COMO CITAR:
Reis, Lauro. «Kamo No Chômei, Hojôki: Reflexões da Minha Cabana». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0066 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0066
Lauro Reis
Hojôki é o título de uma micronarrativa autobiográfica sobre um poeta japonês e a sua cabana. É um texto que discorre sobre os motivos por que Kamo No Chômei, o autor, decidiu afastar-se da vida urbana e construir, já na segunda metade da sua vida, uma cabana minúscula no meio de uma montanha, abdicando de todo o conforto material da vida na capital.
Dado que a introdução presente nesta versão, incumbência do poeta e tradutor Jorge Sousa Braga, consiste em apenas duas páginas, intui-se que talvez o texto em questão não ganhe com a tradicional aprofundada contextualização cultural, histórica e geográfica para ser minimamente desfrutado, mesmo tratando-se de um texto japonês medieval originário do século XII. Embora não provenha directamente do original, a tradução que Jorge Sousa Braga se encarrega advém de versões espanholas, inglesas e francesas, atestando sobretudo a intenção de aproximar o leitor português a textos japoneses, acima de qualquer esforço sisifiano de ilusória fidelidade, literalidade e precisão. Não é coincidência que a maioria da literatura japonesa traduzida provenha de fontes terceiras: Genji Monogatari, obra-prima japonesa do século XI, a qual Yeats intitulou como um dos grandes clássicos mundiais embora, curiosamente, não goze sequer de tal estatuto unânime em terras nipónicas, é, hoje em dia, traduzida para línguas ocidentais a partir de uma versão actualizada e simplificada de japonês moderno. Isto tudo para dizer que, dada a aparente simplicidade do tema e ascetismo do poeta tratado neste pequeno texto, a escolha (ou única opção) de criar esta versão a partir de outras línguas que não a original parece ser propositada, de modo a contribuir para a aproximação a um tipo de literatura tão complexo linguisticamente como o japonês medieval.
Apesar da complexa estrutura linguística do original, o que sobressai nesta versão é a expectável claridade e objectividade no tema tratado, que não permite muitos desvios e ambiguidades temáticas e de conteúdo. Estas qualidades são consequência do passado de Kamo no Chômei enquanto poeta, influenciado pela tradição poética da corte e da tradição monástica (xintoísta), que se pauta, no geral, pela economia de expressão e extensa capacidade alusiva inerente à própria língua japonesa. Dado que uma tradução, mesmo que a partir do original, e sobretudo do japonês, presume a perda de uma miríade de alusões e ambiguidades intuídas pela justaposição e colocação de certos caracteres, o que nos sobra para qualificar o texto são adjectivos encontrados na maioria de recensões, análises ou críticas a praticamente qualquer escritor japonês, tais como «despojado», «depurado», «claro», «objectivo», «focado», «minimal», pois aquilo que consegue escapulir-se para outra linguagem que não partilha da mesma estrutura linguística são, em larga maioria, os seus significados imediatos. No caso deste texto, os significados tacitamente acordados entre o tradutor desta versão e as versões consultadas nas outras línguas. Desta forma confunde-se atributos como «depuração», «despojamento» e até «expectável claridade» e «objectividade no tema tratado» com limitações ou imperfeições da actividade de tradução (sendo a tradução da poesia japonesa clássica e medieval o exemplo mais canónico de tal limitação). O risco seria compor notas de rodapé e observações mais extensas que a própria obra que se quer traduzir, o que, se não for com intuito académico ou histórico, prejudicaria com certeza a sua leitura. Tal nunca foi uma possibilidade neste caso, dado que a última frase de Jorge Sousa Braga na sua Introdução confirma a consciencialização de tal problemática: «Reduzi as notas explicativas ao mínimo, para não perturbar a leitura». O que sobra é esta versão da colecção Gato Maltês da Assírio e Alvim, acompanhada por desenhos de Avelino Sá.
Recordando os eventos e decisões mais importantes da sua vida, Kamo no Chômei concentra-se, enquanto monge budista recluso, na sua anterior vida de luxo, nas catástrofes naturais que presenciou e nos pecados (em contexto budista) que os seus contemporâneos praticavam, como razões pelas quais decidiu abandonar a cidade, os seus bens e estilo de vida associados, e construir uma sucessão de cabanas ao longo da sua vida. Estas cabanas, cada uma mais pequena que a anterior, constituem uma aproximação simbólica para o fim da sua vida e da desnecessidade de ter mais coisas, dado o sítio para onde se vai no final. Avesso à ideia de posses materiais, ligações afectuosas, e ambições mundanas, Chômei decide dedicar a sua vida na procura estóica entre os prazeres da contemplação da natureza transitória e o ascetismo da vida eremítica e reclusa. O tom do texto é de fatalismo e derrota em relação ao propósito final da existência (sobretudo da sua), de pessimismo em relação à sociedade da qual se exilou, e de incompatibilidade entre os poucos prazeres que lhe restam e o sofrimento inevitável omnipresente e que o relembra da fragilidade humana. Isto porque o causador, tanto do prazer como do sofrimento, advém de uma fonte suprema imanente: a natureza, enquanto criadora dos fenómenos mais belos e sublimes e dos maiores desastres e sofrimentos. A incompatibilidade entre a natureza enquanto fenómeno sereno, poético e contemplativo e a natureza enquanto fenómeno indiferente e causa de dor e desespero é uma batalha que Chômei trava na sua psique e que se manifesta nesta sua pequena autobiografia.
Por detrás desta aparente contradição entre visões de natureza, repousa uma predisposição mental que se refugia na bifurcação da realidade social em dois extremos incompatíveis como matriz justificadora da sua inquietação e turbulência interior:
Se alguém possui muitos bens, será respeitado, enquanto se for pobre só o esperam preocupações. Se dependes de alguém acabas por pertencer-lhe. Se tens compaixão pelos outros serás escravo dessa compaixão. Se te adaptas ao mundo vais sofrer muito. Se não te adaptares enlouqueces. Onde quer que alguém vá e faça o que fizer dificilmente encontrará descanso para a alma e para o corpo. (p.50)
O argumento circular que fica subentendido é o da inevitabilidade do sofrimento e desassossego humano, mas também a inevitabilidade de o humano buscar formas de tranquilidade e serenidade humana que, no caso de Chômei, atinge, de um jeito anti climático, um estado de resignação mundana. Algures entre estes dois extremos repousa um estado de moderação, de desapego material e mental em relação às coisas e aos pensamentos que Chômei busca, influenciado pelas escrituras budistas da época. A frustração em Chômei resulta de ver sucessivos comportamentos pecaminosos por parte dos seus conterrâneos, bem como de ver a sua busca por uma pequena medida de paz malograda pela sua incapacidade de se desapegar aos prazeres que, embora mínimos em comparação com os da urbe, permanecem, a seu ver, um entrave à sua salvação existencial. Depois de resignar-se à inevitabilidade do sofrimento, apesar de tanto feito e tanto abdicado, a única coisa que lhe resta é aceitar a sua não salvação e refugiar-se no prazer retirado das coisas pequenas e inócuas: um passeio a pé com uma criança pela montanha, a descoberta de paisagens ocultas, a serenidade de tocar alaúde sozinho, entre outras descrições deleitosas de alguém que claramente dispensou de macro-narrativas e explicações do universo, que tanto dissabor lhe causam, para se focar nos prazeres particulares de uma vida solitária.
Chômei, pela sua crença budista, censura aqueles que, anos depois de terem ultrapassado catástrofes como terramotos, incêndios, cheias, fomes e epidemias, se esquecem daquilo que sofreram e rapidamente voltam para os seus comportamentos pecaminosos e sujeitam-se a atrair mais sofrimento para as suas existências. Adicionalmente, censura também a inutilidade e impotência das atitudes que toma, e como, em última instância, não lhe garantirão salvação ou maior paz de espírito. O conflito interior e existencial, sem aparente solução para Chômei, percorre esta pequena obra e serve aqui como recordação de dois comportamentos frequentes da condição humana: de que quando acontecem coisas más, há pessoas que mudam temporariamente a sua perspectiva de vida, mas que rapidamente se esquecem de tais acontecimentos e regressam ao estado prévio; e que há pessoas nas quais coisas más agem como acontecimentos de ruptura, e despoletam uma urgência existencial tal que as leva a mudar drasticamente de modo de vida. Chômei faz parte do segundo tipo de pessoas, sendo que, aparentemente, apesar de ter tomado uma decisão de ruptura, continua com inúmeras dúvidas e ainda com mais lamentações. É sempre bom recordar que o modo como se decide olhar para o que nos rodeia para se fazer sentido de si mesmo não depende unicamente da posição geográfica ou temporal, de orientações ideológicas ou religiosas, mas sobretudo de contingências da vida e do próprio temperamento da pessoa.
REFERÊNCIA:
Chômei, Kamo No. Hojôki: Reflexões da minha cabana. Lisboa: Assírio & Alvim, 2021.