COMO CITAR:
Reis, Lauro. «Masaoka Shiki, Aves Dormindo Enquanto Flutuam». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0070 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0070
Lauro Reis
Masaoka Shiki faz parte do quarteto de mestres de haiku japoneses, juntamente com Matsuo Bashô, Yosa Buson e Kobayashi Issa. Desse grupo, Shiki é o mais contemporâneo, o que viveu menos tempo e o que compôs mais poesia. É também o mais iconoclasta dos quatro, especialmente pela sua interpretação considerada blasfema da obra do seu precursor Matsuo Bashô. Numa época em que este havia sido elevado a estatuto divino pelo Estado, Shiki argumentou que era Buson, e não Bashô, o que detinha maior qualidade poética. Todavia, uma das contingências interessantes da vida de Shiki é o facto de ser o único membro do quarteto que viveu na época de abertura forçada do Japão ao ocidente. Após um período de cerca de duzentos e cinquenta anos de reclusão nacional (Sakoku 鎖国 1603-1868), os artistas japoneses entravam em contacto, pela primeira vez em larga escala e em variedade, com a arte e pensamento ocidental. No caso de Shiki, foram as teorias do crítico de arte, pintor e filósofo John Ruskin que, de acordo com a introdução de Joaquim M. Palma (doravante JMP), mais impacto lhe causaram, sobretudo nos seus esforços argumentativos de renovação e habilitação do haiku enquanto forma de arte universal.
A verdade é que as preocupações que assolam Shiki enquanto fazedor de haikus e teórico literário são imensamente diferentes das dos seus três precursores, sendo provocadas, sobretudo, por múltiplas contingências históricas e culturais que tornavam o Japão da altura de Shiki um lugar de intersecção volátil entre as «velhas» ideias nacionalistas nipónicas e as «novas» ideias ocidentais e modernas. De modo a estabelecer o seu lugar no panorama literário japonês, Shiki parte para um empreendimento algo incomum na tradição crítica japonesa: edificar uma nova tradição literária que, passando pelos mestres do haiku, culmine triunfalmente nos seus esforços poéticos. [1] De modo a poder empreender tamanha tarefa com sucesso, Shiki teria de abordar questões como a) o haiku enquanto forma legítima de expressão artística nacional; b) o estabelecimento do haiku enquanto forma de arte universal, equiparada a outras formas de arte mais longas, mais traduzidas e respeitadas; c) a urgência de desenvolver uma tradição crítica que analise historicamente e solidifique o haiku enquanto expressão artística autónoma, mas, em simultâneo, entrelaçada profundamente no ethos japonês. Shiki quer o melhor de dois mundos: enraizar o haiku numa tradição poética milenar e erguê-lo a género poético autónomo e com mérito intrínseco. Não é surpresa que tenha sido então graças aos esforços etimológicos de Shiki que a palavra «haiku» tenha sido cunhada, para designar as três linhas nos quais buscava, de acordo com a sua poética, cristalizar um recorte de vida (Shasei).
A cunhagem desse termo pretendia sinalizar a resposta à necessidade de revitalizar o haiku no panorama nacional, um rito de passagem que assinalasse o fim da dependência em relação a outros formatos poéticos maiores, mais antigos e respeitados. Desta forma, o haiku era desprendido do formato poético Tanka, que consistia em cinco linhas que, por sua vez, se havia desprendido do Renga, uma actividade poética colaborativa extensa praticada durante séculos pelos japoneses. Essa actividade consistia em grupos de poetas reunidos que, à vez, compunham alternadamente três linhas e duas linhas, em resposta à composição do poeta anterior. À versão mais leve e humorística desta actividade denominou-se por Haikai no Renga. Shiki pegou no primeiro caracter da palavra Haikai (俳諧, cómico) e fundiu-a com o último caracter da palavra Hoku (発句, verso inicial), criando assim o termo Haiku (俳句). Shiki fez isto de modo a resolver de uma assentada várias das suas preocupações: o facto de ser possível traçar uma genealogia do termo até à prática poética japonesa colaborativa legitimava, no panorama nacionalista japonês, a sua existência; ao mesmo tempo, pretendia oferecer uma solução para a revigoração da prática poética, dado que no tempo de Shiki, o estado da prática estava, nas palavras de JMP, «de tal modo desacreditado que apenas servia para entretenimento popular em tabernas e outros locais de diversão, [...] mero pretexto para ganhar dinheiro através de banais jogos florais» (pág. 16); e por último, enquanto high art capaz de ser equiparada a outras formas de arte (ocidentais, particularmente a novela e o verso branco) que agora contaminavam a identidade artística japonesa, obrigada a olhar maioritariamente para si e para a sua história e influências sino-japonesas durante os três séculos anteriores.
Não é coincidência que fora nessa época de fechamento que os três precursores de Shiki haviam prosperado e, no entanto, o seu reconhecimento enquanto mestres do haiku apenas surge com a crítica literária que Shiki estabelece. A razão porque tanto Bashô, como Buson e Issa eram considerados mestres durante a sua vida não era devido aos seus méritos poéticos na prática do haiku: Bashô era considerado mestre na prática de Renga[2], Buson era celebrado enquanto pintor, e Issa, embora dos três o mais reconhecido pelos seus haikus, nunca obteve sucesso suficiente para viver da prática, algo relativamente comum para mestres do seu ofício. Isto tudo para dizer que muito do entendimento que o ocidente possui do que é o haiku e os seus mestres advém da reinterpretação que Shiki estabeleceu dos seus precursores. Os esforços teóricos que Bashô realizou, como a fundação da sua própria escola poética Shômon, raramente eram postos por escrito e, nos casos raros em que existam escritos, a sobrevivência dos mesmos não era a preocupação principal. Isto porque havia uma incontestável tradição poética milenar que era traçada até às grandes antologias poéticas clássicas, organizadas por teóricos como Fujiwara no Teika (1162-1241); o prefácio da antologia imperial poética Kokinshu (circa 905), redigido por Ki no Tsurayuki (872-945), ainda era nos tempos de Bashô o baluarte a partir do qual o conteúdo poético era julgado e composto. Em suma, ninguém ambicionava destronar essas tradições.
Todas as escolas poéticas, fundadas ao longos dos séculos, achavam-se descendentes destas grandes tradições clássicas, e as diferenças ou inovações que introduziam nunca eram estabelecidas de modo a romper com a omnipresença dessa influência e tomar o seu lugar influente no topo da hierarquia, mas para justificar a sua associação e, consequentemente, legitimidade em comparação com outras escolas rivais contemporâneas. O que torna Shiki um iconoclasta é o facto de ele ser o primeiro que olha para a tradição poética prévia a si e, com intenções tanto filiais como agonísticas, procura não só romper com a tradição geral, mas também estruturar uma que legitime os esforços criativos que decidiu empreender. Shiki pretendia fazer, no curso da sua vida, algo semelhante ao que a tradição japonesa realizou e manteve durante séculos: uma forte tradição poética, agora sob a égide do haiku, legitimada pelos precursores seleccionados a dedo por Shiki. Graças aos seus esforços teóricos, poéticos e editoriais (fundador da revista de haiku Hototogisu, ainda hoje em publicação), o haiku sofreu uma revitalização no seu país de origem e ainda hoje, com sucesso, pratica-se a composição de haiku de acordo com Shiki, não só no país de origem, como fora dele.
Porém, é necessário dizer umas palavras sobre a tarefa inglória de tentar erguer o haiku a uma forma de expressão universal. Os problemas com que se depara qualquer tradutor de poesia japonesa são relativamente os mesmos com que se depara qualquer pessoa que pretenda escrever três versos numa língua não japonesa e pretenda chamá-lo de haiku. Será capaz de transcender a língua e o contexto de origem, dispensar o ethos nipónico e substituí-lo pela sua sensibilidade? Ou será isso só uma bastardização da actividade e projecção do termo para uma língua e contexto completamente distintos, onde a única semelhança que poderá ser partilhada é o facto de que quem os compôs os denominou haiku? Será que dar o nome a uma coisa torna-a nessa coisa? Os mais nacionalistas afirmarão que se trata, no máximo, de prestar um tributo, uma aproximação sem equivalente mérito artístico. Se for escrito numa língua latina, por exemplo, assemelhar-se-á mais a um terceto com motivos naturalistas, que faz recurso a uma linguagem objectiva, do que a um haiku; os mais universalistas afirmarão que a arte transcende fronteiras políticas, geográficas e até literárias, e que não há razão nenhuma porque um haiku escrito em português não possa ser equivalente a um haiku escrito em japonês. Ou seja, as distinções em qualidade não estão dependentes da língua na qual é composta a peça. É nesta altura que parece ser relevante introduzir a ambição de Shiki em relação ao estatuto do haiku no universo literário:«“O Haiku faz parte da Literatura. A literatura faz parte da Arte. Portanto, a Beleza é o derradeiro valor da literatura.” (assim mesmo, com iniciais maiúsculas nos substantivos)» (pág.17).
A ênfase colocada por Shiki aos termos como literatura, arte e beleza em maiúscula, bem como a disposição da relação desses termos uns com os outros semelhante a uma matriosca (dentro da boneca maior, Arte, está a Literatura; dentro desta, o Haiku; e dentro do Haiku, a Beleza) atestam sobretudo os esforços e tendências de universalização que estavam em voga neste século. Esta descrição totalizadora da arte poderia ser claramente descrita como uma manifestação sintomática de Weltliteratur, termo popularizado por Goethe no século XIX, e que ambicionava estimular a circulação e recepção internacional de obras literárias europeias e não-europeias. O propósito seria de substituir a ideia de literatura nacional como o principal modo de criatividade no futuro pela ideia de uma literatura mundial. A verdade é que esta versão globalista de Shiki revela-se contraditória e de baixa resolução, pelo facto de criar incompatibilidades com os seus esforços de enraizar a sua linhagem e prática poética num contexto cultural e geográfico muito preciso. Ou o haiku se internacionaliza e se torna um termo ou prática global, independente da língua, cultura, tradição e história, ou é um termo exclusivamente empregue a uma prática específica, praticada num determinado tempo e lugar, por um grupo específico de pessoas, fruto de contingências culturais, linguísticas, políticas e geográficas.
Apesar desta aparente incompatibilidade, Shiki seguramente contribuiu para o surgimento e manutenção destas duas vertentes, pois muita da sobrevivência e seriedade inerente à leitura e prática do haiku adveio dos seus esforços criativos e críticos. Uma vez revitalizado o haiku em território nipónico enquanto formato poético japonês por excelência, o entendimento sobre as suas propriedades que se propagou além-fronteiras não considerou questões como autenticidade, imitação ou legitimidade suficientes para impedir a tradução, leitura e interpretação destes mestres do haiku japonês. Muito pelo contrário: essas questões costumam surgir como acompanhamento teórico e contextual de qualquer tradução ocidental séria. Dado ser esta última a realidade que nos afecta, resta reconhecer o esforço de JMP em tornar acessível uma forma de arte tão estrangeira como o haiku para um leitor que, agora que tem em suas mãos o último volume desta tetralogia, possuirá material suficiente para começar a formular as suas próprias e sérias interpretações.
[1] Seria certamente um ponto interessante discorrer sobre o tipo de interpretação que Shiki fazia dos escritos de Matsuo Bashô. Uma leitura bloomiana da crítica literária de Shiki a Bashô poderia revelar o tipo de relação ambivalente e, por vezes, agonística que detinha com este precursor; adicionalmente, revelaria a relação submissa e dependente por parte de Shiki a Yosa Buson. É graças aos esforços críticos e analíticos de Shiki que Buson adquire um estatuto de poeta de haiku maior.
[2] Talvez alguma da animosidade de Shiki para com Bashô tenha partido do facto de terem sobrevivido escritos deste onde se desvaloriza o valor e importância de uma peça única, afirmando que a qualidade do poeta e o mérito da peça residem na capacidade de interligar com as peças que vieram anteriormente e/ou abrir caminho para as que se seguem. Esta perspectiva poderá ter sido resultado da predominância do Renga enquanto actividade poética maior na época de Bashô.
REFERÊNCIA:
Shiki, Masaoka. Aves Dormindo Enquanto Flutuam.. Lisboa: Assírio & Alvim, 2021.