COMO CITAR:

Dias, James. «William Sieghart, The Poetry Pharmacy: Tried-and-true Prescriptions for the Heart, Mind and Soul». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0065 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0065

James Dias

Há algo de perverso em recomendar um poema a alguém. Recomendar algo a alguém parece inocente. Achamos que uma pessoa poderá gostar de algo de que nós também gostamos. Se gostámos de um poema, de um filme, ou de um restaurante, é natural que queiramos partilhá-lo com alguém de quem gostamos; queremos que essa pessoa também goste daquela coisa. O problema com isto é acharmos (e desejarmos) que a outra pessoa goste da coisa da mesma forma que nós gostamos, que repare no que nós reparámos. Há uma diferença entre apontar para algo e apontar para algo e explicar exactamente para onde estamos a apontar. Diferente ainda é achar que, por explicarmos exactamente para onde estamos a apontar, a pessoa consegue ver o que nós vemos.

The Poetry Pharmacy (2017) de William Sieghart é uma antologia de poesia. Os poemas escolhidos não têm muito em comum enquanto poemas (para além de serem todos em inglês). O que os liga é o seu (suposto) objectivo: são poemas prescritos. Segundo as intenções da antologia, para cada tipo de disposição geral há um ou dois poemas que têm a capacidade de nos fazerem sentir melhor sobre a mesma disposição e são, dessa forma, prescritos aos leitores.

A antologia está dividida em grupos de disposições e em cada grupo há um poema para uma «sub-disposição»: «Mental and Emotional Wellbeing» (e.g. «Anxiety»; «Glumness»; «Convalescence»); «Motivations» (e.g. «Stagnation»; «Loss of Zest for Life»); «Self-Image and Self-Acceptance» (e.g. «Guilt at Not Living in the Moment»; «Regret»); «The World and Other People» (e.g. «Social Overload»; «Unkindness»); «Love and Loss» (e.g. «Losing the Spark»; «Balanced Grief»). Por exemplo, se estivermos deprimidos, há um poema de Siegfried Sassoon que nos vai apaziguar. Se nos sentirmos estagnados, nada como um poema de Philip Larkin para nos alegrar. Ou, se tivermos dificuldades em aceitar que os nossos pais também envelhecem, basta chamar o Dr. Heaney.

Depois da introdução, num breve texto intitulado «The History of the Poetry Pharmacy», Sieghart começa por dizer «Sempre acreditei na capacidade da poesia de explicar as pessoas a elas próprias.»[i] Em vez de pessoas se verem em poemas (deixando de lado os problemas que dizer isto levanta), Sieghart sugere que é a poesia que explica as pessoas a elas próprias.

Na introdução, Sieghart conta um incidente que ocorreu quando era mais jovem: assistiu de perto a um homem ser atropelado e, pouco tempo depois, levado por uma ambulância para o hospital:

À medida que fui retomando o fôlego, lembrei-me de um poema de Philip Larkin que tinha aprendido de cor. Chama-se «Ambulances» e é sobre o drama e angústia que atravessamos quando confrontados com situações deste tipo (…) o que [aquele poema] fez por mim naquele momento aponta para algo muito mais universal. (…) Encontrar o poema certo naquele momento crucial, um que é capaz de expressar a nossa situação com uma elegância consideravelmente maior do que nós o poderíamos fazer, é descobrir um sentimento de cumplicidade forte, e aquela percepção valiosa: Não sou o único que se sente assim.[ii]

 

Sieghart crê que a descoberta de poesia que nos ajuda é um fenómeno universal. Utiliza palavras como «nós» e «nossa» e afirma que a poesia tem a capacidade de criar cumplicidade entre pessoas. Isto tudo parece ser razoável até à última frase da introdução: «Por muito passageiras ou duradouras que [reacções humanas a emoção] possam ser, a minha esperança é que encontre um poema neste livro que se adapte às suas necessidades.»[iii] Ora, Sieghart afirma, por um lado, que a poesia e as ligações que fazemos com ela são universais. Espera que o menu de poesia que apresenta tenha algo que vá «fit the need» do leitor da antologia. Mas a antologia é, mais que à la carte, deixar que o chef escolha como nos vai «cair» o poema. A interpretação que Sieghart proporciona não é dos poemas, mas dos efeitos «universais» que aqueles poemas, escolhidos por ele, vão ter no leitor. 

Noutro curto texto que precede a antologia, «How to Read a Poem», Sieghart apresenta conselhos sobre ler poesia; diz: «Leia os poemas deste livro como achar melhor.» O antologista dá-nos liberdade para lermos os poemas como bem entendermos. Mas diz também que «não obstante a forma como este livro funcione para si, lembre-se de que nenhum poema merece apenas uma leitura.»[iv] Há, a meu ver, poemas que só merecem uma leitura, bem como há filmes que só merecem uma visualização e restaurantes que só merecem uma visita.

Existe, ao longo desta antologia, uma contradição nas intenções que apoiam a mesma: é um exercício de liberdade de escolha, de exaltação das virtudes práticas da poesia, mas só dentro dos parâmetros estipulados por Sieghart. Não existem antologias que sejam «livres»; não seriam antologias.

O que esta antologia propõe é uma relação directa entre um estado de espírito específico e um poema específico. A «interpretação» de Sieghart dos poemas não basta como virtude em si. Parece necessário aplicar estas interpretações aos males da humanidade. A poesia tem de ter um propósito exterior a ela, senão, para quê lê-la? As pessoas que compram este livro não o fazem para ler poesia, fazem-no para resolver (ou sentirem-se melhor) sobre os seus problemas pessoais. É costume chamar a este tipo de poesia «poesia de auto-ajuda».

Há agora uma distinção importante a fazer. Existem, por um lado, poemas de auto-ajuda que se dirigem a um público que os leia e se sinta, de alguma forma, reconhecido e compreendido. Um exemplo disto são os poemas da poetisa canadiana Rupi Kaur; são poemas que poderiam ser classificados como «poemas de auto-ajuda». O que é interessante e estranho na antologia de Sieghart não é bem a intenção do antologista. O que é estranho é a reunião e prescrição de poemas já escritos (por outras pessoas) e pescados para representarem um tipo de disposição (ou ajuda para esse tipo de disposição) que Sieghart crê existir neles. Achar que a poesia tem um efeito fixo (isto é o mesmo que dizer uma interpretação fixa) é, a meu ver, uma ideia peculiar. Na auto-ajuda, existe uma diferença entre puxarmos os nossos cabelos para cima quando presos num pântano e uma pessoa observar-nos e indicar qual o melhor método para o fazermos.

Não há problema em achar que poemas podem ajudar certas pessoas com certos problemas. Mas a crença que move a antologia de Sieghart é a de que a poesia tem consequências práticas na vida das pessoas. Mais (ou pior) que isto, é a crença de que certos poemas (e não outros) ajudam com certas disposições (e não outras).

Poder-se-ia imaginar um exercício dantiano[v], em que se substituísse os poemas da antologia de Sieghart por outros. A diferença (ou falta dela) entre os poemas que Sieghart escolheu e os que nós poderíamos escolher para cada disposição seria, creio, bastante elucidativa sobre a natureza da antologia.

Há, para além desta antologia, um segundo volume intitulado The Poetry Pharmacy Returns: More Prescriptions for Courage, Healing and Hope (2019). Ainda outro aspecto bizarro ligado a esta antologia é a existência de um espaço físico no condado de Shropshire, na Inglaterra, onde é possível marcar e ter uma consulta de poesia prescrita. A mistura de algo clínico (na sala de consulta existe ainda uma chaise longue onde os «pacientes» se deitam, não para falar dos seus problemas, mas para ouvir poesia)[vi] com algo supostamente humano é um exemplo das intenções de Sieghart de tornar algo que crê ser universal (e que pode ser) em algo prescrito de certa maneira, apenas por certas pessoas e para certas pessoas.

Devemos ter cautela com o que recomendamos, não tanto por a recomendação ser perigosa (neste caso, não o é), mas porque nos pode induzir no erro de achar que o que serve os nossos propósitos servirá igualmente os dos outros. Caveats como os de O’Neill nunca serão suficientes:

leitor que me pede história
que já traz engatilhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada…

(O’Neill, 140)[vii]

 

[i] «I’ve always believed in the power of poetry to explain people to themselves.» William Sieghart, The Poetry Pharmacy. Particular Books-Penguin Random House, 2017, p. xviii. (Todas as traduções das citações foram feitas por mim para esta recensão).

[ii] «As I slowly got my breath back, I remembered a poem I’d learned of Philip Larkin’s. It’s called     ‘Ambulances’, and it’s about the drama and anguish we go through when situations like this arise (…) what [that poem] did for me in that moment points to something much more universal. (…) To find the right poem at that crucial moment, one capable of expressing our situation with considerably more elegance than we can ourselves, is to discover a powerful sense of complicity, and that precious realization: I’m not the only one who feels like thisibid. p. xv-xvi.

[iii] «However momentary or enduring [human responses to emotion] might be, my hope is that you will find a poem within this book that fits your need.» ibid. p. xvii.

[iv] «(...) however this book works for you, remember that no poem deserves only a single visit»; «Read the poems in this book however you like.» ibid. p.xx-xxi.

[v] Referente a Danto, não Dante.

[vi] https://poetrypharmacy.co.uk/the-consulting-room/.

[vii] Alexandre O’Neill, «Periclitam os grilos», Poesias Completas. Assírio & Alvim, 2000, p. 140.

REFERÊNCIA:

Sieghart, William. The Poetry Pharmacy: Tried-and-True Prescriptions for the Heart, Mind and Soul. Londres: Particular Books-Penguin Random House 70, 2017.