Guilherme Berjano Valente

Há coletâneas de poesia e há livros de poesia. Enquanto o primeiro tipo se destaca pelo seu valor antológico, servindo de espaço de encontro a vários poemas de um só autor ou de vários, o segundo possui um cuidado edificado, no qual cada poema tem um papel instrumental na estética e na filosofia transmitida: alguns exemplos mais notáveis serão O Guardador de Rebanhos[1], de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) ou Fervor de Buenos Aires[2], de Jorge Luis Borges.

Estes livros constroem-se em redor de um centro nevrálgico: por vezes de uma filosofia, no caso de Caeiro, outras vezes em redor de uma cidade, no caso de Borges. Em Pirilampos, de Ricardo Gil Soeiro, a sua atitude poética é semelhante à de Caeiro e de Borges, possuindo, também, um centro nevrálgico: a metamorfose do poeta em pirilampo, refletindo sobre o ser poético e a poesia. Por sua vez, os poemas, centrando-se nesta reflexão (poesia e poeta), formulam outros topoi gerais da poesia, e.g., amor, condição humana, devir. Isto produz uma dualidade: se os poemas, simultaneamente, possuem um centro nevrálgico e se dispersam noutros temas, lemos um movimento de escrita centrípeto e centrífugo, característico da autorrepresentação. Afirmamos, assim, que a reflexão sobre a poesia e o poeta é uma reflexão autorrepresentativa, feita através de fragmentos.

Pirilampos é uma edificação de fragmentos autorrepresentativos, onde o poeta se metamorfoseia num conjunto de pirilampos para se expressar. No poema 1, o poeta identifica-se como um dos pirilampos – «Diz-me se ainda somos / a mesma boca incontestável». No poema 3, afirma «Insignificante criatura me chamaram» e no poema 22, diz-nos que é nas nossas mãos «astro em miniatura». Estes três poemas são alguns dos vários que identificam o poeta como um pirilampo, tornando-os indivisíveis. Isto  é verdade quando a descrição poética serve não só para identificar os pirilampos, mas para descrever a atividade poética. O verso do poema 1, «dentro de nós deflagrando um incêndio em miniatura» pode ser aplicado à inspiração poética e tal como o último dístico do mesmo poema, «É esta a pequena glória de um reino encantado. / Nascer, brilhar, morrer: e isto é um tesouro» retoma o topos do poeta enquanto figura que brilha e morre, que é passageira, deixando marcas momentâneas. Assim, como o pirilampo tem um brilho limitado, também a maior parte dos poetas  tem um tempo de reconhecimento literário limitado, sendo poucos os que se inserem no grande caminho poético da competição belicista que é a influência poética.[3] Vejamos o poema 3 e como a «insignificante criatura» retoma o lugar-comum do poeta enquanto «ser menor» aluado, que apenas possui esplendor num contexto específico:

 

Quando a noite irrompe
é quando o meu reinado principia
[…]
Mas como nada está destinado a durar,
após o glamoroso estrondo do sucesso,
regressarei à minha triste condição
– deus menor de uma pátria
adormecida.

 

A visão de um pirilampo como um ser que apenas brilha num certo contexto é um topos da condição de poeta, como vemos no poema «L’Albatros»[4] de Baudelaire, onde o poeta é como um albatroz, um pássaro enorme que, quando retoma ao espaço terreno, é incapaz de se mover sem dificuldade, devido às suas enormes asas – «Ses ailes de géant l’empêchent de marcher».[5]

Estes poemas não são sobre pirilampos a falarem de pirilampos, mas de pirilampos a falarem de poesia e de poetas. São a edificação de uma condição de poeta: um pirilampo que sobrevoa a noite escura.

Esta ideia vinca-se quando reparamos que as epígrafes aos poemas servem de catalisadores à escrita da poesia. Respondendo ou corroborando afirmações e versos de outros autores, Ricardo Gil Soeiro vai esbatendo a fronteira entre pirilampo e poeta, deixando de requerer epígrafes com o avançar do livro: se os primeiros poemas são quase todos acompanhados por epígrafes, parecendo necessárias ao poema, com o avançar da leitura e com a sobreposição entre pirilampo e autor a tornar-se mais clara, os poemas mais perto do fim do livro não exigem tais epígrafes como catalisadores de escrita. O poema 35 destaca este carácter de sobreposição onde o poeta, como um auto-Prometeus, consome o fogo, quedando-se num «pequeno incêndio, / um perigo intacto», e narrando o seu princípio de vaga-lume.

No entanto, os últimos dois poemas parecem contradizer este acontecimento: enquanto o poema 51 tem a voz do poeta, sem ser um pirilampo, descrevendo-se como um «isco para uma beleza armadilhada» – sendo a «beleza armadilhada» a tentativa de se autobiografar[6] como um pirilampo, falhando –, e referindo-se aos poemas prévios do livro como «espólio da disputa», o poema 52 retoma a fronteira entre o poeta e o pirilampo, versificando «Insecto quase perfeito, / não sei como convencer-te de que / deveras nos merecemos um ao outro». Já o poema 50 começa a confundir o poeta na sua anterior certeza de ser um pirilampo: vemos dois caminhos descritivos, sendo um vitorioso, no qual o poeta se queda vaga-lume «bafejado pela feliz permuta de súbitos / olhares enfeitiçados», ou, então, uma derrota poética, deixando que o pirilampo se enrosque no seu mundo escuro. A vitória é sua se a união for total, contudo, o poeta deixa o pirilampo, aceitando a sua desvinculação – «Por agora deixo-te estar assim, / só, submerso, nessa catacumba».

Se a vitória é a unificação, o indivisível entre poeta e pirilampo, a derrota são os últimos dois poemas, onde se reconhece a impossibilidade de metamorfose real. Retoma-se o uso de epígrafes como catalisadoras à escrita, por se regressar a um estado inicial. Notemos as aproximações entre Caeiro e Gil Soeiro: como Caeiro atinge a sua descoberta máxima no poema XLVII, d’O Guardador de Rebanhos – «Vi que não há natureza» –, fazendo dos dois poemas seguintes (XLVIII e XLIX) o princípio da sua decadência, também Gil Soeiro compreende que a unificação é impossível no poema 50, podendo apenas pedir ao pirilampo que o acompanhe no poema 52 – «Vem, vem comigo, / vamos ser a mesma súbita audácia»; assim, como o poema maior d’O Guardador é o poema XLVII, onde toda a filosofia de Caeiro culmina – como Ricardo Reis afirma: «Duvido que grego algum escrevesse aquela frase culminante de O Guardador de Rebanhos / A Natureza é partes sem um todo»[7] – a este poema segue-se a decadência de Caeiro, virando-se para dentro n’O Pastor Amoroso. Também Ricardo Gil Soeiro, nos últimos dois poemas, deixa de procurar a unificação com o pirilampo, voltando-se para si mesmo, enquanto poeta solitário. O possível momento de unificação com o pirilampo, no poema 50, não sucedeu; nos dois poemas seguintes, limita-se a desejar o pirilampo, e a pedir-lhe que se unam – «Vem, vem comigo, / vamos ser a mesma súbita audácia». Tanto Caeiro como Gil Soeiro alcançam o seu propósito máximo no antepenúltimo poema (um filosoficamente, o outro no plano da metamorfose); ao alcançarem-no voltam-se para si mesmos (Caeiro narra-se a largar os seus versos e Gil Soeiro apresenta-se como um ser que se enganou a si mesmo); diferem, contudo, no sucesso dos seus objetivos: enquanto Caeiro alcança a sua filosofia máxima, Gil Soeiro falha a metamorfose, do seu corpo em pirilampo. Esta falha, por sua vez, não é comparável à falha poética, no universo bloomiano, sendo ela propositada, denunciando uma incapacidade da poesia: a atuação na realidade.

Este livro é edificado como um livro de poemas, onde cada poema ganha em ser lido na ordem proposta: do 1º ao 52º. É uma edificação que esbate a fronteira entre a natureza do poeta e a natureza do pirilampo, ambicionando-se uma simbiose entre inseto e humano. É no esbater de fronteiras, nesta metamorfose unificadora, que vemos um topos utilizado por Kafka, com Gregor transformando-se num inseto[8], ou por Franco Alexandre ao fazer-se de aranhiço – «Gregor transformou-se em barata gigante. / Eu não: fiz-me aranhiço,».[9] É nesta tentativa de se ser algo diferente e de se ser a si mesmo, simultaneamente, que encontramos a autorreflexão autoral. Esta, por sua vez, só poderia ser feita num espelho fragmentário, i.e., só em diversos poemas é que poder-se-ia marcar a ambição da metamorfose em pirilampo, pois nenhum pirilampo voa sozinho, mas sempre num enxame de vaga-lumes.[10] Afirmamos que o poeta ou ambiciona ser o enxame completo, ou ambiciona ser um dentro do enxame. Lendo o poema 16, poderíamos afirmar que o propósito do poeta é, nada mais, do que expressar-se sem interferência da mediação das palavras, que complicam à compreensão, produzindo a ideia de que o objetivo é uno e não combativo:

 

Possível definição para um desleixo feliz:
algures,
da algibeira da noite
esgueira-se uma canção,
sem mistério e sem remorsos.

 

Todavia, este poema apenas afirma um esgar de felicidade, e não um propósito. Ao ler-se o poema 28 – «Sabedoria de insecto: / chegará o dia em que a morte será / o mais banal de todos os mistérios» –, e o poema 30 – «Quem foi que deixou os pirilampos acesos?» –, percebe-se que há uma vontade de sobreviver no combate belicista poético: a referência à morte como algo usual, e aos pirilampos como seres que ficam acesos na noite, indica que a perceção poética não é a de ser uma figura passageira, mas de sobreviver e integrar o grande combate da influência poética.

Isto torna-se evidente com o clinamen (desvio produzido pelo poeta novo, em relação ao poeta precursor) que Gil Soeiro faz de Aracne, de Franco Alexandre: se Franco Alexandre, na sua metamorfose em aranha deixa de se reconhecer como ser humano, apenas voltando a transformar-se em humano temporariamente – no último poema: «eu teimo em ser humano por um dia / para que possas ver-me tal qual sou» –, Gil Soeiro inverte a proposta, apercebendo-se de que a sua metamorfose não passou de uma ilusão e que os poetas, como os pirilampos, são seres restritos a um contexto – «Porque é que tu só brilhas de noite? […] Ando cá por fora de dia e de noite, mas quando o sol está no céu, eu nada valho».

Percebemos que o poeta sabe que se está a inserir numa tradição literária (metamorfose do corpo autorrepresentativo): o clinamen indica uma tentativa de superação do poeta precursor, «corrigindo» o poema anterior. Creio que esta ambição indica algo comum a todos os poetas, isto é, a superação do poeta precursor, «roubando» e «desviando» a sua escrita, quedando-se com o lugar do precursor na história da imaginação literária. Deste modo, os poetas são vaga-lumes que irrompem pela noite, marcando-a como estrelas temporárias que um dia se apagarão, desejando que as suas marcas se insiram na história literária, tornando-se perenes ao espírito humano, não porque a sua luz brilhe, mas porque os que a observaram dela se recordam.

Deste modo, Ricardo Gil Soeiro sussurra-nos: todos os poetas são como pirilampos. Brilham na noite, no seu contexto, não conseguindo ajustar-se ao dia, assim como o Albatroz não se ajusta à terra. Serão perenes os que subsumirem em si todos os outros pirilampos.

 

Nota: o autor escreve conforme o Acordo Ortográfico de 1990.

[1] Fernando Pessoa, Obra Completa de Alberto Caeiro (Lisboa: Tinta-da-China, 2016), 29-73.

[2] Jorge Luis Borges, Poesia Completa, trad. Fernando Pinto do Amaral (Lisboa: Quetzal, 2022), 13-49.

[3] Ver: Harold Bloom, A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia, trad. Miguel Tamen (Coimbra: Edições 70, 2022).

[4] Charles Baudelaire, «L’Albatros», in Fleus du Mal (Paris: 2016, Bibebook): file:///C:/Users/guips/OneDrive/Ambiente%20de%20Trabalho/Guilherme/Baudelaire_Fleus_Du_Mal.pdf

[5] Tradução nossa: «As suas asas gigantes impediam-no de andar».

[6] A palavra autobiografia, aqui, possui a definição que lhe é dada por Clara Rocha, como qualquer texto autorrepresentativo: Clara Rocha, Máscaras de Narciso: Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal (Coimbra: Almedina, 1992).

[7] Itálico nosso; substitui o destaque no original.

[8] Franz Kafka, A Metamorfose, trad. João Crisóstomo Gasco (Alfragide: Edições BIS, 2017).

[9] António Franco Alexandre, Poemas (Lisboa: Assírio e Alvim, 2021), 533.

[10] Veja-se O Túmulo dos Pirilampos, de Isao Takahata.

Bibliografia:

Alexandre, António Franco. Poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2021.

Baudelaire, Charles. Les Fleurs Du Mal. Paris: Bibebook, 2016. [https://www.bibebook.com/files/ebook/libre/V2/baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_mal.pdf].

Bloom, Harold. A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia. Trad. Miguel Tamen. Coimbra: Edições 70, 2022.

Borges, Jorge Luis. Poesia Completa. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Quetzal, 2022.

Kafka, Franz. A Metamorfose. Trad. João Crisóstomo Gasco. Alfragide: Edição BIS, 2017.

Pessoa, Fernando. Obra Completa de Alberto Caeiro. Ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Lisboa: Tinta-da-China, 2016.

Rocha, Clara. As Máscaras de Narciso: Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina, 1993.

REFERÊNCIA:

Soeiro, Ricardo Gil. Pirilampos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2022.