COMO CITAR:

Fonseca, Tiago. «Dimitris Papaioannou, Transverse Orientation». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0018 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0018

Tiago Fonseca

Dimitris Papaioannou põe em cena espectáculos em que a imagem e o movimento são o foco principal. A coordenação e interacção de corpos humanos é importante, mas isso não o leva a considerar-se um coreógrafo de dança. Normalmente, está preocupado com o corpo não apenas no espaço, mas em relação com outros objectos que levantem problemas. Começou por ser pintor e desenhador antes de se dedicar à arte performativa, e esse ímpeto inicial para criar imagens sobre uma superfície plana está muito presente no espectáculo agora em digressão, exibido no CCB nos passados dias 10 e 11 de Dezembro.

A performance artística encenada por Dimitris Papaioannou, «Transverse Orientation», é principalmente um espectáculo visual. Tudo depende de imagens e acções sem linguagem verbal, em que corpos humanos e adereços mínimos contribuem para um jogo de luz e sombras. O título refere-se a uma forma de orientação própria das traças, que supostamente voam a um ângulo constante em relação à Lua. Esta teoria não é partilhada por todos os entomólogos, mas serve de ponto de partida para um espectáculo em que os ângulos da luz e a atracção à luz replicam esta forma de orientação.

Apesar da ênfase no visual, o espectáculo não é um vazio de som. Ocasionalmente ouvimos Vivaldi e muitos barulhos de palco, com objectos mudados de sítio de forma enérgica durante longos períodos de tempo. Nestes momentos, temos a impressão de estar na presença de uma empresa de mudanças de fato e gravata.

A acção começa com umas figuras muito altas vestidas de preto, com uma pequena esfera como cabeça, a quererem pegar num escadote.  Com um passo baloiçado e pronador, os seus movimentos limitados sugerem algo de filme mudo, de Charlie Chaplin. Emitem sons tímidos e assustadiços que não parecem funcionar como comunicação para esta tarefa meticulosa. O trabalho de levantar o escadote, com a dificuldade de agir em grupo e de concertar esforços ao início, é substituído por um pequeno carrossel quando o escadote está em pirâmide: uns atrás dos outros, vão subindo, descendo e voltando à fila, como numa linha de montagem. Finalmente, após esta reunião e uma grande azáfama, todos saem depressa, levando o escadote, e deixando um dos seres — mais pequeno, como uma criança que não tínhamos visto antes — sozinho no palco.

O palco está vazio à excepção duma grande parede branca que vai de uma ponta à outra. Na parede há uma porta, à direita, e uma lâmpada de tubo intermitente na outra ponta, à esquerda. O escadote teria ajudado a resolver a intermitência da lâmpada, mas esta espécie de ser parece mais predisposta a imitar do que a cooperar.

O ser-criança que ficou no palco parece querer sair, mas em vez de ir em direcção à porta, está ligeiramente à esquerda da porta, e repete uma investida contra a parede que é ao mesmo tempo cómica e trágica — corre, bate e recua atordoado; corre, bate e recua atordoado; e prepara-se para repetir. Então um homem entra no palco, dá a mão ao ser-criança e puxa-o até à porta. É um gesto familiar: um adulto ajudar uma criança, mostrar ou ensinar-lhe qualquer coisa. O que já não é tão familiar são crianças a correr contra paredes convictas de que é aquele o caminho. Há crianças que batem com a cabeça na parede ou no chão, e isso é igualmente cómico e triste na vida real. Tal como a revolta das crianças pode levá-las a esta forma de violência, também aqui o sentimento de abandono e a exposição no palco podem levar a uma resposta de fuga. O homem que chega sem uma palavra, tem um gesto de correcção, mais do que compaixão. Algo estava errado, e ele tem de alterar essa situação. Nisto, o ser-criança assemelha-se a um robô ou a uma máquina, programado para caminhar sempre em frente. Mas há algo de sensível nele, não querendo ser desviado do seu caminho.

A semelhança desta cena com o comportamento dos insectos é outra descrição possível. Parece haver uma fixação masoquista na investida, como a fixação das traças à luz e ao fogo. Essa sugestão é acentuada pelo barulho da lâmpada intermitente. Do mesmo modo, alguns insectos voam contra vidros uma e outra vez. Podemos direccioná-los com a mão e mesmo assim não vão para a janela aberta. A diferença de escala é demasiado grande para que possam entender o gesto como ajuda e não como perigo. O público sabe que há uma porta em cena, mas é possível que a criança, como a mosca ou a traça, não consiga ter essa percepção.

Num segundo momento, entra um touro rodeado de uns quatro ou cinco homens de fato preto. Os homens misturam-se na massa rebarbativa que é o touro preto, e a espaços parecem um grupo de forcados dominando o animal. O touro mexe-se com os gestos dos homens, que parecem gestos de dominação, mas são gestos de animação. Há uma dança com o touro, uma luta, uma brincadeira. Há um encontro com um homem nu no centro do palco que lhe dá de beber e que parece acalmá-lo. Depois há mais gente nua, branca como mármore, por vezes em cima do touro, com grande contraste, em poses evocativas: a virilidade conquistadora, o esforço para domar, o ensejo do rapto. Por vezes até numa pose da Criação de Adão. A figura humana é quase divinizada, mas sempre com uma sugestão de estado primordial e natural (despida). O instinto lúdico que começa com a entrada do touro é também continuada com o uso de movimentos animalescos e ilusões de óptica que sugerem poses inconcebíveis do corpo humano.

O jogo de luzes é minimalista, como todo o espectáculo, mas os seus efeitos são fascinantes. Uma luz quente altera todo o ambiente quando entra o touro. E a mesma luz é apontada ao público, ofuscando a visão durante dois segundos — o suficiente para mudar de cena. Para além disto, é com a luz que se concretiza muita da cenografia e também a componente mais mitológica que o espectáculo parece transmitir.

A parede é tornada numa tela temporária e mutável, onde sombras e reflexos dão uma nova vida ao que acontece no palco, alterando o ambiente desde um sabat sombrio a uma doce praia ao pôr-do-sol. As sombras do touro sugerem a imagem grandiosa do deus animal. Mais tarde será castrado e degolado, dando origem a uma espécie de deus-homem realizado nas sombras que o agigantam, o minotauro. A beleza e harmonia de certas partes do espectáculo encontram aqui o contraste do misterioso e do grotesco.

Um exemplo inesperado do grotesco é um Nascimento de Vénus em que a deusa, em vez de nascer, parece dar à luz. Vénus aparece grávida, e o que parece ao início uma carícia na barriga é na verdade um acto de criação. A mulher molda uma massa mole no ventre, que cai como uma placenta lamacenta até que se forma uma criança nas suas mãos e arte abstracta a seus pés.

Outra cena de grande contraste, neste caso com a beleza atlética dos actores, é a entrada em cena de uma mulher mais velha, nua, de pernas finas e tronco gordo, com pregas marcadas na pele, em saltos altos e com duas varas como bengalas. Também ela é um símbolo de fertilidade, também ela é uma Vénus, neste caso de Willendorf. O caminhar lento, coleante, da mulher parece não ter fim, arrastando um momento em que parece não acontecer nada. Atravessa o palco até à porta numa cena demasiado lenta para que não se perceba a importância do tempo no espectáculo. Não é a única. As grandes e demoradas cenas de construção, com blocos de esferovite — ou de desconstrução, com o estrado a ser levantado e empilhado até se transformar numa colina pedregosa à beira-mar ao pôr-do-sol — enfatizam também a importância do tempo, do processo, da demora para realizar.

Um último momento junta dois aspectos explorados ao longo do espectáculo — os efeitos da luz e a duração da acção — com o uso da água. Depois de encher um balde que parecia não ter fundo, uma mulher aperta-o contra o ventre. O balde de água é então despejado sobre o que parece ser um papel de alumínio colorido amachucado, que reflecte na parede uma luz forte. O reflexo é alterado pela água e pelas dobras do papel. Mais uma vez é um momento lento, em que a imagem reflectida vai ganhando e mudando de forma. Ao início, parece a imagem de um candelabro de cristal, mas o movimento sugere antes uma janela molhada, de vidro fosco, com as gotas da chuva a escorrer; e o som da água a cair acentua a imagem da chuva. No fim, também a mulher é absorvida para dentro do estrado, numa espécie de comunhão com os elementos; e descobre-se que há água debaixo do palco. Mais uma vez parece haver uma ideia de criação ligada à fertilidade da mulher, enquanto nas personagens masculinas toda a criação depende da acção e do trabalho conjunto. Volta então a «equipa de mudanças» para levantar o estrado e criar a praia, onde tudo termina.

Terminada a peça, permanece connosco o esforço para lhe dar sentido e descortinar intenções num espectáculo que procura criar uma linguagem não verbal. Mais do que tudo, os vários momentos — de que aqui se apresentam apenas alguns — são sugestões, reconhecíveis de formas diferentes por pessoas diferentes. Para uns será mais importante a relação do espectáculo com uma tradição artística com a qual se estabelece um diálogo e à qual se dá continuidade, como a mitologia grega, os filmes mudos e a pintura renascentista. Outros talvez cheguem a uma ideia de continuidade sem conhecer essa tradição, mas identificando sempre os pontos de partida de animais, corpos, tourada, nascimento, água, reflexos, brincadeira; ou sensações e acções reconhecíveis, como a humilhação, a castração e a empatia. A partir disso não é difícil fazer sentido de um espectáculo aparentemente estranho — vamos por hipóteses.

REFERÊNCIA:

Papaioannou, Dimitris, director. Transverse Orientation. Lisboa: CCB, 10-11 Dezembro, 2021.