COMO CITAR:

Reis, Amândio. «Manuel Bivar, A Charca». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0023 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0023

Amândio Reis

A obra de estreia de Manuel Bivar aparece como um objecto não identificado nos céus da ficção portuguesa contemporânea. Ainda assim, ou por isso mesmo, ela leva o seu autor a partilhar pelo menos uma coisa com alguns outros, como Ana Teresa Pereira, por exemplo, que é certa maneira de estar absolutamente só. Mas esta solidão não será uma arrogância, ainda que tenha lugar «por entre a gente» e na ronda dos certames literários ocasionais. Ela decorre menos de uma escolha do que de uma inevitabilidade, ou um destino. É que Manuel Bivar e Ana Teresa Pereira cultivam o seu ofício com demasiada verdade em relação a si mesmos, o que significa que não sabem estar ao serviço de outrem nem do gosto da época, e com demasiada humildade em relação ao lugar fragilíssimo da sua obra no mundo, o que faz com que não tenham jeito para conversar sobre ela, nem sejam interessantes nem úteis nos círculos sociais da literatura e da cultura.

Então, entre o que distingue estes dois escritores, que é quase tudo, encontramos também alguns pontos em comum, por meio dos quais talvez seja possível começar a identificar alguns dos traços delineadores da Charca. Antes, porém, pode resumir-se assim o enredo mínimo desta «eco-ficção»: um indivíduo sem nome, sentenciado, pela sua sexualidade, a uma condição marginal e ao «medo de acabar como um coelho, com a cabeça partida na pedra» (p.5), isola-se da sociedade humana e dedica-se a uma obra de geo-engenharia: a construção de um abrigo, um jardim e uma «charca» (o feminino de charco), que ele povoa de animais e plantas, criando o seu próprio habitat. O arco narrativo do texto percorre, ao longo de um ano, as etapas, as transformações e as dificuldades dessa construção, interpoladas de reflexões e de páginas quase ensaísticas. O primeiro daqueles traços antes referidos será, pois, o estatuto de estrangeiro residente que esta obra alcança na língua portuguesa. Tal como Pereira, com os seus actores e dramatis personae, Bivar exprime-se num idiolecto que se reflecte na metamorfose ou na formação dos nomes. Aqui, metamorfose e formação querem dizer a mesma coisa. Isto é, a proto-narrativa da Charca actua, sobretudo, no plano substantivo da língua, procurando, com isso, fazer (aparecer) os habitantes do mundo referencial do texto.

No caso de Bivar e no microcosmo da Charca, alguns dos habitantes mais corpóreos desse mundo são plantas, animais e micróbios, sempre identificados pelo nome ou pela classificação taxonómica em latim, isto é, sempre reconhecidos, específicos e descritos nas suas propriedades, que são únicas, mas que também os prendem uns aos outros no parasitismo, nas relações sexuais e na alimentação. A natureza é um todo sem partes. Este é o mistério de que fala Bivar. Assim, até certo ponto, estamos perante uma nova literacia, uma (profi)ciência natural que vem atingir de frente a nossa plant blindness e a nossa urbana estupidez ecológica: «E a cada dia que passava mais nojo tinha de quem não conhecia o que comia, que citava autores e não sabia o nome das ervas e a quem tudo isso parecia normal» (p.16). Aqui, vemos finalmente preenchidos de indivíduos, isto é, pessoas de fibras e de carne (entre as quais coisas como personagens e metáforas seriam falsificações), um vocabulário e um imaginário habitualmente reduzidos, nos livros, à decoração e à generalidade.

O segundo traço distintivo desta obra consiste numa fidelidade inquebrável e audaciosa a essa mesma cosmovisão. Bivar inscreve-se com naturalidade num grupo de anómalos destemidos (entre os quais talvez figure, no campo da poesia, José António Almeida), que, sem programa ou estratégia, se fazem imprevisíveis. A razão da sua arte não é mais do que uma ligação directa ao centro do que os move, coisa que só podem pôr em palavras como puderem, correndo muitos riscos. Nomeadamente, correm o risco de ser repetitivos nas suas obsessões e o risco de namorar com o mau-gosto e com um certo kitsch. Mas é preciso notar que, para estes fiéis praticantes de uma «literatura menor», de rosto mal maquilhado, franco e frio, isso corresponde ao preço a pagar pelo que são, precisamente, as suas prioridades. Diz Ana Teresa Pereira de Cornell Woolrich, autor de romances policiais, daqueles de vender ao desbarato: «A sua escrita era uma corrida contra o tempo, contra a morte, onde por vezes se notava a falta de disciplina e a paixão levada ao extremo. Só espero, um dia, escrever tão mal como ele» (O Ponto de Vista dos Demónios, Relógio D’Água, 2002, p.37).

O terceiro e último traço liga-se aos dois anteriores, mas advém do próprio teor da prosa. É que também ao nível do assunto, com o seu protagonista verdadeiro — um homem do campo, «bicha rural» (p.56), algures no interior português, entre o Alentejo e o Algarve —, mas despersonalizado, anónimo, e com o seu relato ao mesmo tempo fabuloso e naturalizador, muito mais do que naturalista, Bivar continua indomesticado e alheio à tradição portuguesa e ao seu modo-de-fazer, que ele, provavelmente, conhece mal ou ignora. Desse modo, pode ser indiferente a certa etiqueta e à compostura que essa tradição e as suas modas têm prescrito aos seus escritores (homossexuais).

Tendo ido dar a uma praia que fica para além de todas essas margens, a escrita de Bivar contém uma versão implícita da mesma recusa do tédio e do essencialismo que Diogo Vaz Pinto assumiu com todas as letras em Ultimato (Maldoror, 2018, p.35): «Ser português não quer dizer muito cá fora.» Vaz Pinto, o editor que assumiu o risco de publicar A Charca, tem compreendido, melhor do que muitos autores gay, o que é situar-se num lado-de-lá das tontas grades da realidade e da literatura.

Este último ponto obriga-me a retomar uma ideia anterior e a notar o seguinte: dizer que a natureza de Bivar é um todo sem partes — ou feito de partes ligadas por elos inescrutáveis, «parcelas que interagem em diferentes gradientes de instabilidade em constante distúrbio e perturbação» (p.31) — não é o mesmo que reduzir o seu ideário a um ingénuo universalismo. O que está em causa nessa ideia é a desestabilização da origem, que deixa de ser única e específica, seja ela o país, a espécie ou a identidade.

Se o protagonista é um incendiário em potência, movido pelo ressentimento, a sua piromania tem de ser entendida também num plano quase crítico do texto, no quadro mais amplo de uma combustão criativa que leva a que o fim do mundo e o seu nascimento andem a par. Isto é, estamos perante uma poética e uma religião do incêndio: «porque o fogo é forma de fazer, de ter intervenção na matéria, e porque o fogo é amor também» (p.59). A refundação/refundição do mundo exige, portanto, que se imagine futuros: nem Apocalipse, nem Génesis, mas Palingénese, o recomeço que se entretece com todos os fins, e que parece ter sido, até agora, pelo menos, a história desse «uno» metamórfico a que chamamos vida na Terra.

Não é difícil, portanto, para o protagonista desta história, entrever o futuro próximo, iminência do presente que está hoje mesmo a realizar-se, no qual «O rio era agora dos peixes-gato» (p.41), espécie invasora em Portugal, e omnívora, cujo poder catastrófico de tomar o primeiro lugar nas cadeias alimentares está documentado e se faz já sentir em certos pontos do país. Porém, a hecatombe ambiental não é vivida, aqui, com aquele pânico de quem vê no Homem o centro de todas coisas, nem, tampouco, com aquela doutrina ecologista irrisória, que recomenda aos cidadãos soluções de higiene moral, como fazer a separação do lixo, em vez de não fazer lixo. O sujeito sem nome da Charca vê para além de tudo isso e percebe que, na voragem daqueles peixes-gato mutantes, que já comeriam grandes mamíferos, incautos, à beira-rio, «Talvez eles se comessem uns aos outros», e «Talvez dessa comezaina nascesse alguma coisa, dessa porcaria de carne gelatinosa acumulada nascesse a vida no lodo» (p.41).

Então, perante a evidência de que o mundo não tem fronteiras nem finais, e de acordo com uma rejeição de partida da «ideia de autóctone» e da «palavra paisagem» (p.8), que pressupõem a estrita pertença e o artificialismo de esquemas estanques, contranatura, este sujeito queer — termo que não aparece na Charca — pode tornar-se a criatura migratória que, na «primeira primavera» (p.15) do livro, renasce para ser.

Ele desloca-se para esse hiper-futuro da narração, em relação ao qual o futuro especulativo da diegese corresponde já a um histórico Éden pós-humano, o qual se vislumbra, aqui e ali, no pretérito imperfeito próprio dos relatos: «Agora que as terras tinham sido abandonadas voltavam os matagais e com eles veados, corços, gamos, javalis aos milhares, lobos, linces, víboras, texugos, raposas, sacarabos [sic]» (p.33); «Tudo ali apontava início. Os grandes herbívoros de volta, a ausência de pessoas, os novos dilúvios, a subida das águas, os campos de golfe da costa cobertos de água salgada» (p.103).

Está no aqui-e-agora de uma contemporaneidade que é bem a nossa, em processo de se historizar, com referências a aplicações de telemóvel vocacionadas para encontros sexuais (p.65), ao «encerramento da fronteira» (p.66) e a um «vírus» para o qual o remédio natural é o «falso funcho» (p.94), e à exploração do lítio (p.95); sendo o ano ascético do protagonista o mesmo em que «as cerejeiras japonesas floriram dia 26 de Março, e nos 1200 anos anteriores nunca tinham florido tão cedo» (p.84), isto é, 2021.

E regressa ao passado pré-histórico que é a sua origem mítica, mas também a sua fonte filosófica, que ele, no fulgor criativo de uma orfandade queer — não há qualquer alusão, no texto, a pai e mãe biológicos —, pode reclamar para si por direito genético. Esta forma de arqueologia íntima, fruto da vividez do imaginário do autor, é o passado presente da criação do protagonista, do seu enraizamento por determinação pessoal e por reconquista:

 

Passava horas a limpar as pedras com as mãos e encontrou um sílex vermelho mas com medo de maldições decidiu deixá-lo onde estava e logo imaginou a mãe neolítica a esgravatar para encontrar água para o recém-nascido. Aquela pequena piscina de pedras onde brotava a humidade pareceu-lhe uma autêntica cona cósmica e limpava-a com respeito, sentindo-se protegido. [...] Sentia-se ligado enquanto escavava e quando o acusavam de não ser dali, como tão frequentemente faziam, gritava eu sou filho de uma cona neolítica, meu grande filho da puta (pp.15-17).

 

Estes três tempos do texto, que me permitem concluir com um retrato muito parcial, mas representativo, do que A Charca tem para oferecer aos leitores que se deixem afundar um pouco em águas turvas, são também os três afluentes do que talvez seja o gesto mais arrojado desta obra: a reinscrição da «bicha» na história. E isto pode parecer contraditório. Afinal, a narrativa da construção da charca — essa «obra» do protagonista, reflexo da obra de Bivar — partira de uma constatação da falência da hereditariedade, substituída pela autocriação, da reprodução sexuada, substituída pela «telitoquia» (pp.62-63), e da comunicação, substituída pelo fogo que se reivindica como «arma dos desvalidos, dos oprimidos, daqueles a quem querem controlar e a quem tudo é negado» (p.53).

No entanto, a personagem não chega a puxar fogo àqueles montes e, no fim da estação, «A charca, obra sua, transformara-se numa miserável poça» (p.87). Mas isto não quer dizer que o potencial transfigurador do texto se evapore, ele também, por resignação, niilismo ou impotência. Aqui, obra falha é obra feita, porque a obra é o próprio fazer, o gesto que abre o caminho depois do falso fim de tudo. Depois de ter sido proscrita, a «bicha» reescreve-se, exercendo assim a sua violência e a sua afirmação: «Agora que se sentia pertença daquela lama não tinha vontade de queimar. Aquela charca redimia-o» (p.87). Nada ilustra melhor a redenção do herói-bicha do que as páginas fulgurantes, ecfrásticas, em que o célebre retrato que Cristóvão de Morais pintou de Dom Sebastião, esse estandarte da portugalidade, é relido, entendido ou revelado como ícone da ancestral «desgraça inequívoca da condição veada neste mundo» (p.5), como o retrato de um rei que «com o comportamento típico de uma bicha maníaca tornou-se símbolo nacional e de certa forma, pensava ele, redimiu todas as bichas que tiveram o azar de nascer nesta terra» (p.47). Ao reescrever o lugar desgraçado da «bicha» na história, Manuel Bivar reescreveu também a história, ou, dirão alguns, desgraçou-a.

REFERÊNCIA:

Bivar, Manuel. A Charca. Lisboa: Língua Morta, 2021.