COMO CITAR:

Monteiro, Teresa Líbano. «Eugénio Lisboa, José Régio: A Obra e o Homem». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0067 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0067

Teresa Líbano Monteiro

Eugénio Lisboa foi não só amigo pessoal do escritor José Régio como é, também, o seu maior e mais incansável crítico. José Régio – a obra e o homem constitui o ensaio mais longo que dedicou ao poeta de Vila do Conde e nele pretende, como explica na «Nota à 3.ª edição», «fazer a “soldadura” sobre o Homem e a Obra, sem fundamentalismos biografistas mas também sem preconceitos ferozmente antibiografistas» (p. 9). O ensaio foi publicado pela primeira vez em 1976, tendo sido de novo editado em 1986 e, mais de trinta anos depois, está novamente disponível nas livrarias graças à editora Opera Omnia. É necessário, aliás, deixar aqui uma nota de apreço a esta editora, que nestes últimos anos tem vindo a republicar volumes da obra de José Régio (e.g. Histórias de Mulheres, Biografia, Páginas de doutrina e crítica da Presença, a antologia de poemas Nunca vou por aí) e, neste caso, bibliografia crítica sobre o autor. A reedição destes livros – e, o que não é despiciendo, com um design simples e bonito – será um contributo para uma maior divulgação e leitura de José Régio pelo público geral português, algo de que beneficiarão, certamente, tanto o nome do escritor como os leitores.

O livro de Eugénio Lisboa divide-se, essencialmente, em três partes: a primeira compõe-se de dois ensaios, um sobre a biografia de Régio – «o homem» –, outro sobre os livros que escreveu – «a obra»; a segunda consiste no anexo «José Régio e a Crítica» e nela se incluem excertos muito relevantes de diversos textos críticos sobre a obra de Régio; a terceira parte apresenta a bibliografia crítica da segunda edição do livro (como explica Lisboa na supramencionada «Nota à 3.ª edição»). A parte propriamente ensaística do livro é, portanto, a primeira, pelo que será sobre essa que aqui me debruçarei.

A ideia central de Eugénio Lisboa relativamente a José Régio – ideia essa que foi posteriormente desenvolvida noutro ensaio, José Régio ou a Confissão Relutante (Rolim, 1988) – é de que toda a sua obra constitui uma longa, penosa e, por vezes, ambígua (porque relutante) tentativa de confissão. Seja quando fala nos poemas – quase invariavelmente escritos na primeira pessoa do singular, o que provocou numerosas (e frequentemente injustas) críticas ao chamado «umbicalismo» regiano – seja por meio das personagens dos contos, romances e peças de teatro, o escritor exprime constantemente um desejo de confissão. A «[c]onfissão» de Régio, afirma Eugénio Lisboa, seria «nascida (…) de uma violenta necessidade moral: descontentes consigo, com os seus próprios defeitos e as suas misérias e, sobretudo, com a ocultação delas aos outros, todos (…) [os] heróis [regianos], representantes acreditados da angústia do próprio poeta, sentem uma necessidade insaciável de verdade: nem que uma só vez na vida» (p. 135). Não obstante, como explica o crítico, Régio nunca é capaz de se confessar: toda a obra vive mais da vontade de confissão do que da confissão como acto concretizado. Esta tese de Eugénio Lisboa revela-se muito fecunda para explorar a obra de Régio. Repare-se que o último livro que o poeta escreveu e no qual empenhou os seus últimos esforços foi, justamente, a Confissão dum Homem Religioso. Porém, nesta obra de registo memorialístico, quem fala não é tanto o Régio autor, o que se encontra nos poemas e nas personagens que criou, quanto o Régio biográfico, pelo que as fundas inquietações presentes na obra de ficção estão aqui muito mitigadas. Ou seja: mesmo neste último trabalho, a que o autor quis dar o título de Confissão, esta não tem verdadeiramente lugar. Parece que, como nota Lisboa, «toda a sua longa e quase monocórdica confissão não é até certo ponto senão um processo de ladear a verdade» (p. 151). Nas obras de Régio fervilha esse desejo de se confessar, mas existe, simultaneamente, uma autovigilância cerrada que impede o escritor de dizer o que verdadeiramente o atormenta, de despejar o que tem dentro de si.

Directamente ligadas a este desejo de confissão estão, repara o crítico, a sinceridade e a ironia, ambas tão caras a Régio: se a primeira significa uma vontade de pureza, de depuração, a segunda refreia a primeira, pois dá a entender que a pureza idealizada é impossível de atingir. A ironia, em Régio, é trágica: designa, como explica Jaime Franco n’O Jogo da Cabra Cega (discurso citado no livro em estudo, p. 147), uma «ausência de solução». Ao permitir exprimir facetas contraditórias da realidade, a ironia pode ser vista como uma aproximação da verdade. Contudo, por abarcar tal pluralidade de pontos de vista, este artifício retórico e filosófico acaba por não designar nada em concreto, abortando assim a desejada expressão sincera. Tudo isto, que é complicado, coabita, em Régio, com um desejo de simplicidade, de ser semelhante ao homem banal, talvez algo como o «poder ser tu, sendo eu!» pessoano.

Eugénio Lisboa é inteligente e sensível ao explicar a obra de Régio por meio da vontade de confissão. Mostra igualmente independência crítica pois, quando o livro José Régio – a obra e o homem foi primeiramente publicado, nos anos setenta, não estava propriamente na moda estudar ou gostar de Régio. Agindo igualmente em contracorrente, o crítico regiano faz um elogio d’A Velha Casa, romance em cinco volumes tido por Régio como a sua magnum opus, mas amplamente desprezado pela crítica. Este é, comenta Lisboa, um romance tardio e calmo, mais próximo das obras de envergadura de Tolstói, por oposição à narrativa frenética e mirabolante d’O Jogo da Cabra Cega, primeiro romance de Régio, muito influenciado pelas leituras de Dostoievski, como aliás notou o autor. A Velha Casa é descrita como um «romance que despreza o género definido, alternando entre o urbano e o rural, entre o didáctico, o psicológico e o metafísico, os cinco volumes publicados representam uma tentativa ambiciosa de nos proporcionar uma soma de experiências, uma espécie de testamento espiritual ou de livro de bordo, de guia de referência para todos os seus outros livros de todos os géneros» (p. 125). Ainda hoje, tornou-se quase um lugar-comum na crítica regiana o elogio d’O Jogo e o silêncio, quanto a mim injusto, relativamente a A Velha Casa. A voz de Lisboa vem, assim, destoar da quase unanimidade crítica em desfavor do último romance de Régio.

Tendo, no geral, a concordar com as opiniões de Eugénio Lisboa em relação à obra de José Régio e, evidentemente, a admirar a sua independência crítica num contexto genericamente anti-regiano, bem como a extrema erudição que mostra nas constantes citações de variados autores (incluindo escritores, críticos, filósofos e psiquiatras), que usa para corroborar, com propriedade, juízos seus e de Régio, mas também, indiscutivelmente, para enriquecer o ensaio com outras vozes dignas de serem lidas. Todavia, a defesa inteligente e erudita que Lisboa faz do escritor vilacondense tem também os seus pontos mais frágeis, sendo que apontarei aqui os dois que me parecem mais flagrantes.

O primeiro destes pontos mais frágeis relaciona-se com o crítico defender Régio onde o autor não precisa de ser defendido. Por exemplo, Lisboa justifica o uso que Régio faz das formas classicizantes nas composições poéticas «como escudo para as suas audácias e abismos» (p. 54). E eu pergunto: para quê justificar o recurso de Régio à rima e métrica tradicionais, como se fosse necessário encontrar uma desculpa para Régio delas se servir? É evidente que Lisboa pretende defender o poeta dos «críticos, que suspeitarão nele a existência mal disfarçada de um contra-revolucionário» (id.), sendo este último epíteto uma clara referência ao famoso ensaio «Presença ou a contra-revolução do Modernismo», de Eduardo Lourenço. Porém, a argumentação de Eugénio Lisboa não parece fazer muito sentido – ou ser sequer necessária. A conciliação de uma forma clássica com um conteúdo moderno e dramático parece-me ser tão-somente manifestação da originalidade de Régio, algo que o autor tanto prezava e que não só teorizou nas páginas da Presença como praticou na ficção que escrevia. Julgo que não tem de haver uma correlação directa entre a recusa que Régio faz do verso livre e a rejeição da modernidade (como afirmou Lourenço) ou entre essa recusa e a contenção «[d]as suas audácias e abismos» (como defende Lisboa). Muito pelo contrário, o uso das formas poéticas tradicionais num período em que tal uso seria considerado quase obsoleto parece ser antes uma forma ostensiva de o poeta afirmar a sua personalidade literária, fazendo jus à «arte viva» por que se bateu deste a escrita do célebre manifesto presencista «Literatura Viva».

Outro ponto onde gostaria de tocar tem directamente a ver com a conclusão com que Eugénio Lisboa fecha o ensaio. Afirma o crítico: «[a] obra de Régio não nos deixa uma esperança. Não é uma obra optimista. Nada resolve» (p. 178). É certo, se pegarmos no argumento central de Lisboa, que Régio nunca nos entrega a sua confissão – nem mesmo na derradeira obra, Confissão. Ficamos sem perceber o que é que designam exactamente as coisas sofridas pelo poeta na «Toada de Portalegre» – «[c]oisas que terei pudor / De contar seja a quem for». E, assim sendo, a obra é, de facto, desanimadora, pessimista e trágica. Porém, há um orgulho na obra de Régio – reconhecido também por Lisboa (e.g. pp. 139 e 152) –, um pendor satânico (no sentido de querer tomar o lugar de Deus) pleno de pujança e força e que é necessário valorizar, pois é o acento, se não mesmo a raiz de muito do que escreveu. E é isso o que revela em Régio não o derrotado nem o pessimista, mas, nas palavras de Agustina Bessa-Luís, que o conheceu e compreendeu como poucos, «o homem vitorioso»[1].

[1] Agustina Bessa-Luís, «Passagem sem ornamento», Jornal de Letras, 17-23 Abril 1984, p. 27.

REFERÊNCIA:

Lisboa, Eugénio. José Régio: A Obra e o Homem. Guimarães: Opera Omnia, 2019.