COMO CITAR:
Veiga, Lourenço. «Anatole Litvak, Sorry, Wrong Number». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0068 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0068
Lourenço Veiga
Sorry, Wrong Number é um filme baseado numa peça para rádio do mesmo nome. Ainda que este registo cinematográfico seja, num certo sentido, a representação visual da performance radiofónica (com vários elementos acrescentados que aumentam a complexidade da obra, como veremos), o elemento principal de ambos não deixa de ser o som, mais especificamente (e exclusivamente) o som que se ouve, em toda a sua limitação e promessa, numa conversa à distância. Não quero com isto dizer que o som no filme é tão importante como o som na peça de rádio; no filme, é a nível conceptual que ele nos interessa. Encaminha-nos para algo que não faz parte apenas dos «dados dos sentidos», pois estamos a falar também de memórias e expectativas, ou de ilusões e medos.
O cinema já se tinha emancipado da mudez havia vinte anos quando Sorry, Wrong Number saiu. Ainda assim, foi precisamente na década de 1920 que foram primeiro manifestadas, através do cinema expressionista, as metáforas visuais patentes por todo este filme, das quais as sombras, os espelhos e relógios são exemplo (para não falar, claro está, das expressões faciais). O acrescento original é, no entanto, a representação do telefone: a ferramenta que tanto nos passou a ligar como nunca antes na história da Humanidade, mas que também nos afasta dos outros e deixa sozinhos de formas que antes seriam inconcebíveis. Este filme leva o segundo ponto ao seu extremo, acabando com a morte da protagonista, impotente face às forças da modernidade.
O filme começa com Leona, a protagonista, tentando ligar para o seu marido, Henry, sem efeito. Entretanto, intercepta um telefonema que não se destinava à sua morada. São dois homens. Ela ouve-os; eles não a ouvem. Combinam um assassinato de uma mulher na avenida onde Leona mora. Terá de ser exactamente à hora em que o comboio passa, de maneira a não se ouvir nada a não ser o passar do mesmo. Leona quer fazer qualquer coisa para impedir esse terrível acontecimento. Liga para as operadoras de telefonia. Estas respondem com indiferença e é criado um contraponto com a sua exasperação. «You just sit there and let people die!»[1], queixa-se Leona.
Não sabemos ao certo a ligação entre a ausência anormalmente demorada de Henry e este telefonema misterioso, mas começamos a conhecer detalhes da vida de Leona, num caso clássico em que apresentar uma história através de imagens, com todos os seus ornamentos, conta mais do que a obtenção de respostas rápidas.
As razões psicológicas para o comportamento de Leona vão-se tornando cada vez mais claras, como o facto de ter sido mimada pelo seu pai, o que explica a sua reacção exagerada à intercepção do telefonema. Contudo, a contiguidade entre elementos diferentes do décor mostra-nos algo simultaneamente mais revelador e de maior valor estético. Por exemplo, a primeira vez que vemos o seu pai, que liga de Chicago, a câmara parte de uma belíssima filmagem que recua através do reflexo de Leona no apartamento (sem que possamos adivinhar que é deveras um reflexo) para a superfície maior que o contém, a parede. Essa parede mostra o quadro do pai de Leona por cima do seu reflexo no espelho. Isto sugere que a visão de si mesma é dominada pelo pai, estando este realmente presente ou não. Na divisória enorme de onde o mesmo fala, vemos uma série de bustos de animais embalsamados ao lado das fotografias de Leona – e ele chama-lhe «pet», «bicho de estimação». Esta sequência mostra tudo o que precisamos de saber sobre a propensão de Leona para a dependência de outros. Aliás, também é ao olhar para um pequeno espelho que Leona tem saudades de Henry, lamentando a sua ausência. Isto sugere outro tipo de dependência identitária, um pouco mais subtil, que veremos um pouco mais à frente.
Há seis recordações no filme, que sugerem a alucinante espiral narrativa com que nos deparamos neste filme. Esta espiral é também a mente de Leona ao longo do tempo «real» em que fala ao telefone[2]. As recordações estão todas emaranhadas entre elas e contêm auto-referências quase ao ponto de mise-en-abyme: a primeira recordação é da secretária de Leona, na qual surge Henry a receber Sally, a sua anterior namorada, de quem Leona se livrou para casar com ele. Na segunda recordação, de Leona, temos uma longa digressão pela sua psique: percebemos que caçou Henry, aproveitando o estatuto social superior para o convencer a casar com ela. Entretanto há uma elipse temporal e Leona e Henry falam num carro. Henry conta como nunca conhecera a sua mãe; apenas a vira no caixão. É uma espécie de mensagem fantasmagórica e premonitória dentro da própria memória de Leona, que morrerá sem que Henry chegue a conhecer aspectos fundamentais da sua condição (ou pelo menos não chegam a estar juntos depois dessa revelação). Na quarta recordação, do médico de Leona, há um relato de uma consulta com Henry para falar da condição da protagonista; Henry tem aqui também uma lembrança dentro da lembrança do médico: aí Leona tem um ataque cardíaco, devido à vontade do seu marido em deixar de trabalhar para o sogro, trabalho em que Henry se sente infeliz. Antes disso, Leona tinha-se posto em frente ao reflexo dele, obstruindo a visão que Henry possa ter de si mesmo. Voltando à memória do médico, Henry não aguenta com o diagnóstico que o médico faz sobre Leona, segundo o qual não há nada de fisicamente errado com ela; o seu problema, diz o médico, é apenas mental. Henry rebenta com o telefone local, a ponte de ligação de quase tudo o que se passa no filme.
A modernidade (ou os hábitos ligados à modernidade) já está debaixo da pele de muitos personagens que vão surgindo no filme[3], mas para que entre na de Leona, a modernidade (representada pelo som do comboio) teve de a matar. O meu argumento é de que Leona se mata inconscientemente, depois de ouvir tudo o que tinha que ouvir para juntar as peças e concluir, como qualquer pessoa paranóica, que o quadro geral é o do seu próprio assassinato, o que está (na sua cabeça) inevitavelmente associado à situação de Henry.
A caminho do final do filme, o químico da empresa, Evans, relata a Leona esse cenário terrível. Henry decidiu começar a roubar dinheiro à própria empresa em conjunto com um personagem misterioso, Morano. Mais à frente decide enganar Morano e ficar com tudo para ele. É apanhado na mesma cabana do cenário onírico da recordação (a terceira do filme) que Sally relata, encontrando-se num dos piores infernos imagináveis: é obrigado a continuar a roubar e dar tudo aos ladrões, sob pena de ser denunciado; por isso está na terrível condição de ter que roubar para não ser preso. Pior ainda, Morano quer que Henry lhe pague uma quantia bem mais alta do que pode, sabendo, no entanto, de uma opção «irrefutável»: Leona está doente e o médico, «who knows his business»[4], não lhe deu mais de noventa dias de existência, o que permite a Henry pagar a Morano num tempo próximo, já que o primeiro ficaria com o seguro de vida da sua mulher.
Quando Leona liga para o número indicado pelo químico, número do qual espera que o seu marido atenda (porque Evans quer que Leona avise Henry que, entre vários «factos», Morano fora preso), depara-se com uma terrível surpresa: é a morgue da cidade. Isto tudo vem da mente de Leona ao ouvir a sexta recordação, relatada pelo químico. Estamos no plano em que não conseguimos distinguir claramente imaginação de realidade. O que sabemos que acontece realmente é Henry ter de ficar mais tempo fora para negócios (ele liga-lhe passado pouco tempo) e isso fora o suficiente, acrescentado às circunstâncias descritas acima, para Leona entrar numa deriva mental auto-destrutiva – ou, pelo contrário, deixando-a numa inércia tal que não consegue fazer nada no momento em que se apercebe de que alguém sobe as escadas e a vai assassinar. A dependência aniquila-lhe o instinto de sobrevivência.
A sombra que surge no final, o suposto assassino da conversa interceptada, é muito parecida com a figura do médico (repare-se no nariz). Já antes Leona tinha gritado esgotada ao telefone («liars!», «mentirosos!»), depois de o médico, com um tom muito frio, sugerir que ela duplicasse a dose de remédios. Isto não nos deixa dúvidas de que, sendo que as inimigas principais de Leona ao longo do filme são as operadoras da central de telefones (operadoras que parecem uns demónios impassíveis, membros de um tribunal intransponível), o médico seja, aos olhos dela, o juiz final da sua vida.
O filme é fundamentalmente um teatro cartesiano de Leona, que não sai do seu apartamento e vai criando dramas de todo o tipo a partir do que ouve – o que neste filme é equivalente àquilo de que se lembra e ao que espera. Mas voltando ao carácter sonoro, ou aural, do filme: tudo o que vem directamente à cabeça da protagonista vem dos seus ouvidos. Contudo, nós temos o privilégio, enquanto espectadores, de ver o caminho da câmara. Na peça de rádio existe uma identificação a nível perceptivo: ela só ouve, tal como nós. Aqui temos imagens, mesmo que estas necessitem de uma análise especialmente atenta para entendermos o que está em jogo: um teatro da imaginação em forma de pião à roda, ou mesmo de um mecanismo de relógio; a inconsciência de uma vítima que pode representar qualquer um de nós, ávidos consumidores de comunicação à distância.
[1] «Vocês estão para aí sentadas e deixam as pessoas morrer!»
[2] Note-se que as escadas da casa têm essa forma de espiral, bem como a dança surreal na festa de onde o médico telefona.
[3] Repare-se, por exemplo, na sequência em que Sally tem de desligar o telefone e sair do bar. Não há mesmo hipótese, segundo o dono, de ela ficar nem mais um segundo depois da hora de fecho, mesmo que o seu alarmismo seja evidente.
[4] «Que conhece a sua situação».
REFERÊNCIAS:
Litvak, Anatole, realizador. Wrong Number. Paramount Pictures, 1944. 1 hr, 29 min.