Teresa Líbano Monteiro*

O roman à clef Ordens Menores, no qual José Régio figura sob o nome de Natan[1], pode ser lido como uma importante chave hermenêutica para outros dois textos de Agustina Bessa-Luís sobre o autor vilacondense: o artigo «Passagem sem ornamento» (Bessa-Luís, 1984) e o conjunto de cartas que a autora trocou com o seu reservado amigo (publicadas no pequeno volume Correspondência Agustina-Régio (1955-1968) [Bessa-Luís, 2014]). Com efeito, ganhamos muito, enquanto leitores, em ler o romance como uma tentativa de a autora de Fanny Owen desvendar a personalidade esquiva de José Régio, que tantas vezes se lhe ocultava nessa mesma correspondência. Na restante obra, o escritor d’A Velha Casa é igualmente enigmático: como afirma António Feijó, há uma constante vigilância por parte do autor para se resguardar do leitor[2], e esta autovigilância é sentida mesmo em livros tão escabrosos, pelo impudor sexual, como O Jogo da Cabra Cega. Opinião similar é a de Eugénio Lisboa no estudo José Régio ou a Confissão Relutante (Lisboa, 1988), no qual desenvolve o argumento de que os livros de José Régio vivem de uma vontade de confissão; esta raras vezes se concretiza[3], mas é justamente desse estado latente, simultaneamente desgastante e fértil, que vive a obra do autor d’As Encruzilhadas de Deus.

O romance Ordens Menores explora a natureza do objecto da vigilância de Régio, ou da sua continuamente protelada confissão. O livro foi publicado pela primeira vez em 1992, vinte e três anos após a morte do escritor vilacondense, e essa distância temporal foi a necessária para Agustina fermentar ideias que se encontram em gérmen nalgumas das suas missivas a José Régio e no artigo «Passagem sem Ornamento». Uma acusação frequente que a autora faz, por carta, a José Régio é a de reprimir a alegria na sua arte – e quiçá, na vida. A alegria, para Agustina, «não quer sempre dizer gargalhada e bom humor mas até brutalidade e fúria, (…), ser até vil, e sobretudo não desesperar» (Bessa-Luís, 2014: 46). Como escrever e viver sem essa vitalidade? Agustina insiste neste tipo de indagações, mas o amigo esquiva-se a responder-lhe, salvo neste pequeno excerto de uma carta de Fevereiro de 1958: «[b]em certo que a densidade na simplicidade é, pelo menos, um dos meus ideais. Mas uma alegria que se recolhe não é menos verdadeira» (ibid. 48-49). Em Ordens Menores, o recolhimento da alegria em José Régio será teorizado e desenvolvido com requintes freudianos.

No romance, é narrada a história da profunda amizade que se desenvolve entre o velho professor e poeta Natan e o jovem e rebelde Luís Matias, no qual ecoam muitas características de Agustina[4]. O desenvolvimento desta amizade passa por três fases: uma primeira fase, de aproximação e quase de enamoramento, em que se conhecem e Luís Matias fica fascinado pela erudição e pela atitude modesta, quase resignada, do professor; uma segunda fase, de afastamento, em que Luís Matias começa a suspeitar do provincianismo e da falta de ambição do professor e se mostra magoado pela humilhação a que por vezes este o sujeita; uma terceira e última fase, em que, após a morte de Natan, de quem estava afastado há um longo tempo, Luís Matias reconhece a sua grandeza moral e completa o amor que por ele sempre tivera. A educação do neófito fica, assim, concluída.

No vocabulário eclesiástico, as ordens menores designam os quatro graus de acesso às ordens maiores (o bispo, o presbítero e o diácono), sendo estes graus o ostiariato, o leitorado, o exorcistado e o acolitado. As quatro ordens correspondem aos diferentes graus de aprendizagem intelectual que Luís Matias fará, guiado por Natan. A quarta e última ordem foi aquela que mais demorou a ser conquistada. Correspondeu à época revolucionária no contexto nacional; Luís Matias, desiludido com o professor, que continuamente o repudiava, humilhando-o, havia partido de Vila do Conde, onde se encontravam, para Lisboa, onde foi ocupar um cargo nepotista no governo. Porém, mesmo à distância e repisando, em pensamento, os defeitos do professor, não deixava de reconhecer que este, através da sua «grandeza submissa» (Bessa-Luís, 1996: 280), tinha ainda sobre ele um poder extraordinário.

Em fulgurante contraste com a grandeza que Luís Matias reconhece, postumamente, no seu mestre, encontra-se o nome deste: Natan, profeta bíblico, «era o símbolo da revelação mais desanimadora. Natan fora o profeta que disse a David que ele não chegaria a construir o Templo [para albergar a Arca da Aliança]» (ibid. 30). O nome «Natan» era, pois, sinal de um destino fracassado, como o próprio pai do professor reconhece (ibid.). Note-se no choque que tal nome faz com aquele que o poeta, na realidade, escolheu para si – «Régio» impõe-se desde logo como elevado e nobre. Ao eleger este nome como pseudónimo, o autor José Maria dos Reis Pereira poderia assim afirmar, ao invés do que acontece com o nome «Natan», um destino de sucesso e magnitude. É evidente que a escolha deliberada de «Natan» para baptizar a personagem que representa Régio é, no mínimo, maliciosa. Não obstante, os simbolismos da denominação «Natan» não ficam por aqui. É notória a semelhança fonética deste nome com a designação dada ao anjo Satã, caído do céu por desobediência à lei divina. Assim como Satã, também Natan, no seu imenso orgulho, tinha a audácia herética de se comparar a Deus, glosando as palavras de Cristo: «[u]m tempo me vereis, e não me vereis mais e depois me vereis» (ibid. 45). Tal frase alude, certamente, à sua glória literária post-mortem: o corpo do escritor iria ressuscitar no seu corpus literário. A analogia entre Régio e Cristo é feita pela própria Agustina, quando estabelece, no artigo acima mencionado, no qual se socorre da Carta aos Hebreus, um paralelismo entre a eficácia do sacrifício de Cristo (que, através da ressurreição, alcançou o perdão para toda a Humanidade) e o igualmente eficaz sacrifício de Régio. Este paralelismo é feito de forma muito críptica – não percebemos em que consiste exactamente o rito sacrificial vivido pelo poeta, mas é justamente este o ponto desenvolvido em Ordens Menores. No romance, Natan guarda um «segredo» (ibid. 118) que Luís Matias, à semelhança do que Agustina faz nas cartas ao seu velho amigo, procura obsessivamente desvendar. Este segredo está ligado à admirável austeridade física do professor, que exaspera a sua mulher Xantipa. Tal austeridade advém de um nobre repúdio da sexualidade, e é essa a raiz do insondável segredo de Natan. O professor impressionava-se com a beleza física de Luís Matias e dos jovens rapazes em geral, mas refreava-se de os desejar: «[g]ostava ele de rapazes e, proibindo-se o prazer do seu trato, alimentava o espírito dessa inibição?» (ibid. 44). O ponto de interrogação que remata esta frase é puramente retórico, como se percebe no desenvolvimento do livro. Neste, fica claro que o desejo homoerótico de Natan era sublimado em virtude da conquista de um estado superior, de liberdade e poder sobre os homens – pois, como explica Agustina, «[o] poder sobre nós mesmos é causa eterna do poder sobre os outros» (ibid. 75). Natan podia, graças a uma quase sobre-humana repressão erótica, atingir um patamar de invulnerabilidade, que era marca da sua grandeza:

 

A grandeza de Natan era uma invulgar secura para interpretar o mundo e os homens, a quem ele dedicava uma espécie de perdão, que era o perdão de os amar e desejar, sem porém ceder à temporal festa dos sentidos. (ibid. 191)

 

Natan/Régio é equiparável a Cristo, pois ambos, graças a uma enorme renúncia – a renúncia do corpo, em suma –, conseguem alcançar uma condição de superioridade divina, na qual nem o perdão, mecanismo da velha lógica humana, teria lugar. Atingido esse estado, disse Cristo, referindo-se aos homens: «[p]orei as minhas leis nos seus corações e gravá-las-ei nas suas mentes; e não mais me recordarei dos seus pecados nem das suas iniquidades» (Heb 10, 16-17). De modo similar, Natan atingiu o estatuto de mestre, e pôde moldar o coração e a mente de Luís Matias aos seus ensinamentos. Da ascese a este estado de poder e liberdade resulta o orgulho que Agustina continuamente aponta como apanágio de Régio e Natan[5]. A imagem modesta e a atitude reservada deste último, que a autora, de humor mordaz, não se cansa de descrever e de pôr a ridículo (e.g. a primeira descrição de Natan, perfeitamente demolidora: «Natan era pequeno e de fraca figura. Tinha unhas bem tratadas.» [Bessa-Luís, 1996: 17] ou esta, ainda mais arrasadora: «Natan riu-se, o que lhe deu um ar dum macaquinho friorento.» [ibid. 99]) parecem estar nos antípodas do seu imenso orgulho, resultante de uma consciência de superioridade face aos demais. Agustina trata de explicar esta aparente contradição numa epístola incisiva:

 

Bem sabe e conhece da história dos santos que os melhores ascetas foram os mais sensuais e que os mais indignados foram os mais justos. Também o orgulho pode exigir directamente um estado de consciência tão vivo que se explique em humildade. (idem, 2014: 64)

 

Tal conciliação entre a atitude humilde e a interioridade sábia e orgulhosa aponta para um terceiro significado do nome «Natan», advindo do protagonista homónimo da peça Nathan, the Wise, de Lessing (1779). Nathan é um mercador judeu sensato e justo mas, tal como Natan, arredio nas suas intenções. As restantes personagens não chegam a um entendimento claro do que ele quer, nem porquê, e por vezes desconfiam do seu bom fundo, tal como Agustina parece desconfiar da magnanimidade de Régio/Natan. «Seria o professor Natan tão justo e paciente como todos os seus actos demonstravam?», pergunta-se Luís Matias (idem, 1996: 106).

Uma das grandes perplexidades que Agustina/Luís Matias sentem em relação a José Régio/Natan é o facto de este último se fazer rodear de amigos que lhe eram mentalmente inferiores. No romance, Agustina explica este desacerto intelectual entre Régio e os amigos de duas formas: por um lado, rodear-se de homens medíocres era «um meio prodigioso para esconder a anomalia da sua inteligência» (ibid. 107) – por outras palavras, era um «método engenhoso» (ibid.) de manter oculto da restante humanidade o brilhantismo da sua força mental, graças ao qual conseguia renunciar ao instinto homoerótico; sintetizando e simplificando: era uma forma de resguardar a sua homossexualidade. Por outro lado, Agustina, numa única frase, antevê algo que não me parece ser menosprezível na obra regiana: o facto de o escritor descansar o seu destino humano neste «pequeno mundo» de amizades (ibid. 136). Com efeito, é um lugar-comum na obra de Régio a necessidade do convívio com pessoas simples, que dão tréguas à pesada interioridade do autor/personagem.[6] Depreende-se, tanto de um caso como do outro, que Régio não podia ser verdadeiramente amigo de um génio. A autora de Vale Abraão, que tinha uma clara noção do seu talento desmesurado, depressa compreendeu que não havia lugar para si dentro do círculo íntimo do escritor.[7] Assim, ao fazer-se retratar como Luís Matias, o discípulo amado de Natan, ela concretiza, na literatura, aquilo que nunca chegou a acontecer em vida, por retraimento do escritor e para seu indignado desalento. Dando largas ao excesso que Régio lhe reconhece[8], Agustina vai bem além de uma concretização literária de uma amizade que nunca teve realmente lugar: no romance, ela desmascara Régio, apontando como núcleo problemático da sua personalidade a questão da homossexualidade, fraqueza e força maior do escritor de Poemas de Deus e do Diabo – fraqueza por obrigá-lo a uma dissimulação e a um retraimento contínuo; força por dessa contenção erótica vir um estado de sublimação superior, apenas conseguido pela sua genialidade. Assim, ao despir despudoradamente Régio do seu drama íntimo, enigmático e perpetuamente irresolvido na extensa obra que escreveu, Ordens Menores é um romance de retaliação pelo intimismo que Régio negou em vida à autora. Perto do final da obra, Agustina faz uma definição certeira dos seus livros, ao descrevê-los como «casos de latrocínio feito à tranquilidade das pessoas» (ibid. 331). O latrocínio implica desaforo, possuído em excesso pela escritora, mas implica igualmente uma coragem desmedida, própria de quem está às portas da morte. «Conversavam, espantosamente livres de preconceitos, como se fossem morrer em breve» (ibid. 344) – e o que é admirável na obra de Agustina é que esta conversa existe estando a autora ousadamente viva.



[1] Os paralelismos entre a personagem Natan e a pessoa de José Régio são tão frequentes quanto despudoradamente óbvios – só para dar alguns exemplos, tanto Natan quanto Régio são oriundos de Vila do Conde, onde viveram uma juventude marcada pela imponência do mar, a rispidez dos costumes e a autoridade incontestada da madrinha Libânia (Cinira, no livro). O pai de ambos era ourives; ambos eram professores de francês em cidades alentejanas (Régio em Portalegre, Natan em Évora) e coleccionavam antiguidades e arte sacra. Como se não bastassem estas coincidências, Agustina inclui ainda, no romance, acontecimentos que marcaram a última fase da vida do poeta, e aos quais é feita referência na correspondência trocada entre os dois: como é o caso da polémica espoletada pela feroz crítica de Régio ao filme Bonnie and Clyde (1967), a discussão dos dois autores em torno da jovem escritora francesa Françoise Sagan e ainda a divergência de opiniões de ambos quanto ao caso amoroso do Padre Costa Maia (Garcia, no romance) com Geraldina (sem pseudónimo no romance), impiedosamente criticado por Agustina, caridosamente acolhido por José Régio.

[2] Ver Feijó, 2020.

[3] Quando se concretiza, algo de terrível e belo acontece – e.g. a violenta nevrose de Pedro Serra, n’O Jogo da Cabra Cega, quando, por fim, confessa aos seus amigos literatos o que pensa sobre eles; ou a morte do príncipe com orelhas de burro, no romance com o mesmo título, quando revela o seu segredo horrendo e atemorizante.

[4] Se é indubitável (porque declarado ao longo de todo o livro) a correspondência entre a amizade estabelecida entre o filósofo Sócrates e o seu discípulo Alcibíades na Atenas do século V e a que se estabelece, em Portugal de meados do século XX, entre Natan e Luís Matias, parece-me ser tão ou mais interessante olhar para as semelhanças entre a amizade desta última dupla e aquela que se criou entre José Régio e Agustina.

[5] E.g. em «Passagem sem ornamento», Agustina faz referência ao «homem vitorioso» e à «ambição fabulosa» que encontrava no seu amigo (Bessa-Luís, 1984).

[6] Veja-se o caso de Lèlito, protagonista d’A Velha Casa, que procura refúgio para a sua densidade psíquica na companhia daqueles que são leves (por exemplo, o Pedro Sarapintado).

[7] «Nos últimos tempos, teve por mim um sentimento desentendido e urbano, como se eu fosse uma pedra incómoda no seu caminho», constata a escritora (Bessa-Luís, 1984).

[8] «Como o “excesso” é uma das suas características, – naturalmente se excede», comenta comedidamente Régio, a propósito de uma resposta desabrida de Agustina a uma carta aberta de João Teixeira de Vasconcelos (Bessa-Luís, 2014: 53-54).

 

Bibliografia

Bessa-Luís, Agustina (2014), Correspondência Agustina-Régio (1955-1968), Lisboa: Guimarães.

Bessa-Luís, Agustina, «Passagem sem ornamento». Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 93, ano IV (17-23 Abril 1984): 27 [dossier especial dedicado a José Régio].

Feijó, António (2020), «José Régio», O Cânone, coord. António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, Lisboa: Tinta da China, pp. 303-309.

Lisboa, Eugénio (1988), José Régio ou a Confissão Relutante, s.l.: Rolim.

* Doutoranda financiada pela FCT (2022.12337.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa. Email: teresalm93@gmail.com.

REFERÊNCIA:

Bessa-Luís, Agustina. Ordens Menores. Lisboa: Guimarães 1996.