Teresa Líbano Monteiro*
Törless, protagonista de As perturbações do pupilo Törless (1906), de Robert Musil, levou muito a sério a célebre admoestação do templo de Apolo, em Delfos – «conhece-te a ti mesmo». A narrativa tem, contudo, lugar no prestigiado internato de W., localizado numa zona longínqua do império austro-húngaro, milénios decorridos desde a citada injunção délfica. É neste microcosmo que o jovem pupilo procurou conhecer as zonas mais insondáveis de si, não olhando a meios para atingir este fim. Assim, ainda que nos seja apresentado como um rapaz sensível, Törless tem um papel não despiciendo na intriga principal do livro, o martírio de Basini.
Basini, um jovem e débil aluno do colégio, é apanhado a roubar pelo colega Reiting, que o denuncia a Beineberg e a Törless, seus companheiros. Sob pretexto de repreender o colega pelo crime, mas querendo na realidade exercer prepotência sobre ele, os três decidem submetê-lo a humilhações de todo o tipo (a sugestão não veio de Törless, mas este tornou-se conivente com ela a partir do momento em que a aceitou e nada fez para a denunciar). As humilhações incluem, da parte de Beineberg e Reiting, abusos sexuais. Törless, mais tarde, tem também encontros sexuais com Basini, embora, diferença relevante, no seu caso os encontros não sejam forçados. O desejo físico de Törless perde a força quando reconhece a fraqueza de carácter de Basini, o que o leva a cortar os laços com ele e a desinteressar-se do que lhe poderá acontecer às mãos de Reiting e de Beineberg, que entretanto passaram da violência sexual à violência puramente física. A perversão dos antigos camaradas repugna o protagonista, que deles também se afasta, o que faz levantar ódios e ameaças contra si mesmo. A crispação entre este quadrado de pupilos vai crescendo, e a tortura de Basini vai-se-lhe tornando cada vez mais insuportável. Não obstante, é apenas num momento de grande aperto que Törless, seguindo um antigo conselho dos pais, toma a decisão de sugerir a Basini entregar-se ao director do colégio pela conduta reprovável. Com efeito, só assim este se salva de ser vítima de um provável homicídio cometido pelos colegas. Nas páginas finais do romance, aquando da investigação sobre o caso de abuso de Basini, Törless sente, simplesmente, que
[t]inha chegado ao fim uma fase da sua evolução, a alma formara mais um anel, como uma árvore jovem, e este sentimento, ainda sem palavras, que o dominava, desculpava tudo o que tinha acontecido. (p. 208, sublinhados meus)
Poucos parágrafos adiante, esta ideia de que tudo se deve sacrificar, inclusive a própria moral e, até, a integridade física e moral alheia, à experiência de auto-conhecimento, é explicitada no pensamento de Törless, ao qual temos acesso:
Se lhe perguntassem por que razão maltratou Basini, não saberia o que responder: «porque estava interessado em seguir um determinado processo no meu cérebro, qualquer coisa de que hoje, apesar de tudo o que aconteceu, sei ainda pouco; qualquer coisa perante a qual tudo o que eu possa pensar me parece insignificante.» (p. 209)
O «cérebro», referido nesta última citação, é um outro nome para a «alma», referida na primeira. Tanto um como o outro designam o desenvolvimento de Törless enquanto pessoa, e a sofisticação de carácter advinda de tal desenvolvimento. No decurso da narrativa, há passagens que dão bem a entender de que forma a alma de Törless, num processo que tem algumas semelhanças com a evolução histórica do Espírito descrita por Hegel na Fenomenologia do Espírito, vai ganhando densidade e finura por meio de movimentos espirituais e emocionais misteriosos para o próprio protagonista. No início do livro, por exemplo, assistimos a um muito jovem Törless atormentado pelas saudades dos pais. Tais saudades transformam-se de forma lenta e obscura, dando lugar a «um vazio na alma» do protagonista (p. 42). Este vazio não é, no entanto, pura negatividade: é, bem pelo contrário, indício de «qualquer coisa de positivo, uma força anímica que nascera e crescera nele a pretexto da dor» (p. 43). É igualmente um vazio positivo, porque carregado de possibilidades, que marca o estado anímico de Törless após a relação homoerótica com Basini, de quem se sente enfim desligado. A sensualidade já não é, como antes, uma atracção misteriosa: Basini revelou-lhe apenas a mediocridade humana. Esta epifania coincide com outra, igualmente importante: aqueles que Törless julgara serem seus amigos são repugnantemente perversos. O protagonista ascende a um novo patamar do conhecimento graças a estas desilusões – «[j]á não vejo enigmas nenhuns. Tudo acontece simplesmente: a sabedoria é só esta», declara a Reiting para reiterar a sua independência face à tortura a que submetem o antigo amante (p. 200).
Se é certo que o amadurecimento do espírito implica dor, cuja ascese indicia um novo estado de possibilidade, a verdade é que tal movimento anímico – a ascensão a um estado espiritual superior por via do sofrimento – não é constante. A desorientação espiritual é, aliás, o estado dominante de Törless ao longo do romance, o que certamente explica o seu título. Törless passa por perturbações pois não se conhece a fundo e, talvez por consequência disto, tem dificuldade em fazer escolhas. O acto moral de escolher é perpetuamente adiado pelo protagonista, e esta sua indecisão prolonga cruelmente o suplício de Basini. Durante um tempo demasiadamente longo, Törless prefere suspender-se no abismo da possibilidade e nada fazer.
A busca espiritual e intelectual sobrepõe-se, assim, à escolha de uma vida moral. Para Törless, há uma indistinção entre o desenvolvimento do espírito e o do intelecto, pois ambos dizem respeito ao desenvolvimento mental advindo da experiência de vida acumulada. Neste sentido, não é relevante a experiência ser boa ou má: só interessa que exista para poder provocar o necessário desenvolvimento espiritual-intelectual da pessoa que por ela passa. É durante o cruel castigo infligido a Basini, e com conhecimento deste, que Törless apura a sensibilidade, não aos tormentos do colega e antigo amante, mas à ideia de infinito e dos números imaginários e de tudo o que diga respeito ao irracional – i.e., a pensamentos que lhe surgem de forma involuntária (como o momento freudiano em que é incapaz de deixar de pensar na mãe enquanto encara a prostituta com que se deita) ou sensações fortes que o deixam perplexo (por exemplo, o desejo sexual por Basini, quando a homossexualidade era algo que lhe repugnava). A prática homossexual, que Törless afirmava ser «degradante», seria mais tarde vista como «aquele grãozinho de veneno que é necessário para que a alma não fique excessivamente confiante e tranquila, conferindo-lhe qualidades mais refinadas, argutas e tolerantes» (p. 182). Era, mais uma vez, uma forma de apurar o espírito, sendo apenas por isso justificável.
O único meio de atenuar a perturbação de Törless é a escrita. Assim, não parece ser por acaso que seja precisamente graças à palavra escrita – numa antiga carta enviada pelos pais – que se dá o desnodo do conflito central do livro. É nesta carta que os pais recomendam a Törless que aconselhe Basini a entregar-se à autoridade do colégio. Numa primeira leitura, o protagonista repudia a sugestão, considerada «cheia de uma enfadonha ética da rectidão» (p. 204); porém, num momento de maior aflição, em que já se encontra em perigo por ter afirmado a dissidência do antigo grupo de colegas, tais palavras parecem apontar-lhe, enfim, a decisão a tomar. Ao que tudo indica, o protagonista atendeu ao conselho dos pais mais para se salvar a si do que para salvar o colega – o que, mais uma vez, prova a tese de que o desenvolvimento do espírito e do intelecto de Törless é feito à custa de tudo o mais. Foi também quando já não encontrava saída para as suas inquietações filosóficas que o jovem protagonista começou a escrever, usando a escrita não apenas como catarse, mas também como orientação, algo semelhante ao jovem Stephen de A Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce, quando procura situar-se no mundo e na mente ao anotar no seu caderno a gradação geográfica de ele mesmo.
O que o neófito musiliano procura, na tentativa de se situar, não é nada de metafísico, como esclarece o próprio numa discussão com Beineberg: «[é] precisamente o natural que eu procuro, percebes? Nada fora de mim – é em mim que busco, em mim! Qualquer coisa de natural que, apesar disso, não compreendo!» (p. 143). Ele procura, simplesmente, conhecer-se – tarefa espinhosa devido à sua densa interioridade e ao lado obscuro e irracional que sempre há em nós. Note-se, contudo, que embora as palavras o ajudem a não perder o Norte, ainda assim não chegam a exprimir este mesmo lado insondável. Durante a narrativa, o protagonista repara, com frequência, na existência de uma «desigualdade entre vivência e compreensão» (p. 118) ou, dito de outra maneira, entre a experiência vivida e a articulação da experiência pela palavra.
Se a escrita consegue, ainda que de modo frágil, servir de orientação a Törless, o mesmo não podemos dizer dos professores, estranhamente ausentes num romance que se passa, quase por inteiro, numa escola. As breves excepções a esta constatação são decepcionantes: quando o jovem protagonista, ávido de conhecimento, se encontra com o professor de Matemática, este nega-se a alimentar a curiosidade do aluno, alegando que ainda não tem o intelecto suficientemente amadurecido para entender as questões que o inquietam (essencialmente, os números imaginários). Ainda que os professores tenham a maturidade intelectual que falta a Törless, não parecem ter, pelo contrário, densidade espiritual, pela parca experiência de vida. Törless não consegue respeitar estes adultos incompletos, nos quais parece ter havido um estranho descompasso entre a maturação do intelecto e o desenvolvimento do espírito, quando ambos deviam ser concomitantes. Num parágrafo corrosivo, Musil resume esta ideia ao mencionar o «estilo respeitavelmente atrofiado dos professores» (p. 184). Em contraste com a fresca libertinagem de alguns alunos, os professores, desmilinguidos pela clausura no internato, são a imagem da inexperiência atrofiante:
os seus ombros estreitos, (…) as barrigas salientes, as pernas finas e os olhos de carneiros inofensivos atrás dos óculos, como se a vida não fosse mais do que um campo cheio de flores sérias e edificantes. (ibid.)
«Enfim, no internato ainda não se sabia nada da vida (…)» (ibid.), remata o narrador.
Para se saber da vida, e esta parece ser uma ideia-chave no romance, é preciso ter experiências – e o valor destas experiências não é moral nem metafísico; é, antes, espiritual, na medida em que as experiências contribuem para o enriquecimento do carácter de uma pessoa. Törless age apenas em função de si mesmo com o único objectivo de amadurecer o espírito. Permitiu os maus-tratos a Basini pois procurava conhecer-se; solucionou este problema, pois ele próprio já se encontrava numa situação de aperto.
As perturbações do pupilo Törless é a primeira obra de Musil e tem um cunho autobiográfico, o que talvez ajude a compreender a luz demasiado benevolente sob a qual nos é apresentado o protagonista. Muito embora as suas acções sejam profundamente narcisistas e, como tal, cruéis pela indiferença face aos demais, Törless é-nos sempre apresentado de maneira (auto-)complacente, pois a sua busca intelectual e espiritual tudo desculpa. Em adulto, tornar-se-ia num «homem de espírito refinado e sensível» (p. 181) que é, afinal, um pequeno monstro:
[e]ra uma dessas naturezas de esteta e intelectual a quem a observação das leis e, em parte pelo menos, da moral pública dá uma certa tranquilidade, porque isso as exime de pensar em coisas grosseiras, muito distantes das suas subtis vivências anímicas. (ibid.)
No fim de contas, o adulto Törless, de perturbações serenadas, mostra-nos como um ser superior, do ponto de vista espiritual e intelectual, pode ser, em termos morais, um homem sem qualidades.
* Doutoranda financiada pela FCT (2022.12337.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa. Email: teresalm93@gmail.com.
REFERÊNCIA:
Musil, Robert. As Perturbações do Pupilo Törless. Trad. João Barrento. Lisboa: Dom Quixote, 2005.