COMO CITAR:

Pina, Francisco. «William Shakespeare, King Lear». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0025 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0025

Francisco Pina

João Garcia Miguel, encenador, performer e artista português, tornou-se ilustre pelas estratégias invulgares a que recorre para trazer as suas criações ao mundo do teatro. A forma como reorganizou e reformou textos clássicos concedeu-lhe um estilo artístico altamente característico que mostra genialidade e justifica a internacionalização do seu trabalho. É neste contexto que Garcia Miguel toma conta do Teatro Ibérico com um novo olhar sobre a adaptação de King Lear que lhe deu fama em 2006. «Entre 2006 e 2009 pegámos pela primeira vez num texto de William Shakespeare: King Lear. E dando-lhe um tom de arte popular e fazendo do rei um fingido cidadão e um clown experimental reconstruímos com dois actores as vinte e muitas personagens da peça original», lembrou o encenador na folha de sala.

A adaptação mais recente a que a Companhia João Garcia Miguel (JGM) submeteu a peça shakespeariana viu trazer ao palco três actores: Sara Ribeiro, Chico Diaz e Cassiano Carneiro. Foram estes os artistas que se apoderaram das várias personagens num esforço considerável capaz de captar a atenção da audiência do início ao fim. É de salientar não só o trabalho artístico dos intérpretes, mas também o da equipa técnica que os rodeou na preparação dos elementos audiovisuais, como o da presença de um painel electrónico destinado a mostrar palavras e frases importantes para o enredo, um controlo de luzes muito bem conseguido, que deu ênfase aos solilóquios e cenas dramáticas, e também, os efeitos sonoros escolhidos para representar certas didascálias que influenciaram o rumo emocional dos actores ao longo da encenação.

É neste ambiente peculiar que os actores são forçados a sair da sua zona de conforto e adaptar um pouco da loucura presente no texto original. Sara Ribeiro mostra uma actuação multifacetada ao representar cinco personagens diferentes (as três irmãs Goneril, Reagan e Cordelia, filhas de Lear, e os irmãos Edmund e Edgar), fazendo com que, em determinadas cenas, seja obrigada a interagir consigo própria. Também Chico Diaz serve outros papéis secundários (nos quais dá vida a Gloucester, ao Bobo e a Kent) e, tanto Sara como Chico, alternando entre tons de voz, por vezes mais agudos e outras mais graves, cumprem os seus papéis de forma a entregar o holofote a Cassiano Carneiro (que tem o seu trabalho dedicado exclusivamente à personagem principal, Lear), algo que é imprescindível para a abordagem escolhida. Com apenas estes três artistas, reproduzem-se as cenas mais importantes para o enredo principal da obra, deixando de parte certos fragmentos e personagens secundárias para que a encenação «respeitasse o tempo de atenção da audiência» e a direcção em que Garcia Miguel queria levar a peça, de forma a ter apenas certos temas destacados. A actuação viu o seu foco direccionado, sobretudo, às dinâmicas de poder, decadência para a loucura e a uma busca pela verdade.

Num primeiro momento, a acção começa com uma iluminação que pretende destacar Sara e Cassiano na sua representação da divisão do reino de Lear pelas filhas. É facilmente perceptível, nas primeiras cenas, a coordenação entre os artistas, que lidam de forma ideal com o facto de serem apenas três para um número imenso de personagens. Esta dificuldade, que parece não o ser para quem está a representar, pode vir a ser um pouco avassaladora para quem não conhece a obra shakespeariana na sua totalidade. No entanto, não deixa de ser este um aspecto da abordagem de Garcia Miguel que surpreende pela positiva, tal como tinha feito em 2006, mas apenas com dois actores.

Num segundo momento, em que o enredo se move no tempo e no espaço, a música de fundo acaba por destacar momentos de suspense e os efeitos sonoros tornam fácil um mergulho numa bolha imaginativa que nos transporta do Teatro Ibérico para um descampado amplo durante uma tempestade intensa. Para além desta imersão na história através dos efeitos audiovisuais e das actuações dos artistas, algo que tem de ser salientado são as escolhas de vestuário que vão sendo alteradas ao ritmo da peça e se encontram intrinsecamente ligadas ao declínio de Lear para a loucura. No início vemos Lear com uma vestimenta digna de um rei poderoso: com uma coroa majestosa, um casaco adornado com elementos de várias cores e acessórios que fazem de Lear a personagem a destacar no palco. Com o aumento de tensão entre Lear e as suas filhas e a sua loucura a crescer, a certa altura Cassiano aparece vestido de forma desleixada: sem casaco, com uma fralda (que representa a incapacidade de Lear) e um ar desorientado. Importa frisar a centralidade da «actuação de total desespero» de Cassiano (como o próprio o afirma), que nestes momentos de tensão e loucura, representou de forma primorosa e do início ao fim a violência, o ego e a insanidade de Lear.

Num terceiro e último momento, destaca-se o quebrar da quarta parede levado a cabo pelo Bobo, representado por Chico. Este momento é pontuado pelo elemento cómico, de forma a aliviar a tensão de Lear e da peça no geral. Para além deste contributo é também relevante que o Bobo surja como a personagem mais inteligente, algo que é comum nas peças de Shakespeare. Esta relevância encontra-se acoplada, principalmente, aos ensinamentos que tenta passar a Lear (é também interessante descobrir que o Bobo é a única personagem de quem Lear permite críticas). Cerca de duas cenas depois, acentua-se também o clímax da peça, representado sob uma luz forte vermelha, no qual Lear, as suas filhas, Edmund e Edgar se destacam num ambiente rodeado de traição, sofrimento, vingança e morte. É mediante esta cena final que obtemos, nada mais, nada menos do que a essência do teatro: emoções à flor da pele, riqueza de linguagem e uma influência inabalável sobre a audiência. Para Garcia Miguel, o mérito cai sobre quem fez da actuação algo grandioso: «É sobre [os actores] que recai o encanto, o magnetismo, o alfabeto que nos permite reler e reconstruir a obra. É com eles e através deles que procuramos aceder a essa consciência diversa do que fazemos.», afirma o encenador na sinopse da peça apresentada no seu site oficial.

Consumada a encenação da peça, fica na mente aquilo que faz de King Lear uma obra difícil de esquecer: uma mistura de emoções fortes, as várias interpretações que se tornam possíveis no fim de cada cena e, por fim, um final típico de William Shakespeare, no qual a tragédia reina. Esta especialidade a que Shakespeare nos habituou nos seus textos encontra aqui uma abordagem peculiar, mas que ganhou precisamente por assim o ser. Conclui-se que King Lear como obra a ser representada apenas parece ser possível com uma infinidade de recursos, pessoas e tempo, de forma a pôr em prática tudo aquilo que o texto sugere. Ou então, com criatividade, loucura e confiança colectiva pode atingir-se com três actores aquilo que outros tentam com dezenas.

REFERÊNCIA:

Miguel, João Garcia, encenador. King Lear. Lisboa: Teatro Ibérico, 2-13 Março, 2022.