COMO CITAR:

Ramos, Inês. «Catarina Vasconcelos, A Metamorfose dos Pássaros». Forma de Vida, 2021. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0071 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2021.0071

Inês Ramos

Na sequência de A Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso (2015), A Metamorfose dos Pássaros (2020) é um filme autobiográfico centrado nas figuras da avó e da mãe de Catarina Vasconcelos. Beatriz e Ana, respectivamente, são abordadas de um modo que evoca «as mães de todas as mães» e excede as circunstâncias particulares da realizadora e do seu pai, ambas definidas pelo luto. Num primeiro momento, a acção avança acompanhando a família de Beatriz e Henrique, a correspondência trocada entre o casal e o crescimento dos filhos, sobretudo de Jacinto, o pai de Catarina. O foco no passado convive com as considerações que o narrador tece a partir do presente. Não há muitos diálogos entre as personagens, por isso, essas considerações ganham especial relevância na condução da perspectiva do espectador. Ainda mais porque partem de um conhecimento profundo dos acontecimentos para sugerir modos mais gerais de entender a vida, a morte e as relações humanas. Num movimento filosófico que assinala a passagem para o segundo momento do filme, o narrador compara Beatriz às árvores mais antigas da floresta, defendendo que as mães permanecem vivas na memória de quem lhes perserva as raízes. No fundo, para defender que a morte não anula a influência que as pessoas exercem sobre os outros, mesmo quando passa muito tempo e se renovam gerações.

No seguimento dessa passagem, a história foca o processo de luto por que Catarina Vasconcelos passou após perder a mãe, aos dezassete anos de idade. Depois de ficar submersa na água, com o pai, Catarina respira. Sobe ao cume da montanha carregando a bandeira estampada com o rosto da mãe; deambula por entre a natureza, as árvores e as flores, e assiste à mudança das estações. Num dos momentos mais prodigiosos do ponto de vista técnico, restitui as folhas caídas às árvores de origem, cola-as enquanto imagina uma conversa com a mãe. O sofrimento faz-se tranquilidade pela convicção de que há consolo. Não se ultrapassa a morte de uma mãe, mas parte-se daí para ganhar inspiração, para fazer filmes e homenagens tão bonitas como esta. Lamenta-se que a morte feche os sentidos à vida, ao sol de outono, ao crescimento dos filhos, mas reconhece-se a força da memória e da criatividade humanas. «A minha mãe está na reforma agrária» – diz Catarina – na explicitação da ideia de que as pessoas permanecem através dos outros, naquele sentido que suaviza o luto e aconselha a gratidão; naquele sentido que remete a identidade pessoal ao passado e obriga a reconhecer que ninguém se constitui nem avança sozinho.

A Metamorfose dos Pássaros é um filme sobre pessoas que sentem o peso do passado numa medida que as torna devedoras de todas as árvores que chegaram antes de si; sobre pessoas que vivem com as árvores conhecendo os limites da própria humanidade, nomeadamente, no que respeita à possibilidade de adiar a morte dos mais queridos. É um filme sobre identidade pessoal e sobre o modo como as vidas humanas se excedem no tempo, pela influência que exercem sobre os outros.  Deste ponto de vista, é também um filme sobre o direito de oferecer prendas que não satisfazem a expectativa de quem as recebe. Aparentemente, ao início, o pai de Catarina não concordou com a invenção de alguns aspectos da história; queria fidelidade estrita aos acontecimentos, num sentido que apontasse mais ao documentário do que à ficção. Foi, aliás, um crítico presente ao longo dos seis anos de filmagens. Mas Catarina percebeu que a veracidade das histórias não depende tanto do testemunho dos protagonistas quanto da perspectiva de quem se sente afectado por elas. Percebeu, no seguimento disso, que as histórias beneficiam da passagem do tempo e da contradição entre pontos de vista. Talvez por isso tenha olhado para si própria com um afastamento que encontra a justa medida entre a reflexão e a partilha de sentimentos.

A Metamorfose dos Pássaros é um exercício de imaginação verdadeiramente original; uma expressão única de bom gosto e maturidade, que não se faz filosófica a despropósito. No seu movimento de olhar o mundo e os seus habitantes com a curiosidade e a reverência de uma criança, o filme revela a sensibilidade de quem admira a vida e a morte como um mistério no qual se pode ser feliz. No seu modo contido e simultaneamente comovente de apresentar histórias pessoais dolorosas, o filme revela a inteligência de quem acredita que o cinema não impressiona pela invasão de privacidade nem pela exposição do que é íntimo. Catarina Vasconcelos vê à lupa cada espaço, cada carta, cada fotografia e cada personagem, para sugerir que o valor de todas as coisas se encontra numa visão mais abrangente e afastada, numa concepção mais enquadrada e composta, como numa natureza morta. A este respeito, faz lembrar Vale Abraão (1993), de Manoel de Oliveira. A sua visão acerca de si própria e da sua história aparece descrita por um conjunto de metáforas que não se esforça por aparecer, seguindo despercebido nos cenários naturais que lhe dão sentido. A natureza recebe tanta atenção como os espaços fechados; é entendida como uma extensão das relações familiares que esses abrigam, como uma segunda casa que protege quando a primeira está longe ou deixou de existir. Na verdade, são as pessoas que se transportam para fora e se instalam nas árvores, garantindo que entre a presença e a ausência, a vida e a morte, há um espaço limitado ao alcance da imaginação. A floresta e o mar são admirados em função da sua antiguidade, da semelhança com todas as pessoas que viveram e ajudaram a fazer a paisagem. E é assim, reconhecendo-se como herdeira de um vasto território físico e intelectual, que Catarina Vasconcelos descreve a sua vida e homenageia a família, especialmente os pais.

REFERÊNCIAS:

Vasconcelos, Catarina, realizadora. A Metamorfose dos Pássaros. Primeira Idade, 1944. 1 hr, 41 min.