COMO CITAR:
Beirão, Pedro. «Banda do Casaco, Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0024 .
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0024
Pedro Beirão
Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios é o primeiro álbum da enigmática Banda do Casaco, lançado em 1975 e reeditado em 2022. Tal como a própria banda, o álbum surge de um mundo em ebulição, marcado por um experimentalismo transversal às mais variadas áreas da vida: na procura de novos sistemas de organização política, baseados na autodeterminação dos povos em oposição ao imperialismo, na procura de novos sistemas de organização social por parte de sectores da sociedade historicamente discriminados, na procura de novos sistemas de organização artística, ou até na procura da transposição das próprias fronteiras planetárias. Foi precisamente no Portugal em pleno período revolucionário que a Banda do Casaco nos propôs um destemido projecto musical com uma tão mais ousada premissa narrativa: e se Fausto, o mefistofélico, tivesse vivido o PREC?
A Banda do Casaco forma-se em 1973 (altura em que Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios começa a ser alinhavado) como consequência da junção de duas outras bandas anteriores, a Plexus e a Filarmónica Fraude. Apesar de a banda se desenvolver sobre o eixo criativo Nuno Rodrigues–António Avelar Pinho, muitos são aqueles que para além deles integraram as suas fileiras no decorrer dos anos, de forma permanente ou temporária. Entre eles podemos encontrar Celso Carvalho, José Fortes, Carlos Zíngaro, Cândida Soares (conhecida mais tarde como Cândida Branca Flor), Né Ladeiras, Luís Linhares, Concha ou Gabriela Schaaf.
Idealizado inicialmente como uma ópera (seguramente uma muito diferente das obras que, à época, receberiam esta designação), Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios conta-nos a história de um personagem não nomeado que recebe determinadas benesses como consequência de ter vendido a sua alma ao diabo. Sendo óbvio o paralelismo com a história de Mefistófeles e Fausto, talvez sejam surpreendentes os contornos bíblicos que o desfecho da narrativa toma: para provar a sua fé ao novo mestre, o vendido é chamado a sacrificar o seu próprio filho, tal como Deus fizera com Abraão e o seu filho Isaac.
A narrativa, no entanto, não é de fácil percepção, principalmente porque as faixas que a compõem se apresentam intercaladas com outras que não nos parecem ter nenhum sentido dentro da trama faustiana. Uma audição mais atenta fará com que as entendamos como a descrição da localização exótica que serve de cenário ao enredo: o Reino dos Bonifácios. É difícil não traçar um paralelo entre os seus habitantes, esses «grandes viajantes em fraldas de camisa», «profissionais do bico calado», e os próprios portugueses. Apropriando de forma subversiva e contestatária os mesmos símbolos usados pela carunchosa ditadura, tal como a glorificação das «Descobertas», a Banda do Casaco aproveita a sua recém-adquirida liberdade para criticar o antigo regime e a atitude conformista de alguns dos seus compatriotas, ao mesmo tempo que enaltece a figura do proletário em detrimento da do burguês, à boa maneira do PREC. Este álbum será, assim, um passeio dum personagem faustiano por Portugal em pleno período revolucionário.
Embora seja um exercício de imaginação, não podemos deixar de reconhecer que Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios teria, certamente, seguido um rumo bem diferente, não tivesse a sua construção sido atravessada pela revolução: sem uma investigação mais profunda será difícil reconstituir a ideia original para este projecto, para lá de já sabermos que foi planeado enquanto ópera, mas mais difícil seria especular quanto dele se manteria acaso a revolução não tivesse ocorrido. Parece-me que a dispersão deste objecto não pode ser desassociada do facto de ter sido trabalhado imediatamente antes e imediatamente depois da mudança de regime. Se admitirmos a narrativa faustiana enquanto projecto original, o mote para a ópera, podemos deduzir que dois projectos se fundem neste álbum, aquele possível em ditadura, e aquele possível em liberdade. Tal justificaria, por exemplo, a alternância entre faixas dedicadas à narrativa do vendido e outras à descrição do Reino dos Bonifácios.
A liberdade não permitiu apenas conciliar este enredo com o retrato de um país em reconstrução, mas também deu à banda a possibilidade de levar o experimentalismo que já estava na sua génese a extremos que certamente não teriam sido possíveis durante a ditadura. Se num primeiro momento podemos estar inclinados a lamentar a dispersão e dificuldade de compreensão que o atropelo de novidade da época terá trazido para esta obra, prontamente somos levados a celebrá-los. É que não é possível pensar neste álbum (ou até em todo o trabalho da Banda do Casaco, sequer) sem reconhecer a riqueza que o seu experimentalismo trouxe para o contexto da música nacional do seu tempo. A utilização de estruturas consideravelmente mais complexas que as simples e tradicionais estruturas com refrão da música pop-rock comercial, a instrumentação peculiar, a sobreposição modal, as métricas stravinskianas e também a fusão de géneros (música tradicional, rock, clássico, entre outros) empregadas nesta obra são o seu brilho e dão-lhe uma posição de destaque entre os seus pares.
O factor de estranheza, ao mesmo tempo que foi a distintiva marca da banda, poderá ser o fundamento da sua erosão, contribuindo para o insucesso desta música junto das massas. Embora seja provável que o agrupamento não tivesse como principal meta o sucesso comercial (repare-se que em 11 anos a banda deu 11 concertos), a verdade é que o seu esquecimento não faz justiça ao carácter pioneiro que teve na música portuguesa à época. A Banda do Casaco não voltaria a gravar após o seu último álbum, Com Ti Chitas, de 1984.
A Banda do Casaco é, para além dum marco histórico, uma celebração da liberdade artística, e Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios é a expressão material da mesma. O seu corpo de trabalho, ainda que amplamente desconhecido, é cuidado, diversificado e consistente. Talvez seja por isso que, mesmo apesar do seu insucesso comercial, a Banda do Casaco teime em não desaparecer. Para além disto, esta banda faz-nos hoje, acima de tudo, um convite à reflexão. Podemo-nos questionar porque continuamos a fazer a manutenção de fronteiras entre géneros musicais quando no passado a sua interacção foi vista como enriquecedora; se deverá a ópera do século XXI ser apenas um recurso agarrado à sua tradição, mascarado por uma falsa renovação erudita e excludente, ou se deverão ser feitos esforços para que esta se aproxime novamente das pessoas, e com recurso a uma nova abordagem artística contemporânea e interdisciplinar, e, por último, qual deverá (ou poderá) ser o papel dos novos artistas no mundo do consumismo veloz, fomentador da precariedade das coisas, que ao mesmo tempo que demanda novidade parece já dar sinais de estar saturado dela.
REFERÊNCIA:
Banda do Casaco. Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios. Philips Records, 1975. CD.