, sugerindo quase uma descrição da banda como já uma banda de culto.

A capa do álbum, por sua vez, mais que a capa de Schlagenheim, pode sugerir também uma descrição simples da própria música: muita informação visual traduz-se em muita informação sonora. Mas apesar de toda as notas, timbres e ruídos, os black midi parecem ser exímios na capacidade de criar e libertar tensão e de manter um certo suspense musical, que contribui também para a comicidade ocasional e subtil das letras das canções, além do uso peculiar da voz, com ênfases particulares e mudanças de tom, que em Schlagenheim surgem, por exemplo, na canção «bmbmbm», com a repetição da descrição de uma mulher que, ipsis verbis, se move com um propósito magnífico.

Com o maior trabalho de estúdio e de composição, esta capacidade de manter suspense talvez se sinta mais particularmente em Cavalcade. Esta característica abre também a possibilidade de se sentir mais uma outra diferença, para a qual Greep já tinha apontado numa entrevista, ainda antes do lançamento de Cavalcade: uma diferença entre os black midi em estúdio e os black midi ao vivo. Se a diferença já se poderia sentir nos tempos de Schlagenheim, Cavalcade talvez venha acentuá-la. Aliás, ainda a propósito de Schlagenheim, Greep sugeriu na mesma entrevista que a ideia da banda no trabalho de estúdio é precisamente a de fazer coisas impossíveis de fazer ao vivo. No caso de Schlagenheim, as diferenças entre as versões de estúdio e as versões ao vivo surgem, por exemplo, no uso de instrumentos em estúdio que normalmente não aparecem nos concertos ao vivo, como é o caso do banjo, do acordeão ou de drum machines. Em Cavalcade, dada a maior complexidade do trabalho de estúdio, esta diferença pode tornar-se ainda mais notória. Compare-se, por exemplo, a versão de estúdio da sexta canção do álbum, «Dethroned», com a versão ao vivo que os black midi tocaram no concerto de apresentação do álbum para a estação de rádio KEXP, em Abril. Nesse concerto, por exemplo, o saxofone que introduz a canção na versão de estúdio não aparece (também por motivos relacionados com a transição entre canções numa performance ao vivo e certas escolhas associadas), embora os instrumentos de sopro estejam geralmente mais presentes durante toda a canção na versão ao vivo. Um outro instrumento mais presente, que também se pode observar no vídeo do mesmo concerto, é o piano, além do já anterior uso de vários sintetizadores. Neste caso, a contribuição é do teclista Seth Evans.

Uma outra novidade em Cavalcade é justamente o uso de mais instrumentos de sopro, sobretudo o saxofone. No concerto de apresentação podemos ver o saxofonista Kaidi Akinnibi e uma pequena secção de instrumentos de sopro, da qual faz parte o saxofonista Lewis Evans, dos também londrinos Black Country, New Road e que, a par de Akinnibi, gravou algumas partes para o novo álbum. A colaboração entre as duas bandas londrinas não é, aliás, uma novidade, tendo ambas, por exemplo, feito um concerto conjunto online no final de 2020, para o The Windmill, sob o nome black midi, New Road.

A maior presença dos instrumentos de sopro no novo álbum contribui para a aproximação, por vezes, de uma sonoridade que alguns críticos descrevem como jazzística. Mas, se a expectativa era de uma possível maior proximidade com o free jazz, dada a natureza improvisacional e experimental da música dos black midi desde a sua génese, a presença no álbum dos instrumentos de sopro tem, acompanhando os restantes instrumentos, um carácter mais melódico e tonal. A colaboração com estes músicos surge, também, como é revelado na entrevista que acompanha o concerto para a KEXP, de uma vontade por parte dos membros da banda de expandir possibilidades musicais e de experimentar novas sonoridades, com a inclusão de instrumentos a respeito dos quais as capacidades técnicas dos membros da banda são mais limitadas.

Além dos dois álbuns e de mais alguns singles, a banda lançou também em Junho de 2020, na sua página no Bandcamp, um álbum que combina os interesses literários da banda com os seus interesses musicais, nomeadamente a improvisação e as jam sessions. Assim surgiu The Black Midi Anthology Vol. 1: Tales of Suspense and Revenge, um álbum com leituras em tom narrativo de textos de autores como Hemingway, Guy de Maupassant ou Edgar Allan Poe, acompanhadas por jams da banda, além de outras gravações de instrumentais até então nunca publicados.

Tal como Cavalcade, é uma viragem artística até certo ponto inesperada, mas muito bem-vinda. Talvez venha esta a ser, afinal, simultaneamente uma resposta para a pergunta inicialmente sugerida e uma descrição do percurso futuro dos black midi.

REFERÊNCIA:

black midi. Cavalcade. Rough Trade Records, 2021. CD.