COMO CITAR:

Fonseca, Teresa Esteves da. «Declan Mckenna, Zeros». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0021 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0021

Teresa Esteves da Fonseca

«Prodígio» foi a palavra que começou por ser usada quando Declan McKenna, com apenas 16 anos, apareceu no cenário musical britânico. Agora, com 22, parece já não ser tão adequado, não porque tenha perdido o brilhantismo musical que o distingue de tantos outros, mas porque quando se chega a um certo patamar deixa-se de ser uma promessa, e passa-se a ser um artista consistente, porém orgânico e em crescimento constante. McKenna já deixou de ser uma promessa. É agora um músico de provas dadas: dois álbuns lançados, concertos pelo mundo fora, e cerca de três milhões de ouvintes mensais no Spotify.

Certas características evidentes da música de Declan não despareceram entretanto, como a sua crítica social. Veja-se «Brazil», por exemplo, o seu primeiro single, lançado em 2015: uma forte crítica à realização do Campeonato do Mundo de Futebol da FIFA num país com um contexto de pobreza e corrupção. Contudo, o que nos traz a este texto são as inovações de Zeros, o segundo álbum do jovem músico, lançado a 4 de Setembro de 2020. O aspecto que mais distingue este do primeiro, What Do You Think About The Car?, é o facto de ser um álbum conceptual, tendência que, aliás, se tem vindo a recuperar do rock dos anos 60 e 70 do século passado. De um disco para o outro, assistimos a um crescimento substancial de maturidade por parte do compositor e dos músicos que o acompanham.

A narrativa deste álbum cria uma abordagem distópica ao mundo moderno, recorrendo a um imaginário intergaláctico, e a um protagonista ambíguo, misterioso, e destinado a ser astronauta, Daniel, que está presente na maioria das canções. As temáticas são pautadas pela crítica à sociedade, abrangendo assuntos como a política, as novas tecnologias e a acção climática. Estas premissas distópicas remetem-nos, em muito, para a série Black Mirror, com as suas representações ficcionais de temas prementes da actualidade e da condição humana. Logo na primeira canção, «You Better Believe!!!», é expressa uma certa ansiedade sobre o actual estado do nosso planeta («You're gonna get yourself killed before you can run»[1], clama Mckenna freneticamente ao abrir da música), enquanto se sonha a fuga para outro sítio, outro lugar que não seja a Terra («What do you think about the rocket I built? Is it so fast, so high speed? It's just what you need»[2]). Outra problemática abordada pelo artista é, em «Beautiful Faces», a implícita relação de poder entre os chamados influencers e os seus seguidores, que vão assistindo, estáticos, às vidas fabricadas destas «beautiful people who won’t remember you, honey».[3]

Um aspecto francamente intrigante deste trabalho é o contraste entre as dimensões musical e lírica. Mckenna é autor de verdadeiros hinos de juventude, de músicas pungentes, ritmicamente complexas e animadas, de refrões gritados até à rouquidão por milhares de fãs nos seus concertos. No entanto, há uma densidade lírica, fortemente marcada pela sátira e pela ironia, que a dimensão musical não faz prever numa primeira audição. Conserva-se, assim, uma longa tradição do prog rock inaugurada pelos Beatles (veja-se o incontornável Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band), e continuada por incontáveis bandas até aos dias de hoje: os instrumentos festejam, mas as palavras pulsam inquietas.

Por entre entusiasmos e arrebatamentos rockeiros, somos brindados com uma música que funciona como pausa, um respiro, enfim, um descanso: «Emily». Muitos já a compararam com «Michelle» dos Beatles, pela simplicidade da sua melodia e a doçura dos seus acordes. Aqui a voz de Mckenna, que não é particularmente extraordinária (factor que pouco importa quando se trata de rock), faz-se valorizar com toques de sensibilidade e pequenos trejeitos que não têm lugar nas restantes canções. A colocação, o timbre da voz, e a própria pronúncia de Mckenna assemelha-se à de John Lennon, o que se torna bastante evidente na referida canção, e reforça o argumento de que para se ser um bom músico não é fundamental ter-se uma técnica vocal especialmente desenvolvida.

É ainda de referir a multiplicidade de referências, não só musicais, como também sociais e históricas que abundam neste álbum. Em toda a extensão do trabalho vamos ouvindo falar de Margaret Thatcher, de ténis da Nike, de um buraco negro supermassivo (Sagitarius A*, que dá o nome a uma das canções), de bullying, de Jesus «and His loved ones», de Quavers[4]; tudo pequenos elementos que nos revelam um autor curioso, sensível e permeável à herança do psicadelismo e de algum surrealismo. Assim, Mckenna estende o braço a Bowie, The Beatles, Abba, Led Zepplin, entre outros, mas não se fica pela homenagem insípida ao passado. Pelo contrário, resgata estas referências, baralha-as e refina-as com toques de modernidade. O que Mckenna traz destas referências (na sua maioria dos anos 70), é a energia de uma banda a tocar em conjunto, ao contrário da grande parte das canções track by track feita hoje em dia; o que Mckenna acrescenta ou reinventa nestas referências são ferramentas modernas, nomeadamente digitais, como sintetizadores e batidas, que se põe em diálogo com linguagens mais antigas. Diria que é esta a grande característica que sobressai neste álbum, e que o diferencia dos cantautores da geração de Mckenna.

A banda que acompanha Declan Mackenna traz-nos ainda uma agradável surpresa: Isabel Torres. As supremas guitarradas que ouvimos no álbum estão a cargo desta jovem portuense de 26 anos. A canção que é pináculo da sua prestidigitação é «Be an Astronaut», a segunda do álbum, em que ouvimos um extático solo mesmo ao cair do pano, e que faz furor entre os fãs nos concertos ao vivo, mas que não é menos entusiasmante ouvida em gravação. Se motivos nos faltassem para nos entregarmos à audição deste disco, Isabel Torres torna-se num argumento incontornável pela sua linguagem musical apurada e pela sua técnica singular.

O rock britânico poucas vezes nos desiludiu desde os primórdios da sua existência. Artistas como Declan Mckenna alimentam a esperança de que o rock nunca vai morrer, e de que está entregue a novas gerações que se prestam a honrar a História, dialogando com ela, usando ferramentas do presente e com um pé sempre a espreitar o futuro.


[1] «Vais-te matar antes que possas fugir».

[2] «O que achas do foguetão que construí? É assim tão rápido, tão alta velocidade? É mesmo o que precisas.»

[3] «Pessoas bonitas que não se vão lembrar de ti, querido».

[4] Snack comum no Reino Unido, semelhante a batatas fritas.

REFERÊNCIA:

McKenna, Declan. Zeros. Columbia Records, 2020. CD.